Que ano é hoje?
Para Beatriz Mamigonian, o alerta vermelho disparou antes do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Historiadores diagnosticaram rapidamente ameaças à democracia – e deram diversos alertas à sociedade. Turbulências depois, desembarcamos num 2019 com ares de 1968. Não foi por falta de aviso
Alertas vermelhos dispararam ainda antes do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Turbulências depois, desembarcamos num 2019 com ares de 1968. “Nós, historiadores, sentimos rapidamente no ar o que estava acontecendo. A democracia estava sendo corroída por dentro. Dentro do mecanismo democrático, as instituições estavam sendo minadas.”
A análise é da historiadora Beatriz Mamigonian, professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora do Programa de Educação Patrimonial Santa Afro Catarina.
Autora de Africanos livres (Companhia das Letras, 2017), Mamigonian organizou, com Hebe Mattos e Tania Bessone, Historiadores pela democracia: o golpe de 2016 e a força do passado (Alameda, 2016). Integrante de primeira hora do movimento Historiadores pela Democracia, ela destaca o engajamento de pesquisadores na defesa da democracia em 2016 (contra o impeachment) e em 2018 (contra a campanha presidencial de Jair Bolsonaro). “Fizemos tudo o que era possível”, afirma.
Para Mamigonian, os alertas de risco à democracia com a vitória de Bolsonaro foram dados por diversos intelectuais e movimentos sociais. “No jornalismo, na história e nas ciências sociais, estamos tentando puxar o fio dessa meada, para entender como chegamos até aqui”, destaca a historiadora.
Aqui, o Brasil atual é um país do passado, como bem descreveu o jornalista Philipp Lichterbeck. Nesta entrevista exclusiva, Mamigonian destaca traços de um passado autoritário no presente. Quanto ao futuro, aposta: “Nós somos muitos. A resistência se dará em muitas frentes. Uma delas é certamente a produção e difusão de conhecimento, para criar condições de desmontar a imbecilização dessa narrativa paralela à realidade. É quase um cenário de ficção científica, de distopia”.
O que é o movimento Historiadores pela Democracia? Como surgiu?
Nós, historiadores, sentimos rapidamente no ar o que estava acontecendo em 2016. A condução coercitiva do Lula, os vazamentos de gravações de conversas entre Lula e Dilma… Esses sinais acenderam a luz vermelha. Boa parte da esquerda se mobilizou e iniciou manifestações. Começamos a escrever muito, nas redes sociais e blogs. Estávamos lendo a atualidade à luz de nossos estudos no campo da história, de nossas diferentes especialidades: quem pesquisa escravidão e ditadura, por exemplo, reconheceu vários sinais para preocupação. Historiadores, que estavam muito presentes nas ruas e nas redes, passaram a gravar vídeos breves de apoio a Dilma, já alertando sobre a ameaça à democracia. No dia 7 de junho, Hebe Mattos organizou uma visita de historiadores à presidenta no Palácio do Alvorada. Afastada desde o fatídico 17 de abril, ela preparava sua defesa. Foi um encontro emocionante, pois sentíamos, e ela sentia também, que a democracia estava sendo corroída por dentro. Fazendo uso do mecanismo democrático, as instituições estavam sendo minadas. De lá para cá, reunimos esses textos escritos no calor dos acontecimentos e fizemos a coletânea, que virou um documento no desenrolar do golpe. E continuamos nas ruas e nas redes. No Facebook, os Historiadores pela Democracia somam 44 mil integrantes.
Alguns analistas veem continuidade entre o impeachment de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Você vê uma relação?
Tenho dificuldade de encontrar esse fio condutor tão claro. A meu ver, um dos fios condutores entre 2016-2018 é o protagonismo político de um setor do Judiciário e do Ministério Público. Vem desde o início da Operação Lava Jato, interferindo no jogo político, minando o PT e depois voltando-se contra o PMDB, fazendo com que Eduardo Cunha e Michel Temer chantageassem Dilma e retirassem apoio ao governo em 2015/2016. Dilma perdeu o mandato sem que tivesse cometido crime de responsabilidade. O chamado presidencialismo de coalizão deixou de funcionar e o parlamento deu vazão a forças que vinham se fortalecendo. Um exemplo: noto, desde 2012, uma articulação fortíssima da bancada ruralista, que conseguiu aliados para conter a legislação a respeito do trabalho escravo contemporâneo. Eles conseguiram neutralizar a PEC e praticamente anular o cumprimento da legislação e o controle contra condições degradantes de trabalho. Aos ruralistas se juntaram empregadores de vários setores, que demandavam a “flexibilização” – na verdade, precarização – dos direitos dos trabalhadores. Assim, o apoio a Temer e a eleição de Bolsonaro representaram alianças entre grupos diversos: ultraliberais, ruralistas, evangélicos e, por último, militares, sob a bênção desse setor do Judiciário.
