Quarto de despejos: a contemporaneidade de Carolina de Jesus
Em “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, Carolina de Jesus retira os tapumes que escondem o estado paralelo que se caracteriza antagônico aos deveres do Estado – instituição política – com seu contingente populacional
“No nosso paiz tudo está enfraquecido. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia”. A afirmação de Carolina Maria de Jesus, datada de meados da década de 1950 relataram para o mundo – anos depois – o cotidiano de moradores de uma favela em São Paulo: Canindé, às margens do que se tornaria a marginal Tietê. A escritora reclama ser ouvida e, por consequência, dar voz à favela e aos moradores das vielas da ocupação paulista. É evidenciado na literatura de Carolina de Jesus um lapso perene que marca as desigualdades sócio-raciais da sociedade brasileira, geridas pelo Estado soberano e suas instituições.
O filósofo camaronês Achille Mbembe, fazendo referência a Michel Foucault, caracteriza a soberania estatal como o direito que esta entidade política tem de matar. Isto é, como a vida é limitada à morte. Em sua obra “Necropolítica”, o autor discorre sobre a capacidade incutida ao Estado em controlar quem pode viver e quem deve morrer. E nestes termos, segundo o autor, é que se constitui a soberania. Nas palavras de Mbembe “Ser soberano é definir controle sobre a mortalidade e definir a vida com a implantação e manifestação do poder”. Nesta perspectiva, o conjunto de normas e regras (leis) que regem um corpo social (população) de mulheres e homens livres e iguais é a expressão última do poder soberano.
Pensemos, entretanto, nos limites desta soberania. Em outras palavras, a partir desta lógica, quais grupos estão mais vulneráveis a este direito de matar do estado e, além disso, que tipos de violência o estado pratica? Achille Mbembe coloca que a soberania tem raízes na relação paradigmática da autonomia com a autolimitação. Ou seja, ao passo que os indivíduos acreditam estarem dotados da autoinstituição e do autocontrole, estes estão cativos a uma engrenagem maior que os permitirá a vida, ou os manterá em um estado de alienação zumbi.
Cotidiano de Carolina
14 de Junho, Sábado. Enquanto chovia, Carolina de Jesus sai às ruas na esperança de ganhar qualquer coisa: ossos do frigorífico, bolachas de uma fábrica ou verduras de fim de feira. Carolina não estava sozinha. Com ela, outras centenas de pessoas buscavam por qualquer sinal de caridade, fosse expresso em esmolas ou doações. Antes da marginal Tietê tomar forma no espaço que ocupa hoje, Canindé já estava à margem do Estado.
A Constituição Federal de 1988 tem como seus três primeiros fundamentos, tal como disposto no artigo 1º, I) a soberania; 2) a cidadania; e 3) a dignidade da pessoa humana. Indo além, o tão famoso artigo 5º nos assegura igualdade perante a lei “sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(…)”.
Em “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, Carolina de Jesus retira os tapumes que escondem o estado paralelo que se caracteriza antagônico aos deveres do Estado – instituição política – com seu contingente populacional. Os escritos de Carolina são anteriores à outorga da Constituição Federal de 1988, no período de redemocratização, pós- governo militar. Fato este que faria a comparação assimétrica, se não fosse pelo elo dos seus relatos com o Brasil do século XXI. Dados do Censo 2010 do IBGE mostram que no Brasil, até aquele ano, cerca de 11,4 milhões de pessoas viviam em favelas, em todo território nacional. Estes indivíduos, maioria negras e negros (aproximadamente 66%), são privados de direitos básicos de cidadania e conferidos a pessoas dignas e humanas, pelo Leviatã soberano.
Em estudo de 2016 realizado pelo Instituto Trata Brasil, estimou-se que apenas 11,7% da população dessas favelas tem acesso à distribuição de água e coleta de esgoto. Quando falamos da restrição total de acesso à água ou coleta de esgoto separados, esse número pode chegar à 72%. À luz de Mbembe e de Carolina de Jesus é possível entender um projeto inclinado aos interesses do soberano que prioriza algumas vidas frente a outras. Neste sentido, o estado de bem-estar social se caracteriza por ser um estado de hierarquia sócio-racial.
Necropolítico
Portanto, o projeto necropolítico não se restringe simplesmente à luta de classes tal como Marx dispôs. Ele expressa a manutenção do modelo escravocrata de organização social. Isto é, a colonização tem reflexos que não se restringiram a um tempo e espaço marcado, porém que vigem no arranjo social contemporâneo. Observa-se que mais da metade das pessoas que ocupam as favelas do Brasil são negras. São essas pessoas que têm seus direitos de acessos básicos negados e começam a necrosar, como um tecido da sociedade que não é assistido. É notório que as escolhas racionais do estado e suas instituições são organismos de um ambiente diverso, mas que atendem a uma parcela única e restrita da população, sendo desconsiderado tudo que é “estranho” a esse padrão. Com a colonização tivemos a segmentação social e a partir disto foi facilitado o processo decisório sobre a política da morte, uma vez que aos grupos minoritários foi imputado uma animalização que eximiu o soberano de empatia. Ficando, deste modo, um cálculo de resultado único sobre quem sofreria com as ações do estado em se tratando de segurança e liberdade.
1º de Janeiro de 1960: Carolina Maria de Jesus se levantou às 5 da manhã para carregar água.
2020: acesso, liberdade, igualdade e segurança continuam sendo conceitos voláteis e que assumirão formas diferentes a depender do ponto referencial de onde se olha. Com a segmentação da sociedade em grupos raciais, foi-se definido que o padrão – aquele que reflete o soberano e suas demandas – têm suas liberdades reconhecidas, asseguradas e defendidas pelo Estado. Para lograr êxito neste objetivo, segurança se submete a esta liberdade e é pensada a partir dos seus preceitos. Aos demais, estes que lutem na hora da necropolítica.
Bibliografia
MBEMBE, Achile. “Necropolítica”. 2003.
DE JESUS, Carolina Maria. “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”.1992.
Marllon Motta da Rocha é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou do Laboratório de Estudos do Países do Cáucaso do Grupo de Pesquisa de Política Internacional de Janeiro de 2018 a Março de 2019, anti-punitivista e pesquisador de raça e segurança internacional.