Quando Le Corbusier redesenhou Paris
Classificada como patrimônio mundial pela Unesco em 2016, a obra de Le Corbusier é celebrada como uma contribuição excepcional ao movimento moderno. Megalomaníaco, fascinado pela ordem, o arquiteto era também um urbanista doutrinário que sonhava em reduzir o tamanho dos apartamentos e pôr abaixo o centro das cidades. Paris escapou desse projeto
O Plano Voisin foi apresentado no Pavilhão do Espírito Novo, na Exposição Internacional de Artes Decorativas de 1925, em Paris. Na forma de diorama, ele ocupava um ambiente de 60 metros quadrados e era financiado por Gabriel Voisin, um fabricante de aviões e carros de luxo que, após a polida recusa da Citroën e da Peugeot, via com interesse esse projeto de cidade atravessada por autopistas. Tratava-se de uma adaptação para Paris do projeto de cidade com 3 milhões de habitantes desenvolvido três anos antes, e também exibido em grande escala, num espaço de 80 metros quadrados. O autor assim explica: “O Plano Voisin de Paris inclui a criação de dois novos elementos essenciais: uma cidade comercial e uma cidade residencial. A cidade comercial ocupa 240 hectares em uma área particularmente decrépita e insalubre de Paris – da Place de la République à Rue du Louvre, da Gare de l’Est à Rue de Rivoli. A cidade residencial estende-se da Rue des Pyramides à rotatória da Champs-Elysées e da Gare Saint-Lazare à Rue de Rivoli, implicando a demolição de bairros em grande parte saturados e cobertos de habitações burguesas que hoje abrigam escritórios”.1
No centro, Le Corbusier introduziu um lugar monumental: originalmente uma estação ferroviária, abaixo de um aeroporto, uma vez que “o representante pela aviação francesa” havia declarado que “os aviões poderiam pousar verticalmente sem qualquer perigo”. O eixo principal do projeto ia de leste a oeste: “É uma artéria principal de grande circulação, com largura de 120 metros, equipada com um autódromo, elevado, para circulação de mão única, sem sobreposições”. Contra todas as expectativas, “a altíssima densidade dos bairros antigos sacrificados pelo Plano Voisin não foi reduzida. Ela quadruplicou”: 3.500 habitantes por hectare. “Os bairros do Marais, Archives e Temple serão destruídos. Mas as igrejas antigas estarão preservadas”, esclarece. (Quando os nazistas, em 1943, arrasaram o antigo bairro de Panier, em Marselha, os monumentos históricos foram preservados, em detrimento das habitações modestas.)
Nesse imenso espaço destruído, com exceção dos edifícios notáveis,2 seriam introduzidas torres cruciformes com 200 metros de altura,3 para escritórios, idênticos e equidistantes, de um lado a outro do Boulevard de Sébastopol, em uma composição simétrica e formalista; em seguida, no meio de áreas verdes, seriam edificados imóveis residenciais denteados, com cerca de 50 metros de altura, resultando em uma densidade de mil habitantes por hectare. A cidade de Le Corbusier não era radial, mas linear. Esse plano, que glorificava a burocratização total da vida da comunidade, foi constantemente reproduzido pelo autor em suas diversas obras.
“Obra dedicada às autoridades”
O Plano Voisin constituiu também a base das pesquisas urbanísticas posteriores que Le Corbusier desenvolveu mês após mês, entre janeiro de 1931 e dezembro de 1934, em artigos de revistas, depois compilados em La Ville radieuse [A cidade radiante], que traz o subtítulo Éléments d’une doctrine d’urbanisme pour l’équipement de la civilisation machiniste [Elementos de uma doutrina de urbanismo para o equipamento da civilização maquinista]. Esse texto de 345 páginas, central na obra do urbanista e que ele publicou por conta própria nas edições da revista L’Architecture d’Aujourd’hui [A arquitetura de hoje], começa assim: “Esta obra é dedicada às AUTORIDADES, Paris, maio de 1933”. Nele, Le Corbusier expõe sua ideologia do plano, totalitária e formalista, da cidade do futuro.4 No primeiro capítulo, intitulado “Convite à ação”, ele constata que “o mundo está doente”, enquanto “a Rússia, a Itália constroem regimes novos”. Regimes totalitários. E, na França, “o colapso é iminente”. Uma foto de barricada, com a legenda “6 de fevereiro de 1934 em Paris:5 o despertar da limpeza”, provavelmente significa, para Le Corbusier, a primeira etapa da revolução (fascista). Fortemente impressionado com a economia planejada soviética6 e seu corolário, a “disciplina” imposta de cima, ele sonha com o “desaparecimento do proletariado” e quer criar a “cidade sem classes”, graças à “mobilização da base pela saúde pública”. O exemplo a seguir: “Os terrenos livres da URSS trazem o plano livre”. Essa supressão da propriedade privada deve, no entanto, coexistir com “a pedra angular de qualquer organização da civilização maquinista, o respeito à liberdade individual”. Como? “A casa do homem moderno (e a cidade), máquina magnificamente disciplinada, trará a liberdade individual – hoje abolida –, restituindo-a a todos.”
