Quando as sociedades dizem não
Um balanço das campanhas de mobilização cidadã que estão conseguindo, com base em plebiscitos, evitar a implantação de lojas da mega-transnacionalOlivier Estèves
No momento em que Emile Zola dava os toques finais no seu romance Au Bonheur des Dames (1883), verdadeiras cadeias de lojas já tinham nascido do outro lado do Atlântico. Le Bon Marché, Le Louvre, La Samaritaine ou ainda Le Printemps constituíam um fenômeno tipicamente parisiense, e Woolworth, criada em 1879 em Lancaster (Pensilvânia), já possuiria 59 lojas em 1900. As rádios locais, principalmente na Louisiana, serviam por vezes para transmitir a mensagem de resistência frente a esses grandes monstros devoradores da concorrência, em especial aos gritos de “Povo da América, acorde! Nós podemos nocautear essas cadeias de lojas [1]!”.
Um século mais tarde, a chegada do mastodonte Wal-Mart provocou a falência de dezenas de milhares de lojas, de fornecedores e de prestadores de serviços de todo tipo. Um exemplo: o do pequeno estado norte-americano de Iowa. Segundo um estudo feito pelo professor de economia Ken Stone (Universidade de Iowa), a chegada em massa de lojas Wal-Mart causou o fechamento, entre 1983 e 1993, de um total de 7.326 lojas [2]. Podemos julgar a agressividade da marca a partir desse trecho da revista Wal-Mart Today de outubro de 1996, destinada aos “associados” da empresa. O vice-presidente, Tom Coughlin admitiu: “Na Wal-Mart, nós somos mercadores de poeira. A concorrência engole a poeira. Literalmente3”.
Da mesma forma, muito freqüentemente acontece de a Wal-Mart mesma decidir fechar seus próprios centros comerciais, as famosas “caixas de sapatos” (referência à forma do prédio) que pululam, mas que ela abandona, também, por todo o país. Em 2004, a Wal-Mart comprou cerca de 400 desses “shoppings”, envolvendo uma área total de 8,54 milhões de metros quadrados, e em seguida os fechou, por serem “muito pequenos” ou “não muito rentáveis”4! Todos esses fatos, que se acrescentam à lista sem fim de torpezas praticadas pela empresa, provocaram uma reação de rejeição das comunidades locais, nos quatro cantos do país.
Era apenas o início de uma longa série de “boicotes preventivos”. Logo seria a vez de Eureka (Califórnia), em 1998
Greenfield, onde a resistência começa
A primeira grande batalha travada foi a de Greenfield (Massachusetts), em 1993. Ela colocou em cena aquele que viria a ser o inimigo público número um da Wal-Mart, Al Norman. Este homem é uma espécie de “lobista profissional”, agindo em nome de associações de todo tipo e de todas as cores políticas. Após uma certa pressão inicial, Norman rapidamente se deu conta da desproporção entre sua cidade de 20 mil habitantes e o “hiper” de cerca de 40.000 metros quadrados, ocupando uma área de mais de trinta hectares, que se propunha criar em Greenfield. Nosso homem desde então se engajou em uma luta que até hoje não foi interrompida.
A implantação de muitos centros comerciais já foi objeto de referendos populares nos Estados Unidos. Às vezes, as controvérsias em torno da construção das enormes “caixas de sapatos” na periferia das cidades levam mais cidadãos às urnas que as próprias eleições presidenciais. Esse foi o caso de Greenfield, em 1993, quando houve um movimento mais massivo às urnas que o das eleições que haviam “coroado” Bill Clinton um ano antes. Esse tipo de consulta democrática constitui a principal arma dos opositores da Wal-Mart.
Norman concordou em chefiar a rede associativa local oposta ao colosso de Arkansas apenas dez semanas antes do referendo, previsto para 19 de outubro de 1993. Imediatamente, começou uma campanha política das melhores. A Wal-Mart empregou toda sorte de estratagemas para convencer os eleitores. A empresa enviou muitas séries de correspondências imitando o selo da prefeitura da cidade de Greenfield, para conferir um caráter oficial e respeitável à sua estratégia de marketing político. Por sua vez, Norman se assegurou do apoio financeiro de numerosos comerciantes locais. Apoio anônimo, pois era importante a oposição não se mostrar sob o caráter de um “interesse categorial”, para usar a novilíngua da Wal-Mart.
A empresa tentou convencer os indecisos apelando a associações do tipo “astroturf”, que em uma tradução forçosamente aproximativa poderia ser “gente provinciana caída de pára-quedas das altas esferas”. O objetivo: disfarçar-se – literalmente – em cidadão comum, de uma cidade vizinha, por exemplo, e vir contar vantagem da “vida menos cara todos os dias” sempre regiamente pago por um escritório de comunicação instalado em Nova York ou Washington. Frente à fortuna despendida pela Wal-Mart em marketing, Norman e seus tenentes tinham como vantagem um conhecimento perfeito do terreno e o apego dos habitantes a uma comunidade confrontada com intrusos bilionários vindos do longínquo Arkansas.
Desde há muitos anos, a Wal-Mart tem amordaçado seus potenciais críticos cobrindo-os de presentes diversos
No dia do referendo, 2.854 votos se opuseram à implantação local da Wal-Mart, contra 2.845 favoráveis. Esses nove votos de diferença deslocaram canais de televisão, jornais, repórteres de rádio dos quatro cantos do país. Até então, ninguém nunca tinha ouvido falar de Greenfield.
