Quem tem medo dos Conselhos de Comunicação?
A polêmica em torno da criação desses instrumentos veio para manter uma confusão que já tem mais de 20 anos. A proposta de fundar Conselhos para a área de comunicação apareceu pela primeira vez de forma organizada no processo que resultaria na Constituição Federal de 1988 e nada tem a ver com censuraIntervozes
Para quem acompanhou a imprensa e os telejornais no mês de outubro, além da saturação com o noticiário eleitoral, sobrou a sensação de que a mídia brasileira está sob ameaça de censura. A aprovação de um projeto na Assembleia Legislativa do Ceará que indica ao governo daquele Estado a criação de um Conselho Estadual de Comunicação foi tratada como uma afronta à liberdade de expressão, vinda de setores que querem impor o controle prévio do conteúdo a ser veiculado.
Os mais céticos ou prevenidos em relação à forma como a mídia trata as notícias que a afetam diretamente sabiam que a história não devia ser bem assim, mas não encontraram nos grandes meios de comunicação visões contraditórias ou explicações fidedignas sobre as atribuições do tal Conselho. Os grandes meios de comunicação foram atrás de outros Estados que tinham projetos semelhantes para também tentar atirá-los à fogueira. Já a Ordem dos Advogados do Brasil afirmou que o projeto era inconstitucional e seus defensores – sob a alcunha de “liberticidas” – mal foram ouvidos. O papa não se pronunciou, mas a impressão é de que o faria se fosse necessário. Mas, afinal, por que a expressão “Conselho Estadual de Comunicação” gera tantos calafrios a ponto de se converter em tamanha heresia?
Na carta magna
A polêmica em torno da criação de Conselhos Estaduais de Comunicação veio para manter uma confusão que já tem mais de 20 anos. A proposta de fundar Conselhos para a área de comunicação apareceu pela primeira vez de forma organizada no processo que resultaria na Constituição Federal de 1988. Buscando uma forma de eliminar a manipulação política em torno das concessões de rádio e TV, a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) apresentou uma emenda popular que previa um Conselho Nacional de Comunicação composto por entidades da sociedade civil, partidos e governo, com amplas prerrogativas de deliberação sobre as outorgas, submetendo suas decisões ao Congresso Nacional.
A ideia, na verdade, já havia aparecido na Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, coordenada por Afonso Arinos. Durante o processo constituinte, os deputados do PMDB Cristina Tavares e Artur da Távola, relatores respectivamente da subcomissão e comissão responsável pelo tema, mantiveram a proposta do Conselho, mesmo sob ataque das emissoras de rádio e televisão, que não queriam nenhum órgão independente com tal poder. Como o relatório da comissão não foi aprovado, coube à comissão de sistematização, relatada pelo também peemedebista Bernardo Cabral, dar nova redação ao capítulo.
Na versão que viria a ser aprovada, o Conselho Nacional de Comunicação virou um retalho do que era nos textos anteriores. Rebatizado de Conselho de Comunicação Social, passou a ser apenas consultivo, tendo caráter auxiliar ao Congresso Nacional. Mesmo assim, demorou 14 anos para ser instalado, funcionou por duas gestões e, desde 2006, está inativo e sem renovação de sua composição pela mesa do Congresso.
No âmbito dos Estados, uma série de constituições aprovadas em seguida à Carta Nacional também previram a criação de Conselhos de Comunicação. Nos textos constitucionais de Pará, Bahia, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás, Conselhos do setor estão previstos expressamente com dois papéis centrais: apoiar as instâncias federais na garantia da implementação dos princípios da Constituição Federal e planejar e executar as políticas estaduais de comunicação. Como se vê, nada que se assemelhe à censura.
Participação social
A criação de Conselhos para construção participativa de políticas públicas e controle social sobre serviços públicos foi uma conquista, firmada na Constituição de 1988, que representou o fortalecimento da democracia brasileira. Já em 1989, por exemplo, o Estado do Rio de Janeiro aprovava sua carta estadual prevendo nada menos que dez Conselhos deste tipo: Direitos Humanos, Direitos da Mulher, Defesa da Criança e do Adolescente, Política Agrária, Meio Ambiente, Saúde, Educação, Cultura, Alimentação e Nutrição e, finalmente, Comunicação.
A adoção desse tipo de medida é fruto do reconhecimento de três questões: 1) dentro do pacto federativo, os Estados devem ter autonomia para construir políticas específicas para setores estratégicos; 2) a sociedade organizada deve ter meios de participar diretamente da construção de políticas públicas; 3) a sociedade organizada deve ter condições de praticar o controle social sobre serviços públicos exercidos em seu nome.
