Quem organiza a violência?
Um homem negro foi atacado a facadas por um homem branco. A Brigada Militar foi acionada e, quando chegou ao local, prendeu a vítima da agressão e não o agressor
As notícias sobre o Carnaval 2024, infelizmente, não tratam apenas da festa e da alegria, como deveriam. Ao contrário, nos deparamos com situações extremamente violentas e com fortes doses de manifestações preconceituosas que se estenderam até o final de semana posterior. Boa parte dessa violência veio de quem deveria proteger a população, as forças de segurança pública.
Nesse sentido, o Rio Grande do Sul destaca-se pelo grau de violência e truculência, em especial da polícia militarizada chamada Brigada Militar. Em Porto Alegre, a polícia reprimiu, em mais de uma oportunidade, celebrações de ruas e desfiles de blocos de carnaval com bombas de efeito moral, spray de pimenta, cavalaria, bombas de luz e disparos com munição de borracha. A Brigada Militar agrediu com golpes de cassetete uma foliã, em São Borja, depois de já ter sido imobilizada. E a instituição ainda fala em processar a foliã “por atirar um copo de cerveja” nos policiais. Como se isso justificasse a truculência e desproporcionalidade da reação daqueles que detém a prerrogativa de repressão física e armada em nome do Estado. Quem deveria proteger a população, ao contrário, agride a mesma. Agressões que são agravadas conforme a cor da pele.
Ainda na capital, neste sábado, um homem negro foi atacado a facadas por um homem branco. A Brigada foi acionada e, quando chegou ao local, tratou de impor constrangimentos verbais, imobilizou e prendeu o homem negro, vítima da agressão. Provavelmente a situação só não foi pior pela reação dos vizinhos que protestaram, gravaram e cobraram os policiais que levassem o agressor. O governador Eduardo Leite minimizou o episódio e sequer reconheceu – pra dizer o mínimo – o despreparo e equívoco dos oficiais que atenderam a ocorrência. Muito menos o racismo explícito naquela cena.
Tudo isso podia ter sido muito pior. Nas periferias das cidades os negros têm sido permanentemente humilhados e julgados sumariamente pela polícia. Não fossem as manifestações dos cidadãos e das redes sociais, daqueles que já estão cansados dos abusos da autoridade armada do Estado e seu tratamento desigual e frequentemente discriminatório, este seria apenas mais um caso, que segundo o discurso do governador é uma exceção. Todos esses episódios são exemplos do extermínio cotidiano da população negra do país. Esses casos repetem-se cotidianamente e, graças às redes sociais e a indignação da população – mesmo aquela não preta que já entendeu a importância da luta contra o racismo – são cada vez mais trazidos à luz e denunciados, deixando aparente o racismo estrutural que tentamos denunciar há décadas. E que agora parece encontrar, cada vez mais, eco na sociedade. Falta, ainda, algumas autoridades públicas e, em especial, as forças de segurança compreendê-lo e combatê-lo. Já está claro que estão longe de serem episódios isolados. Rapidamente poderíamos lembrar de uma dúzia de episódios semelhantes.
Entendo, portanto, que as forças de segurança precisam passar por reposicionamento e atualização de seus protocolos. É na academia de polícia que as condutas racistas e discriminatórias têm sido ensinadas, invisibilizadas e perpetuadas, a academia precisa mudar. As polícias precisam aprender sobre Direitos Humanos e direitos antidiscriminatórios.
Mas também entendo que ela não é a única responsável. Vivemos em um contexto de violência. A nossa sociedade normalizou o uso da força em amplos aspectos. Assim, é preciso compreender que a violência é um contexto que precisa ser enfrentado e superado. As forças de repressão do Estado foram organizadas para resolver conflitos, com recurso à força e à agressividade. A sociedade também parece estar violenta, e isso se expressa em muitas instâncias. Nos últimos anos, grupos sociais e políticos específicos tentaram normalizar o uso do ódio e da violência – inclusive na política – como justificável. Liberação de armas, elogio a agressões, ataques de ódio a adversários, fazem parte de um discurso que não apenas incentivou, como tentou normalizar o uso da violência na sociedade. Por isso, precisamos enfrentar esse discurso e desarmar, literal e metaforicamente, a sociedade. É necessário caminharmos para uma cultura de redução da violência e, para isso, precisamos fugir da armadilha da força e da repressão como forma de resolver conflitos. Precisamos organizar a paz, a cidadania ativa e a democracia, com inclusão do povo brasileiro como única forma de bem viver em sociedade. E, acima de tudo, combater a visão que identifica as pessoas pretas como alvos prioritários dessa violência.
Jeferson Aguiar, advogado e professor de Direito.