Era apenas o início de uma longa série de “boicotes preventivos”. Em Eureka (Califórnia), em 1998, a própria Wal-Mart pediu um referendo popular, convencida de poder se implantar sem problemas no norte da Califórnia. Afinal, alguns quilômetros ao norte, a leste e ao sul de Eureka, encontram-se já hipermercados Wal-Mart.
Os habitantes de Eureka foram pegos de surpresa por um call-center trabalhando para a firma de Bentonville. Alguns dos telefonemas, dados bem cedo, pela manhã, tiraram os habitantes da cama. Certas questões eram extremamente insistentes, especialmente aquelas que se relacionavam à resistência à Wal-Mart, à credibilidade dos representantes eleitos, da imprensa, ou à personalidade do “comunista” Al Norman. Uma habitante da cidade, Linda Hanrahan, contou ao jornal local que chegou a receber até onze chamadas por dia. Exasperada, ela teve de aumentar sua dose de calmantes. Pior: ela esperava um telefonema do hospital local informando-a do estado de saúde de seu pai, acometido de um câncer em fase terminal. A revelação desse assédio fez o efeito de uma bomba, e foi imediatamente utilizada pelos opositores. Em 23 de agosto de 1999, 2.605 pessoas se declararam a favor da construção do centro comercial, e 4.015 pessoas se opuseram.
Quando os pobres dizem não
Episódio mais recente dessa luta, e certamente mais emblemático: o de Inglewood, subúrbio pobre de Los Angeles composto por metade de negros, metade de hispânicos, que teve mais de 60% de seus eleitores se opondo, em 6 de abril de 2004, à maior empresa do mundo. A onda de choque foi a comparação da desigualdade das forças e dos meios presentes. Mais de um milhão de dólares haviam sido gastos pela Wal-Mart – uma soma indecente para quem conhece Inglewood. Seus adversários tiveram de se contentar com 110 mil dólares, principalmente graças às contribuições dos sindicatos, conscientes de que daquilo dependia sua sobrevivência: dez mil famílias de Inglewood são afiliadas a um sindicato. Certas igrejas se opuseram à chegada da multinacional, mas uma instituição negra histórica como a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) se mostrou, ao contrário, muito mais passiva. Desde há muitos anos, a Wal-Mart tem amordaçado seus potenciais críticos cobrindo-os de presentes diversos5.
Milhares de pobres fizeram saber às mídias norte-americanas e mundiais que a implantação de uma Wal-Mart os deixaria ainda mais pobres
Em princípio pode parecer estranho que uma população majoritariamente pobre recuse as ofertas de empregos alardeadas pela Wal-Mart. A reputação detestável da empresa entrou no jogo. Mas Tracy Gray-Barkan, membro da Los Angeles Association for a New Economy (LAANE), nos oferece uma outra explicação: “As pessoas de Inglewood não estavam se opondo necessariamente à Wal-Mart como tal. Elas se opuseram antes à forma como a empresa queria se implantar na cidade, sem que a população tivesse o menor direito de observar. Dessa forma, a Wal-Mart teria criado sua própria cidadezinha, e feito o que quisesse, quando quisesse, por quanto tempo quisesse. Isso pareceu inaceitável. Era tudo uma questão de respeito, na realidade.”
Segundo o Reverendo Altagracia Perez, “a tarefa mais difícil de cumprir foi pedagógica: era necessário, explica ele, mostrar às pessoas que não se estava pedindo que elas dissessem ’sim’ ou ’não’ à Wal-Mart, esperando negociar mais tarde as modalidades precisas de uma implantação, mas que nós oferecíamos uma carta branca à empresa sobre um enorme perímetro em pleno coração da cidade. Tomar consciência desse perigo implicava, no entanto, ler e compreender o texto da medida 04-A, um documento de setenta e duas páginas que era necessário interpretar minuciosamente com uma população pobre pouco iniciada na leitura de documentos oficiais. Sem contar que a medida 04-A estava redigida de tal maneira que era possível aprová-la com maioria simples, mas que, uma vez votada, qualquer mudança exigiria uma maioria de dois terços.”
O episódio de Inglewood desmentiu de maneira cortante certas idéias prontas, relativas à “América de Bush”, que seria aquela da Bíblia do “do nosso lado ou contra nós”, das armas de fogo e da cadeira elétrica. Inglewood, em primeiro lugar, mostrou que a fragilidade sindical nos Estados Unidos não impediu que os opositores pudessem obter uma vitória, que a apatia dos trabalhadores norte-americanos não estava inscrita nos mandamentos. Desmentiu também a equação simplificadora entre esfera religiosa e ultraconservadorismo. Isso porque os opositores da Wal-Mart eram também homens de igreja e de mesquita. Desmentiu enfim a idéia de um fosso sistemático entre habitantes e representantes políticos locais: os habitantes de Inglewood ficaram escandalizados de que a Wal-Mart pudesse passar por cima da decisão tomada pelos representantes do povo de recusar a construção de um centro comercial. A cidade serviu de terreno de batalha de uma longa guerra contra a Wal-Mart, dessa vez vitoriosa6.
Enfim, e talvez mais importante ainda, Inglewood mostrou que os opositores da multinacional e de seus “preços mais baixos” não se encontram todos no seio de classes médias nostálgicas dos pequenos comércios (mom’n’pop stores) de outrora. Pela primeira vez, a Wal-Mart não pôde estigmatizar esses “bobos elitistas” que bebem café latte, vinho e degustam queijos importados e que, acima de tudo, não são nada seduzidos pela “autenticidade” da Wal-Mart, esse “nirvana da América profunda”7. Milhares de pobres fizeram saber às mídias norte-americanas e mundiais que a implantação de uma Wal-Mart os deixaria ainda mais pobres. Desde então, contam-se outra