Qual é o papel dos historiadores hoje?
O papel do historiador é fazer lembrar. É evidenciar que as sociedades humanas, em diferentes momentos e diversos lugares, passam por impasses e situações semelhantes. As situações não são absolutamente novas, mas compostas de elementos reconhecíveis de outros tempos. A diferença é que esses impasses são respondidos de maneiras diferentes de acordo com o momento, diante de uma série de escolhas possíveis, de diversos grupos em conflito. Quer dizer, a cada momento estamos diante de um embate de projetos de futuro: um projeto ganha e se sobrepõe aos outros. Estudamos essas encruzilhadas, no Brasil e no mundo. Olhamos para trás e observamos criticamente o desenrolar dos acontecimentos, as consequências de determinadas escolhas. Ao longo da história, vários estadistas tinham historiadores como conselheiros, para analisar as conjunturas e suas possibilidades. Historiadores, portanto, reconheceram riscos à democracia: alguns reconheceram traços de 1954 ou 1964 em 2016; alguns temem traços de 1968 em 2019. Sou uma pesquisadora do século 19 – e o que vejo são sinais das forças conservadoras, como o argumento de defesa da propriedade repaginado (no 19, tratava-se da terra e dos escravos). O que está acontecendo na Indonésia, na Turquia, na Hungria, nos Estados Unidos, o que está germinando na França… Os sinais estão e estavam dados. Não faltaram alertas para o Brasil.
Foram ouvidos?
Pois é, por que as pessoas não nos escutam? [risos] Não é culpa nossa. Não é por falta de pesquisa, de estudo, de análise. Muitos historiadores ficam injuriados e sentindo culpados por ter falado, falado, falado, e não ter sido ouvidos. Mas, observando nosso engajamento de 2016 para cá, penso que fizemos tudo o que era possível. E não só historiadores: juristas progressistas, profissionais da saúde coletiva, psicanalistas, artistas, auditores do trabalho, muitos grupos saíram de seus gabinetes, sem contar os movimentos sociais, que sempre estiveram nas ruas. Recuso sempre a ideia de que não houve resistência. Houve, sim. Há. E a resistência enfrenta repressão. Lembro da greve geral no Rio, em abril de 2017, um movimento lindo e enorme que teria um ato na Cinelândia, mas que foi dispersado pela polícia à bomba e bala de borracha. Lembro da violenta repressão à manifestação em Brasília, em maio de 2017, com bombas na frente do Congresso. Esses episódios mostraram que a democracia como tal já não existia mais. O direito à manifestação não existia mais. Com o tempo, imagino que logo vamos conseguir juntar melhor essas peças e compreender porque não fomos ouvidos. Vejo que no jornalismo, na história e nas ciências sociais, estamos tentando puxar o fio dessa meada, para entender como chegamos até aqui: nesse contexto em que a verdade foi totalmente relativizada e os métodos científicos de produção do conhecimento, desqualificados.
Surpreende a popularização de teses revisionistas, sobretudo a respeito da ditadura militar?
Após a redemocratização, diante de tantos estudos publicados, formou-se um consenso social de que a ditadura, afinal, deixou um legado negativo. Surpreende, sim, e nunca me passou pela cabeça imaginar que, um dia, tanta gente diria que a ditadura fosse reverenciar ditadores, torturadores ou pedir a volta da ditadura. Nos Estados Unidos, podemos ver os mesmos métodos de flexibilização da verdade, relativização das certezas e construção de uma narrativa paralela. Uma narrativa alternativa, que cresce por fora dos meios de comunicação tradicionais – mas, ao mesmo tempo, parcialmente facilitados pelos meios de comunicação tradicionais, no Brasil considerando o antipetismo construído desde os anos 2000. É preocupante que essa narrativa paralela já esteja sendo sustentada por uma bibliografia própria. Proliferaram esses livros revisionistas, sobre diferentes temas.Isso vem junto com as tendências atuais de anti-intelectualismo, irracionalismo e até ‘terra-planismo’. No Dia da Consciência Negra, recebi memes que criticavam Zumbi, dizendo que ele não fez nada pelos negros e tinha sido senhor de escravos, tentando puxar as atenções para a Princesa Isabel. Zumbi, século 17! Por que movimentos como MBL estariam tentando enfraquecer e descontruir Zumbi senão pelo fato de que ele é o maior símbolo da resistência, reverenciado pelo movimento negro? Isso é um projeto, uma estratégia.