No “ciclo de 24 horas” é necessário integrar o lazer, uma vez que a máquina reduziria o tempo de trabalho. Le Corbusier, um esportista, pregava o esporte como “valor”, pois ele “contém elementos diversos bem calculados para capturar o interesse: o belicismo, o desempenho, a disputa; a força, a decisão, a flexibilidade e a rapidez; a intervenção individual e a colaboração em equipe; uma disciplina livremente consentida”. Portanto “o esporte deve ser cotidiano, e deve estar JUNTO ÀS CASAS”. Longe de ser uma demonstração, a doutrina de Le Corbusier é um conjunto de slogans: “Autoridade! Estabelecer um programa: trabalhar sobre um programa. Realizar um programa. Difundir as benesses da ordem”. E, finalmente, “pela ordem, restabelecer a interação harmoniosa do trabalho amado: a felicidade!”
Como chegar lá? A solução começa com: “O PLANO: O DITADOR”, que ecoa, no final do livro, “O plano é revolucionário”. Claro equivalente, tipicamente leninista ou fascista, do ditador ou do revolucionário. O plano diretor da “cidade radiante” incorpora técnicas inovadoras aplicadas a equipamentos modernizados. Invoca-se o concreto armado, evidentemente, mas também a montagem “a seco” de componentes pré-fabricados e padronizados, e o ar-condicionado. Não é insignificante notar que, ao lado da foto do general golpista José Sanjurjo (escolhido para liderar a revolta dos nacionalistas, iniciando a Guerra Civil Espanhola), Le Corbusier comenta: “Verão: o ar irrespirável impede os juízes de julgar, os trabalhadores de trabalhar, atordoa comissões, assembleias, parlamentos. Déficit em toda parte”. As técnicas modernas permitem construir “autoestradas” (descobertas em Primo de Rivera),7 principal preocupação do autor; erigir “arranha-céus em forma de cruz, para evitar os corredores”, com 220 metros de altura, onde “pousarão os aviões-táxis”; os “imóveis denteados” sempre, cujas “fachadas são fornecedoras de luz”, compostas de “células” e cercadas por áreas verdes. Esses edifícios residenciais têm uma “altura razoável”, diz ele, “de 50 metros” (dezoito andares). A cidade radiante que assim se estende ao infinito é aterrorizante em si mesma. Um “espaço de morte”, dirá Henri Lefebvre.8 Aliás, ela é precisamente quantificada (densidade “urbana”, dimensão dos edifícios, área das moradias) e abundantemente ilustrada com desenhos produzidos pelos assistentes do arquiteto – o que permite, examinando-os com cuidado, descobrir as enganações e o absurdo dos planos.
Junto aos imóveis residenciais, planejados para 2.700 pessoas (cerca de 540 famílias), são introduzidos “autoportos” (estacionamentos). Seria necessário, portanto, prever cerca de 540 lugares de estacionamento: mas as placas mostram seis vezes menos, para que as áreas cimentadas não invadam demais as áreas plantadas. Os moradores caminham através de espaços verdes, “portões fechados” para sua segurança, mas estes nunca aparecem nas ilustrações. E vai além: “Quatrocentos por quatrocentos metros: essas são as áreas para pedestres, ligadas por passagens subterrâneas tão largas quanto se queira, tão agradáveis como se imagine, e banhadas de luz. Essas áreas são parques”. Para atravessar as autopistas, Le Corbusier descreve um túnel de 30 metros, mas seus desenhos de corte medem mais que o dobro. Finalmente, devemos a Gaston Bardet a observação de que “as sombras [dos edifícios denteados] foram traçadas com base no sol de um dia 21 de junho ao meio-dia. Esse truque fez muita gente não notar que embaixo das muralhas de 50 metros reinaria um microclima de caverna”.9
Fachadas lisas, envidraçadas e herméticas
“De tempos em tempos, a silhueta esguia de uma autoestrada entre a folhagem das árvores: os carros passam em silêncio (borracha no asfalto), no ritmo que lhes apraz.” Le Corbusier gostava de dirigir em alta velocidade. Por toda a vida ele recordou com saudades suas voltas na fábrica da Fiat em Turim. Ele tinha um sedã Voisin (claro) de 14 cavalos, que colocava em cena regularmente, estacionado em frente a suas realizações parisienses – uma espécie de retribuição ao industrial que apoiava as revistas L’Esprit Nouveau e Plans com suas páginas de publicidade.
