Racismo ambiental existe
Se a expressão usada por Anielle Franco existe, qual é o motivo dos ataques deferidos contra a ministra? A falta de conhecimento do racismo ambiental é uma evidência óbvia de que os políticos opositores não possuem conhecimento básico acerca da questão racial brasileira
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, enfrentou críticas de parlamentares da oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após afirmar que os danos causados pelas chuvas que atingem o Rio desde a noite de sábado, 13, são “efeitos do racismo ambiental e climático”. Com a repercussão da afirmação de Anielle, os ministros Silvio Almeida (Direitos Humanos), Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas) saíram em defesa da chefe da pasta da Igualdade Racial.

Precisamos voltar um pouco. Nos anos oitenta, o movimento negro unificado desempenhou um papel crucial na formulação de teses que moldaram a luta antirracista no contexto brasileiro. Duas perspectivas destacaram-se nesse cenário: a amplamente aceita “raça e classe” e a menos difundida, mas não menos significativa, “raça e território“. Enquanto a primeira, fortemente influenciada pelas experiências antirracistas estadunidenses, propôs uma abordagem anticapitalista para enfrentar o racismo, a segunda enfatizou a importância das especificidades locais e ambientais na luta contra a discriminação racial, dando origem a um conceito vital que perdura até os dias atuais: o racismo ambiental.
A perspectiva “raça e classe” emergiu da análise das experiências antirracistas estadunidenses, sugerindo que o racismo desempenha um papel fundamental no sustento do capital e da exploração. Para os defensores dessa tese, a luta contra o racismo e a luta de classes deveriam ser entrelaçadas, uma vez que o racismo seria considerado um pilar estrutural do sistema econômico. Essa abordagem dominante no movimento negro unificado defendia que, ao combater o racismo, também se estaria desafiando as estruturas profundamente enraizadas no imperialismo mundial, leia-se: países que construíram riquezas através da exploração dos povos “colonizados”.
Em contraste, a tese “raça e território” destacou a existência de uma dimensão estruturante na luta antirracista que relacionava as questões territoriais e culturais, defendendo a necessidade de combater o racismo considerando as especificidades locais antes de expandir para questões globais. Apesar de não ter alcançado a mesma hegemonia que a abordagem “raça e classe”, essa perspectiva foi fundamental para a construção do conceito posteriormente reconhecido como racismo ambiental.
O Brasil abriga 11.403 comunidades informais, onde aproximadamente 16 milhões de indivíduos residem em cerca de 6,6 milhões de residências, conforme dados preliminares do Censo Demográfico 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este resultado representa um aumento de cerca de 40% na quantidade de brasileiros vivendo nessas condições na última década. “O Censo Demográfico de 2010 registrou 11,426 milhões de habitantes em comunidades informais naquele ano. Atualmente, a Sol Nascente, localizada em Brasília, é a comunidade mais populosa do país, com 87.184 residentes, enquanto a Rocinha, no Rio de Janeiro, que liderava o ranking em 2010, agora ocupa o segundo lugar em 2022, com 67.199 moradores. Em terceiro lugar, temos Cidade de Deus/Alfredo Nascimento, em Manaus, com 55.361 habitantes, seguida por Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, com uma população estimada de 54.793.”
Os dados mostram o quanto podemos ver da forma sistêmica, mesmo em diferentes lugares do Brasil, que a organização da pobreza se dá sob o mesmo ambiente urbano: as favelas. O conceito de racismo ambiental, forjado a partir da tese “raça e território”, trouxe à tona a interseção entre discriminação racial, questões territoriais e ambientais. O racismo ambiental refere-se à prática de deslocar comunidades racialmente marginalizadas para áreas contaminadas, sujeitas a poluição e impactos ambientais prejudiciais. Essa prática perpetua disparidades sociais, econômicas e ambientais, evidenciando como as comunidades negras são desproporcionalmente afetadas pelos problemas ambientais, e que direta ou indiretamente, fortalecem o racismo porque oferece uma miserável condição de vida.
Mas se a expressão alcunhada por Anielle Franco existe, qual é o motivo dos ataques deferidos contra a ministra? O linchamento político de pessoas negras é um padrão que muitas vezes resulta em julgamentos severos por ações que, embora possam ser equivocadas, são frequentemente de menor relevância. Essas ações são infladas de maneira a amplificar suas repercussões e influenciar a opinião pública a desqualificar líderes por motivos alheios às suas habilidades técnicas e suas realizações.
Nessa jornada, nomes de lideranças negras são enfraquecidos na política, a ponto de, com poucas exceções, não serem considerados para cargos relevantes.
Recordemos o caso da ministra Matilde Ribeiro, que, influenciada por um funcionário, fez uso equivocado do cartão corporativo e, como resultado, perdeu o cargo. Da mesma forma, o então ministro Orlando Silva foi destituído por consumir uma tapioca com o cartão corporativo, e a então ministra Benedita da Silva foi demitida por ter comparecido a uma igreja durante uma viagem internacional.
Todas essas punições revelam mais sobre o racismo do que sobre a capacidade intelectual da ministra. Anielle possui um currículo excepcional na defesa dos direitos humanos e uma longa trajetória de contribuições ao antirracismo. Uma crise política gerada por um incidente como esse é, em essência, um reflexo do racismo. Enquanto gestores incompetentes muitas vezes são protegidos e defendidos, gestores negros e negras podem enfrentar consequências severas por infrações menores.
É fundamental que, nesse contexto de luta política, nossos aliados e a esquerda como um todo combatam o racismo em suas formas menos evidentes, compreendendo as complexidades e subjetividades envolvidas. O racismo estrutural não só resulta na demissão, mas também mina a trajetória e a imagem das pessoas negras.
As teses do movimento negro unificado nos anos oitenta não apenas desempenharam um papel fundamental na configuração da luta antirracista no Brasil, mas também legaram um legado duradouro. A dicotomia entre “raça e classe” e “raça e território” não deve ser vista como uma contradição, mas como complementar. O conceito de racismo ambiental continua a desempenhar um papel central nas discussões contemporâneas sobre justiça social e em defesa do meio ambiente, lembrando-nos de que a luta contra o racismo não pode ser dissociada das dimensões territoriais e ambientais que permeiam as desigualdades estruturais como acesso à água, ao esgoto, à saúde e impactos dos fenômenos naturais como os desastres gerados pelas chuvas.
Na realidade, a falta de conhecimento da expressão “racismo ambiental” é uma evidência óbvia de que os políticos racistas do Brasil não possuem conhecimento básico acerca da questão racial brasileira, questão que é a principal construtora de violência, desigualdades, fome e pobreza.
Herlon Miguel é bacharel em administração e Mestrando em gestão de tecnologia aplicada à educação. Ele é o criador da plataforma “Ative a Cidadania” que forma, capacita e lança autores e autoras negras e da plataforma de comunicação “Negrito Lab”. Ele também é escritor do livro Amar pode ser perigoso. Instagram: miguelherlon