À época candidato, Jair Bolsonaro declarou no Roda Viva que os próprios negros entregavam escravos – e foi fortemente rebatido, por exemplo, pela historiadora Lilia Schwarcz. O discurso de Bolsonaro lembra outra referência bibliográfica, o jornalista Leandro Narloch, que também questiona Zumbi. Superamos a herança histórica da escravidão no Brasil?
Claramente não superamos. Mas não vejo uma continuação simplesmente do racismo e da discriminação nos moldes do século 20, mas uma renovação no século 21. Isso porque, nos últimos anos, o movimento negro cresceu muito, conquistou projeção e possibilitou a implementação de políticas públicas para igualdade racial, a titulação de terras quilombolas, direito ao trabalho digno e o acesso à educação, perpassando vários pontos de demandas de reparação histórica. Diante desse movimento surge uma reação, que tenta relativizar o passado para minar e frear esse fervilhar. Ao explicitar as desigualdades e seus mecanismos, o movimento negro, ao lado dos movimentos de mulheres, dos LGBT, dos camponeses, dos indígenas, dos sem-teto, entre outros, vinha com potencial para transformar o país. E veio uma reação para minar essas transformações. No horizonte, podemos ver inclusive a criminalização desses movimentos.
O movimento Escola Sem Partido também pode ser lido como uma reação às transformações dentro das universidades da última década?
Sem dúvida. Faz tempo que vem sendo gestada uma reação contra políticas públicas inclusivas na educação. Na Lei 10.639, de 2003, por exemplo, incorpora-se o ensino de história da África e cultura afro-brasileiras, nos livros didáticos e na educação básica. Grupos conservadores, evangélicos particularmente, já reclamavam sobre o conteúdo passado a seus filhos – não gostavam, por exemplo, da ideia de tratar de religiões afro-brasileiras, que são vistas como macumba e coisa do diabo. Isto é, há mais de uma década, as escolas são palco desse enfrentamento que, de certa forma, tem a ver com a herança da escravidão. Desde os anos 2000, assistimos ao fortalecimento desses grupos evangélicos, com a composição de bancadas. O Escola Sem Partido une esse elemento e a “ideologia” de gênero. É uma estratégia inteligente, tentando desviar a atenção para um pretenso moralismo, como se fosse para proteger a “família” – um discurso que consegue atingir bastante gente. Na verdade, eles não estão preocupados com a família, mas com o avanço de pautas progressistas a respeito da igualdade de gênero e da diversidade, contra a homofobia, o machismo e o racismo. O Escola Sem Partido é um braço para tentar frear a escola democrática, diversa e plural, que preza pelo pensamento crítico e pela formação para a cidadania.
Por fim, professora, os ventos não são bons. Há motivos para ser otimista?
Tento ser otimista. Tento disfarçar as evidências [risos]. Todos os sinais apontam para tempos ruins. Pode vir um governo marcado por ultraliberalismo econômico e privatizações, o que será um horror, com a pauperização e a miséria, uma Argentina. Mas pode vir um tom de 1968, de perseguição política violenta, uma Turquia. Pode ser uma perseguição truculenta de feitio militar, ou pode continuar sendo um ataque sistemático dos opostivos por lawfare a partir de acusações distorcidas dentro do Judiciário. Pode ser 1964 primeiro, ou 1968 direto. Quer dizer, todos os cenários estão passando na nossa cabeça. Mas nós somos muitos. A resistência se dará em muitas frentes. Uma delas é certamente a produção e difusão de conhecimento, para criar condições de desmontar a imbecilização dessa narrativa paralela à realidade. É quase um cenário de ficção científica, de distopia.
*Por Juliana Sayuri, jornalista e historiadora. Autora de Diplô: Paris – Porto Alegre (2016) e Paris – Buenos Aires (2018)