Le Corbusier fala da organização interna dos edifícios radiantes: “A intervenção arquitetônica poderia concentrar-se no equipamento do interior da casa. De acordo com o problema (conteúdo), o tamanho da família, a qualidade do habitat (modo de vida), a insolação, os ventos, a situação topográfica (urbanismo), o arquiteto do equipamento pode inventar grupos biológicos em um quadro estático padrão”. Isso por si só já é preocupante. Depois ele decreta a área mínima necessária por habitante, mas os apartamentos têm uma sala idêntica, sejam moradia para duas ou quatro pessoas. Também a cozinha de um estúdio tem tamanho similar a outra destinada a uma família com quatro ou até sete crianças.
Na cidade radiante, as fachadas são lisas, totalmente envidraçadas e herméticas – é a “respiração exata” que condicionará o ambiente. (Obcecado, o arquiteto desconsidera experiências fracassadas, como o Centrosoyuz de Moscou ou a Cité Refuge em Paris) Essas fachadas não têm sacadas ou galerias, talvez por razões estéticas, uma vez que, escreveu ele, “uma casa é um prisma geométrico de pé”.
Em seguida, Le Corbusier aplica sua doutrina a diversos planos, mais ou menos detalhados: Genebra, Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu, Buenos Aires, Argel, Moscou, Antuérpia, Barcelona, Estocolmo, Nemours (hoje Ghazaouet, na Argélia), Piacé (aldeia da região de Sarthe, onde vivia um fanático pelo mestre, que concebeu para ele a “forma radiante”). Mas, quando retorna ao caso de Paris, a cidade é descrita como se sua transformação estivesse realizada: “Paris fecha-se sobre si mesma, como ‘cidade radiante’. Paris revive sua biologia básica, Paris está salva”.
Como confidenciou em uma entrevista com Robert Mallet em 1951, Le Corbusier permaneceu fiel por toda a vida aos princípios de 1922: “Realizei o estudo teórico de uma cidade contemporânea de 3 milhões de habitantes. Um estudo totalmente coordenado e fundamental, cujas bases são todas válidas ainda hoje no urbanismo dos tempos modernos, em todas as cidades”. Le Corbusier queria abolir o centro histórico de Paris, mas não odiava toda a capital: ele morou por dezessete anos na Rue Jacob, depois viveu até o fim de seus dias no edifício que construiu na Rua Nungesser-et-Coli, entre o estádio de Roland Garros e o Parc des Princes. Ele convenceu dois de seus melhores amigos, François de Pierrefeu e Peter Winter, a fazer-lhe companhia, reservando para si “a melhor localização”: os dois andares superiores. Ironia do destino, foi o próprio arquiteto quem teve de suportar o calor sufocante do verão sob as cascas de concreto não isoladas e os inconvenientes do terraço com vazamento (que duram até hoje), como sua própria mãe às margens do Lago Léman.
Finalmente, Le Corbusier publicou Les Plans de Paris: 1956-1922 [Planos de Paris: 1956-1922], obra em que reúne, numa cronologia reversa, seus diversos projetos urbanos parisienses abortados. O texto do livro, cujo projeto gráfico e sobrecapa são, como de costume, de sua autoria, é pontilhado por aforismos anotados, impressos em grandes planos coloridos em verde, em referência à sua “cidade verde”, remetendo a seu discurso higienista, no qual podemos praticar um esporte no parque, sempre fazendo referência a seu universo de artista plástico. “A cidade verde torna-se a garagem onde cuidamos do carro (trocamos óleo, colocamos lubrificante, verificamos as peças, fazemos a revisão, a manutenção do carro).”10
*Olivier Barancy é arquiteto. Trecho extraído do livro Misère de l’espace moderne. La production de Le Corbusier et ses conséquences [Miséria do espaço moderno. A produção de Le Corbusier e suas consequências], Marselha, Agone, 2017.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}