Quem foi Sergio Vieira de Mello?
O elitismo dentro do Itamaraty e no judiciário brasileiro
Diante do lançamento de “Sergio”, longa protagonizado pelo ator Wagner Moura, na Netflix, me perguntei por que poucos brasileiros sabem quem foi Vieira de Mello? Presença de extrema importância , o diplomata e Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, por mais de três décadas, construiu uma extensa credibilidade, trabalhando em todos os grandes conflitos que definiram os últimos 40 anos Sergio é tido como o funcionário mais importante na trajetória da ONU até hoje. Citando algumas de suas importantes missões, ele atuou no Paquistão Oriental, Sudão, Moçambique, Bósnia, Camboja, Kosovo, Peru, Timor-Leste e Iraque. Neste último país, em 2003, foi morto junto com 21 colegas num ataque terrorista da Al Qaeda contra a sede da ONU, que foi totalmente destruída.
O filme, que pode apresentá-lo para milhares de pessoas, destaca o seu envolvimento com a diplomata argentina Carolina Lerriera. Recomendo a pesquisa sobre o que aconteceu após o falecimento de Sergio. Larriera, que hoje assume a direção do Centro Sergio Vieira de Mello no Rio de Janeiro, mantém posicionamento crítico à forma como a ONU a tratou no episódio — sem a reconhecer como companheira oficial, formalidade conquistada apenas em 2017 — e aos esforços medidos durante o resgate em Bagdá.
Minha reflexão acerca do distanciamento da população sobre este, entre outros diversos acontecimentos que figuram o Ministério das Relações Exteriores e que atravessam o Poder Executivo, com suas expressivas pautas que poderiam ser acessadas por todos nós, recai sobre a educação. No Brasil não somos estimulados a gostar e nem ler sobre ou discutir sobre política nacional, internacional e economia. Sabemos também que não é de interesse de muitos governos que a sua população seja informada e munida de pensamento crítico. Muitas decisões acordadas com países distantes e pouco comentadas podem trazer consequências sérias ao longo do tempo na nossa casa. E a gente fica sabendo? Não.
O que é e como funciona o Itamaraty? O que significa ser diplomata, qual a importância disso? Diferença entre consulado e embaixada? Durante meu breve namoro com a possibilidade de embarcar no Instituto Rio Branco (IRBr) em Brasília, pesquisei muito para entender se aquilo tinha realmente a ver comigo e, nessas investigações percebi (e não teve grandes mudanças atualmente) o quão elitista – estamos falando do concurso mais difícil do país, maioria ali dentro é masculina e branca -, anacrônico, seletivo e distante da população brasileira: Itamaraty tem 283 anos e o Instituto Rio Branco 75 anos.
Sexismo e racismo institucional como obstáculo
A baiana Maria José de Castro Rebello Mendes foi a primeira mulher diplomata no país, aprovada em primeiro lugar na então Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Mesmo um século após o ingresso da primeira mulher na carreira, o número de mulheres na área continua baixo e, para responder o motivo dessa condição, apresentar o histórico do pioneirismo de Rebello e outras colegas e explicitar importantes pautas como a pouca representatividade de diplomatas negros e a situação dos direitos de diplomatas em relações homoafetivas, que o Grupo de Mulheres Diplomatas, formado em 2013, em parceria com a Associação de Diplomatas Brasileiros (ADB), produziu o documentário “Exteriores – Mulheres na diplomacia brasileira”, disponível gratuitamente no Vimeo.
De acordo com informações no site do Instituto Rio Branco, os cargos diplomáticos são preenchidos atualmente por 368 mulheres, de um total de 1.571 diplomatas, o que corresponde a aproximadamente 23,4% do efetivo. Nenhuma das onze embaixadas do Brasil na América do Sul é chefiada por uma mulher e mais: nunca existiu uma Secretária-Geral ou Ministra das Relações Exteriores.
Quando se trata de mulheres negras a invisibilidade duplica, a primeira diplomata negra ali foi Mônica Menezes de Campo, que ingressou no início de 1980, entretanto faleceu precocemente. Não existe um percentual de pessoas negras na carreira, o que sabemos é que são poucos no Brasil – inclusive esses, no passado, já foram reprovados em entrevistas por serem negros-, evidenciando mais uma vez o mito da democracia racial. Há uma interseccionalidade de raça, gênero e classe, que se traduz no racismo institucional, sexismo e nas opressões frequentes contra grupos minoritários na nossa sociedade e que, diante do legado da escravidão ainda pouco tratado com eficácia, faz com que a gente não se acostume a ver mulheres e pessoas negras na alta burocracia do Estado. Lugar de mulher, inclusive negra, é no Itamaraty mesmo com o obsoleto machismo negando que mulheres estejam aptas para cargos de prestígio político.
Em um ambiente tão hostil que diz que a atuação feminina é limitada e onde ocorre a desfeminização da mulher, é necessário que a desconstrução de tais preconceitos parta primeiro das próprias mulheres. Por mais frustrante que seja presenciar o preterimento por questões de gênero e raça, é de suma importância a discussão de tais obstáculos para sensibilizar a todos. A negação intelectual às mulheres e o racismo estruturante normalizado em espaços conservadores, causam lentidão na democratização do corpo diplomático. Medidas afirmativas no ingresso de negros na carreira auxiliam a busca por mais diversidade dentro no Itamaraty, assim como a rede de apoio entre mulheres diplomatas que brandamente balançam as estruturas seculares de um órgão que tradicionalmente privilegia homens brancos. É fundamental permitir que indivíduos – homens e mulheres – de minorias étnicas representem cada vez mais de forma positiva o Estado em altas chefias.
Novas linguagens
Possíveis caminhos para a aproximação da população (até mesmo mulheres que pensam em prestar o concurso): uma boa educação de base e a adoção de uma nova (s) linguagem (ns) para veicular as atuações e o trabalho da política interna e mundial. Todo mundo tem que gostar de política e economia? Não, mas merece a oportunidade de se aproximar para compreender minimamente o que se passa.
A área jurídica recebe igualmente boas críticas e nota baixa no que se refere à proximidade (ou a falta dela) com os cidadãos. É natural que o jurisdicionado (quem está sob o julgamento de um juiz) não entenda nada da sentença que é proferida tendo ele como parte no processo, pois a decisão vem acompanhada de jargões jurídicos, expressões em latim e frases mal escritas.
Literalmente é falar outro idioma, novas linguagens devem ser estabelecidas num Brasil de enorme proporção geográfica e distintas realidades. Parece que as pessoas possuem noção, mínima que seja, da relevância que as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (outro ambiente masculino e branco) têm no dia a dia. É preciso superar hierarquias hegemônicas que ditam que apenas um número reduzido de sujeitos pode consumir com facilidade determinados conteúdos (e esse sujeito tem gênero, classe e cor).
A importância da atuação diplomática na conjuntura brasileira, como se dá a colocação do país no mundo e nossos complexos assuntos políticos internos são sim de interesse público. Até quando vai continuar a panela que exclui a pluralidade como componente valioso na administração da nossa pátria?
Assistam Sergio.
Júlia de Miranda é jornalista, ativista, feminista negra e antirracista.