Com a comunicação não tem por que ser diferente, especialmente se considerados dois fatores. O primeiro é a necessidade de garantir o direito à comunicação da população, que inclui, mas não se limita ao direito à liberdade de expressão e ao direito de acesso à informação. Isso passa, hoje, por pensar desde o fomento à pluralidade e diversidade na comunicação até a garantia do acesso à banda larga por meio de políticas locais de inclusão digital. Portanto, por regulação e políticas públicas.
O segundo fator é que tanto nas telecomunicações como na radiodifusão, a base do sistema são serviços públicos que atuam sob outorgas de concessão, permissão ou autorização, e que devem estar sujeitos a regras que garantam o cumprimento do interesse público. É o caso do rádio, e da televisão e da telefonia. Negar a possibilidade de compor Conselhos Estaduais é negar que a comunicação deva ser objeto de regulação e políticas públicas.
Atribuições típicas
O debate sobre esses Conselhos voltou à carga depois da 1a Conferência Nacional de Comunicação, ocorrida em 2009, que reuniu representantes do poder público, setor empresarial e sociedade civil para discutir diretrizes para o setor. Entre as mais de 600 propostas aprovadas, havia algumas que tratavam justamente da formação de Conselhos Estaduais, apontando-os como instrumentos auxiliares de regulação e construção de políticas públicas. Foi nesse contexto que o debate foi retomado em Estados como Ceará, Piauí, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso. Em Alagoas, o Conselho já existia desde 2001.
As propostas vão ao encontro do que já propunham diversas constituições estaduais. Afirmam a democracia e a liberdade de expressão e trazem, em geral, atribuições de dois tipos aos Conselhos. A primeira é ser um espaço de construção e execução de políticas estaduais de comunicação, dando racionalidade e articulação a elas, preenchendo lacunas dos governos em termos de estruturas administrativas aptas a desenvolver políticas de comunicação sob a perspectiva dos interesses sociais e como vetor de desenvolvimento.
Geralmente, as secretarias de comunicação são meras assessorias de imprensa e responsáveis pela distribuição das verbas publicitárias do governo. As ações das emissoras públicas, empresas gráficas, ouvidorias e até secretarias – em especial as que têm relação mais direta com a comunicação, como cultura, educação e ciência e tecnologia – são desarticuladas. Os conselhos teriam um papel de auxiliar o governo na condução de pontos convergentes entre esses órgãos, dando coesão e coerência à política estadual. Poderiam, por exemplo, cobrir o vácuo no planejamento da distribuição de verbas publicitárias oficiais. Em 2009, os governos estaduais gastaram R$ 1,69 bilhão no setor1, valor em crescimento progressivo ano a ano. São Paulo é o recordista e representa 20% desse total: R$ 311 milhões2. Essa distribuição, longe de qualquer controle social, costuma ser mediada por critérios políticos, numa relação ecológica complexa entre governos e meios de comunicação, que se alternam, de acordo com a localidade, no papel de chantagista e chantageado. Na “melhor” das hipóteses, prevalecem critérios técnicos, em que a audiência é usada como única referência e a política de distribuição de verbas publicitárias acaba reforçando sistemas concentrados de mídia. Neste cenário, os Conselhos podem se tornar espaços de racionalização das verbas publicitárias, protegendo empresas jornalísticas, governos e, especialmente, o cidadão.
Também teriam um papel de organização do sistema público de comunicação no Estado. Hoje, as emissoras estaduais têm pouca autonomia – tanto de gestão quanto financeira – em relação aos respectivos governos. A instalação de Conselhos daria a elas a oportunidade de garantir autonomia e responder a um planejamento coerente, que garantisse a primazia do interesse público. Já as emissoras comunitárias poderiam ser estimuladas e receber incentivos para a produção de programas.
No campo das telecomunicações, os Conselhos teriam outro papel estratégico diante da falta de espaços para planejar e dar consistência às políticas de inclusão digital, com acesso público e residencial à banda larga. Seriam instâncias de interlocução entre os Estados e desses com o governo federal.
Constitucionais e essenciais
A segunda atribuição dos Conselhos seria auxiliar no monitoramento e na fiscalização do cumprimento de obrigações constitucionais e legais das emissoras de radiodifusão, com o acompanhamento, em diálogo com a sociedade civil, de denúncias de violação de direitos humanos nos meios de comunicação locais.
Aqui, o ponto de maior confusão. Nenhuma das propostas dá aos Conselhos a atribuição de avaliar previamente o que deve e o que não deve ir para o ar. Os Conselhos de Comunicação não podem, não devem nem irão desrespeitar a Constituição. Não se trata de censurar conteúdos, muito menos de definir a atuação da imprensa. A atribuição prevista é atuar no monitoramento e na fiscalização das obrigações legais e constitucionais, inclusive em relação ao conteúdo, o que, além de ser absolutamente constitucional, está em total consonância com a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros pactos internacionais sobre o tema ratificados pelo Brasil. “Nas democracias, há mais obrigações de conteúdo para a radiodifusão porque são empresas que estão usando um espaço público e porque o que veiculam tem um impacto muito grande. Por isso, questões como imparcialidade jornalística, proibição do discurso de ódio e proteção de crianças precisam estar previstas”, afirmou o canadense Toby Mendel, consultor da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em recente visita ao Brasil.
