Quem tem medo de Cristina Kirchner?
Cristina diz ser uma fuzilada viva. Foi alvo não somente do tiro mas também dos meios de comunicação hegemônicos do país, do macrismo, do mileismo, e não raro, de setores do peronismo. Frequentemente é considerada culpada por todos os problemas sociais, políticos e econômicos que a Argentina tem enfrentado
Quando Lula foi preso houve uma campanha vibrante dos/as latino-americanos se solidarizando com a injustiça pela qual o ex-presidente brasileiro estava passando. No entanto, por que todos estão em silêncio em relação ao caso de Cristina Fernández de Kirchner (CFK)?
Ora, não sejamos ingênuos/as, a violência política sempre terá um rosto: o feminino. Em um violentrômetro da política, com uma medição dos graus e tipos de violência direcionadas às mulheres, CFK seria capaz de zerar todos. Condenada na semana passada pela Suprema Corte Argentina a seis anos de prisão – que será cumprida em regime domiciliar, pelo fato de ter acima dos 70 anos –, Cristina também foi proscrita, isto é, proibida a concorrer a qualquer cargo público pelo resto de sua vida.

Violência política não é novidade para CFK, ela tem sido, desde o início de sua vida pública mas sobretudo quando passou a destacar-se no campo político, criticada por seu cuidado excessivo com os cabelos, pelas escolhas estéticas (chamada de cafona, inapropriada e feminina demais), pelo número de pares de sapatos que possui, frequentemente se dirigem a ela como uma pessoa autoritária, frívola, histérica, instável e tantos outros adjetivos capazes de serem relacionados a qualquer mulher que ousa disputar cargos políticos. No período que vestiu o luto após o falecimento de Néstor Kirchner, seu companheiro de vida e de política, foi criticada. Quando apareceu vestida de outra cor, adivinhem só? Foi também criticada. Logo, já começaram as insinuações sobre sua vida afetiva e sexual. Montagens e deepfakes com ridicularizações e sexualização de sua imagem também fazem parte do repertório de violência das quais já foi vítima.
Não muito distante, em 2022, ela foi alvo de uma tentativa de feminicídio político. A bala direcionada ao seu rosto por uma sorte do destino não saiu, mas os traumas psíquicos certamente foram imensos. Cristina diz ser uma fuzilada viva. Foi alvo não somente do tiro mas também dos meios de comunicação hegemônicos do país, do macrismo, do mileismo, e não raro, de setores do peronismo. Frequentemente é considerada culpada por todos os problemas sociais, políticos e econômicos que a Argentina tem enfrentado. Sempre é mais fácil direcionar às críticas a uma mulher, não?
Mas afinal, por que Cristina causa tantos sentimentos assim? Vilma Ibarra, no livro Cristina vs. Cristina, el ocaso del relato de 2015, diz que na Argentina, quando Cristina Kirchner não está falando, todos/as estão falando dela. Passados dez anos desde essa frase, é inevitável dizer que mesmo com o ingresso e saída de diversos personagens no campo político argentino, ela ainda é quem protagoniza a cena pública. Talvez, isso ocorra por ser a herdeira natural do peronismo no país, já que dizem que a identidade argentina está cindida entre peronismo e antiperonismo. Isto é, o peronismo é o eixo que organiza a vida política do país, já que a nação se divide entre aqueles/as que se identificam com o movimento e os/as que se definem contra ele.
Recentemente, analistas políticos afirmaram que o cenário de condenação de CFK, ainda que à primeira vista fosse favorável a Javier Milei após a exclusão de sua principal adversária do jogo, na verdade, poderia prejudicá-lo. Isso porque o presidente anarcocapitalista perderia muito com a inelegibilidade vitalícia da peronista, uma vez que sua estratégia política é conquistar votos por meio dos discursos de ódio dirigidos a um/a inimigo em comum, e no caso, sempre foi Cristina.
Neste momento de tantas dúvidas, o que todo mundo se pergunta é como será o campo político argentino sem sua principal liderança política? Como o peronismo e o kirchnerismo se reorganizarão?
Uma das frases mais tradicionais do peronismo, de autoria de Leopoldo Marechal, diz que o peronismo é como o outono e que, mesmo envolto em folhas secas, está carregado de sementes. Assim, como o outono pode parecer um fim, na verdade, carrega sempre a possibilidade de um novo começo. A alta capacidade de regeneração do movimento social, político e partidário marca o que entendemos como peronismo – tanto que é extremamente fragmentado em setores da esquerda, social-democrata, centro-direita e até mesmo chegou a encampar políticas neoliberais no período do governo de Carlos Menem (1989-1999). Descrentes da capacidade de rearticulação do peronismo que se desgastava, sobretudo após o falido governo de Alberto Fernández (2019-2023) e a derrota de Sergio Massa nas eleições presidenciais de 2023, a direita e extrema-direita argentina têm estado desconfortáveis desde a condenação de CFK com a união recente de lideranças peronistas que há muito não dialogavam.
Outro desconforto causado é o fato de que, após receber a sentença, CFK foi para sua casa localizada no bairro Constitución e, a partir deste dia, as ruas ao redor foram tomadas por militantes que fazem vigília dia e noite em frente à sua residência. Por isso não são raras as saídas da política ao terraço, assim como fazia Eva Perón nos históricos balcões da Casa Rosada. Cristina tem recebido o carinho de seus/suas apoiadores/as que entoam canções tradicionais ao peronismo, como “vamos a volver” e que a fazem dançar. O não tem agradado aos jornalistas, que veem essa ação como imprópria a uma pessoa que foi condenada e proscrita: Por que não chora? Perguntam indignados. Não tão distante, a mesma pergunta era feita para Dilma no período do impeachment: Por que não chora?