Ao criar os Conselhos de Comunicação, os Estados não estão definindo novas regras para a radiodifusão, o que é prerrogativa da União, mas apoiando a aplicação das regras já existentes, hoje muitas vezes ignoradas pelas concessionárias públicas de rádio e TV.
O Ceará, por exemplo, teve três programas notificados pelo Ministério da Justiça em 2004 por violação de direitos humanos: “Barra Pesada”, da TV Jangadeiro (SBT); “Cidade 190”, da TV Cidade (Record); e “Rota 22”, da TV Diário (Globo). Na Bahia, um monitoramento feito numa parceria entre Intervozes, Universidade Federal da Bahia e a organização Cipó sistematizou, no período de janeiro a julho de 2010, um conjunto de violações recorrentes nas afiliadas da Record e do SBT.
Os Conselhos podem se tornar espaços fundamentais para institucionalizar essas denúncias e dar a elas consequência, buscando uma interlocução direta com os empresários ou e estimulando ações do Ministério Público junto ao Poder Judiciário. Podem ainda atuar em parceria com o Poder Executivo federal e, eventualmente, com um Conselho Nacional de Comunicação.
O respeito às obrigações legais e constitucionais também se refere a questões estruturais de ocupação do espectro. O atual sistema centralizado não dá conta de acompanhar nem o que acontece em grandes cidades, como São Paulo. A capital paulista, por exemplo, tem, entre as 39 emissoras com permissão para transmitir em FM, 36 com outorgas vencidas e 22 com outorgas para outros municípios, mas com suas antenas em regiões centrais de São Paulo. Grupos que poderiam deter apenas uma permissão controlam até sete3. Em suma, um total desrespeito à legislação nacional e impossível de ser controlado por uma burocracia instalada em Brasília.
Diante da ausência de regulamentação de boa parte dos artigos da Constituição Federal referentes à comunicação e à incapacidade do Ministério das Comunicações e da Anatel em garantir o cumprimento das poucas regras existentes para o setor, pode-se dizer que as propostas de Conselho são estratégicas para os Estados responderem aos princípios constitucionais no campo das comunicações.
Críticas às críticas
Os Conselhos de Comunicação, portanto, nada mais são do que um espaço onde a sociedade brasileira, representada em toda a sua diversidade, dispõe de mecanismos para participar da política pública de comunicação, acompanhar a prestação desse serviço público pelas concessionárias e cobrar das devidas instâncias a responsabilização das emissoras diante de violações das normas previstas para o setor.
Tratar a legítima reivindicação da população de se fazer ouvir nesses processos, como ameaças à liberdade de expressão e de imprensa, é um movimento daqueles que pretendem conservar privilégios em um campo marcado pela falta de diversidade e pluralidade, concentração econômica, homogeneização cultural e desrespeito à legislação. O que a sociedade brasileira reivindica é justamente o exercício direto da liberdade de expressão por todos os segmentos, e não apenas por aqueles que detêm o controle dos meios de comunicação.
Ao presumir – e consequentemente impor à opinião pública – que as ideias que difundem refletem a vontade geral, os meios de comunicação de massa se afirmam como porta-vozes de uma pluralidade que ignoram e se julgam acima da lei. É dessa forma que o real cerceamento à liberdade de expressão no Brasil se consolida pela brutal concentração da propriedade dos meios de comunicação no país.
Não parece contraditório que aqueles que se arvoram o papel de informar corretamente queiram impedir o debate público e defendam um ambiente desprovido de quaisquer obrigações legais e de mecanismos de fiscalização?
A regulação da comunicação, com espaços institucionais de participação popular, está consolidada em todas as democracias do mundo como baliza para a construção de sociedades efetivamente plurais. Um seminário internacional4 realizado recentemente em Brasília pelo governo federal trouxe exemplos riquíssimos nesse sentido e mostrou como democracias reconhecidas, como França, Inglaterra, Espanha, Portugal e Estados Unidos, em vez de negar, fomentam essa prática.
Durante o seminário, Wijayananda Jayaweera, do Sri Lanka, Diretor da Divisão de Desenvolvimento da Comunicação da Unesco, falou com precisão: “O sistema regulatório existe para servir ao interesse público, e não necessariamente ao interesse dos radiodifusores. Deve garantir a pluralidade e promover a diversidade de ideias, de opiniões e de vozes numa sociedade”.
Se para esses países, com mercados de comunicação mais desenvolvidos e competitivos, os Conselhos não são considerados ameaça à liberdade de expressão, por que no Brasil deveriam ser? O debate está lançado.
Intervozes é o Coletivo Brasil de Comunicação Social.