Porque para as mulheres será sempre mais caro e se tem algo que é preciso para as políticas, além de diversas qualidades compactuadas para o exercício político, é uma boa dose de resiliência.
No artigo Mulheres políticas: estratégias de legitimidade e recursos mobilizados por Cristina Kirchner, publicado com Ana Paula Hey (professora da USP) em 2023, identificamos que a trajetória política de Cristina a coloca em uma posição privilegiada como uma das grandes lideranças femininas mundiais, sendo vitoriosa em todas as eleições que disputou; e não foram poucas. Sua lista conta com o fato de ter sido eleita duas vezes deputada estadual e senadora de Santa Cruz, senadora de Buenos Aires, duas vezes presidenta, vice-presidenta e presidenta do Senado. Invicta nas urnas, Cristina causa medo (ou seria terror?) e talvez, por isso, as violências por ela vivenciadas neste momento sejam as institucionais por meio do lawfare – guerra jurídica.
Não se trata de um fenômeno estratégico exclusivo da Argentina, mas parte de uma ofensiva neoconservadora articulada na América Latina, como o que se viu na Lava Jato no Brasil, no impeachment de Dilma Rousseff e em processos vivenciados após governos de esquerda que desafiaram as elites tradicionais, como Evo Morales, Rafael Correa e Manuel Zelaya. Isto é, em um contexto de polarização política, a instrumentalização do sistema judicial por setores conservadores é um cenário favorável para a criminalização de adversários/as políticos/as. Não obstante, muitas vezes os processos judiciais são considerados frágeis, e são acompanhados por vazamentos de informações à mídia com o objetivo de criar rusgas na imagem pública de determinada pessoa (ou governo) para aderir a pecha de culpabilidade (que em geral, vêm sob o discurso de “corrupção”) antes mesmo do julgamento.
Vale destacar também que, quando o lawfare opera para a descredibilização de uma mulher política, a misoginia é escancarada nas narrativas utilizadas. Tanto que a mídia e setores do Judiciário frequentemente reforçam estereótipos de gênero, associando a política a rótulos bem além de corruptas, mas também como ineptas e emocionalmente instáveis – já que o campo político é um negócio de homens. Assim, esse tipo de narrativa raramente é direcionada com a mesma intensidade aos homens em situações semelhantes. Esse tratamento diferenciado não apenas prejudica e mina as carreiras políticas de mulheres, mas também reverbera a mensagem de que, ainda hoje, não são bem-vindas ao espaço público.
Em relato autobiográfico de quase seiscentas páginas, no livro Sinceramente, lançado em 2019, CFK afirmou que esses processos condenatórios dos quais têm sido vítima, foram impulsionados por setores políticos, midiáticos e judiciários com o objetivo de deslegitimar o peronismo e, principalmente, de impedir sua volta ao poder. É por isso que precisamos falar sobre o que ninguém fala e precisamos colocar luz às narrativas misóginas, racistas, classistas e homofóbicas que tornam a permanência na política árdua para as mulheres, pessoas racializadas e LGBTQIA+, do que para os adversários que veem no campo político um espaço natural aos seus corpos.
Como afirma Sara Ahmed, nós feministas somos chamadas de inconvenientes ou estraga prazer por mexer nas estruturas, questionar e desestabilizar as ordens historicamente naturalizadas. Contudo, precisamos de fato falar sobre Cristina, assim como precisamos falar de todas as outras como Evita Perón, Marina Silva, Berta Cáceres, Dilma Rousseff, Patricia Arce, Marielle Franco, Ofélia Fernández, as deputadas de Minas Gerais e de São Paulo, as Madres e Abuelas da Plaza de Mayo etc. A reivindicação de uma revisão da condenação de CFK não é apenas uma demanda argentina, mas deve ser uma agenda transnacional de combate ao descrédito pessoal e político, que sistematicamente visa minar a legitimidade das mulheres perante a opinião pública. Por isso, é preciso dar um recado de que a violência política contra as mulheres, além de ser um ataque às representantes políticas, é um ataque às democracias e não será tolerada.
O lawfare vai, portanto, além de uma simples tática jurídica e deve ser compreendido como um componente-chave na contraofensiva (neo)conservadora. Sua estratégia não se limita à judicialização da política, mas também busca deslegitimar e desmontar conquistas progressistas, como direitos sociais, políticas de reconhecimento, de igualdade de gênero e avanços feministas. Não à toa, completando dez anos desde que os feminismos argentinos saíram às ruas para reivindicar Ni Una Menos, elas voltam à cena juntamente com movimentos sindicais, estudantis, organizações de bairro e as Mães e Avós da Praça de Maio para reivindicar: “Cristina libre. Ni Presa, Ni Muerta, No a la cárcel, No a la Proscripción. Ni Una Menos!”
Jéssica Melo Rivetti é doutora com Cotutela e Dupla Titulação pelo programa de Pós-Graduação em Sociologia na USP e em Filosofia Política pela Universidad de Granada (Espanha). Autora do livro Las Evas de Cristina (2023), publicado pelo Grupo Editorial Universitário (Argentina).