Racismo, mídia e esquerdas
“Na sociedade da tolerância opressiva, o lugar vetado para negras e negros é o da disputa da agenda política manifestado em sua pequena presença nas esferas governamentais, nos comandos dos partidos políticos e na mídia”, destaca Dennis de Oliveira, professor da ECA-USP, no quarto artigo da série especial “Racismo na mídia e na esquerda”
O movimento antirracista no Brasil encontra-se em um grande dilema: não obstante ter obtido vitórias significativas no plano institucional nos últimos vinte anos, os mecanismos de exclusão racial, dos quais se destaca a intensificação do extermínio de jovens negras e negros nas periferias, continuam e, mais ainda, contam com defesas cada vez mais explícitas.
Em um país marcado pelo que Darcy Ribeiro chama de “tolerância opressiva” (tolerar o outro para poder reinar sobre seu corpo e mente),1 à medida que políticas públicas possibilitam a negras e negros ocupar lugares antes destinados exclusivamente a brancos, como universidades, empregos qualificados e espaços de inclusão, a reação é imediata. No fim, esse discurso racista mais explícito sustenta os mecanismos de exclusão que se intensificam, não obstante os avanços no campo institucional.
O grande nó da esquerda em compreender o problema do enfrentamento ao racismo é entender essa contradição. Algumas organizações consideram que as políticas públicas são mal gerenciadas ou ineficientes, sinalizando para a expectativa de que seu aperfeiçoamento ou melhor gestão resolveriam o problema. No tocante às críticas à gestão, um diagnóstico comum é a pequena presença de negras e negros na máquina governamental. Essa constatação correta, que é uma manifestação do racismo institucional, parte do pressuposto de que a presença de negros e negras na gestão dessas políticas seria suficiente para que elas fossem mais eficientes no combate às desigualdades raciais.
Nessa órbita gravitam, em maior ou menor grau, as propostas de caráter multicultural e pós-moderno de pensar os conflitos sociais meramente na perspectiva da diversidade, sem levar em conta as hierarquias sociais construídas historicamente.
Em outra dimensão, em parte da esquerda prevalece ainda a velha ideia da diluição do problema do racismo dentro da estrutura geral da sociedade capitalista. O racismo seria, assim, mais uma mera manifestação da luta de classes, e, uma vez superadas as opressões classistas, as hierarquias raciais seriam paulatinamente desfeitas.
O grande problema das duas perspectivas mencionadas é desconsiderar as singularidades da construção da sociedade capitalista brasileira e, mais ainda, as características dos paradigmas de produção capitalista contemporâneos.
O ser periférico
O projeto republicano brasileiro constituído entre o final do século XIX e o início do século XX tinha como um de seus focos a exclusão do ser negro do centro da esfera pública. Essa ideia, inclusive, é subjacente aos estudos de pensadores como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, a despeito das grandes diferenças entre eles.
Os estudos de Nina Rodrigues que tipificavam o negro como um ser atavicamente violento levaram esse pensador a defender uma racialização da codificação penal no país. Influenciado pelo tom positivista da época, na qual se acreditava na ciência positiva como a narrativa necessária para a organização do país, Nina Rodrigues apresenta como pressuposto em sua obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil a ideia de que as raças humanas apresentam graus de evolução e inteligência distintos e, destes, uma moral específica.
Nesse sentido, ele declara-se contrário à ideia iluminista da existência de valores universais e do livre-arbítrio dos seres humanos. E essa posição anti-iluminista o leva a defender uma codificação penal específica para negros, indígenas e mestiços, dados seus estágios evolutivos diferenciados, que levam a comportamentos e valores morais distintos.
Em Gilberto Freyre, o conceito central para esta reflexão é o de equilíbrio de antagonismos, predominando entre eles, o mais profundo, o entre senhor e escravo.2
Equilíbrio de antagonismos não é uma ideia originariamente de Freyre, mas do pensamento social britânico do século XIX, que acreditava que os antagonismos existentes entre classes e grupos sociais eram dirimidos no âmbito do Parlamento. Na proposta de Freyre, o lugar para o equilíbrio de antagonismos é o núcleo da família patriarcal, portanto o espaço privado. Por essa razão, as relações de cunho pessoal, privado e íntimo – inclusive as sexuais –, são vistas por Freyre como espaços de equilíbrio dos antagonismos existentes, principalmente entre senhor e escravo.
A cordialidade, característica do sujeito brasileiro segundo Sérgio Buarque de Hollanda, caracteriza-se pela aversão à impessoalidade das relações sociais – característica do contrato social do Estado moderno – e advindas das intimidades e afinidades do seio da família patriarcal. Para Hollanda, “a nostalgia desse quadro compacto, único e intransferível, onde prevalecem sempre e necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, deixou vestígios patentes em nossa sociedade, em nossa vida política, em todas as nossas atividades”.3
O que há de comum entre todas essas considerações dos três pensadores sociais brasileiros, com todas as suas diferenças de enfoque político-ideológico? Que negras e negros, maioria da população brasileira e componente do polo subalternizado, por características atávicas (Rodrigues), culturais (Freyre) ou produtos de heranças históricas (Hollanda), não podem participar da esfera pública política. E isso implica sua marginalização e sua agenda específica nas instituições de representação democrática, sejam os meios de comunicação (inclusive de esquerda), sejam os partidos políticos (inclusive de esquerda).
Na sociedade da tolerância opressiva, o lugar vetado para negras e negros é o da disputa da agenda política manifestado em sua pequena presença nas esferas governamentais, nos comandos dos partidos políticos e na mídia. Outra manifestação desse processo é a quase que segregação de negras e negros nos espaços lúdicos, onde a relação com o público se pauta por elementos emocionais (ou “cordiais”) e se inserem em uma lógica de preferência privada (e não pública). Esse é o elemento estruturante da sociabilidade brasileira que dificulta que se constitua no país um compromisso na agenda política nacional pelo fim do racismo.
Annibal Quijano4 aponta que a categoria “raça” serviu como elemento de legitimação da divisão internacional do trabalho, inaugurada com a colonização da América e da África pelos europeus e mantida com a globalização do capital. O paradigma da democracia liberal como elemento societário das economias de mercado centrais tem como arquétipo de cidadão o homem branco. A hegemonia dos países europeus no capitalismo global se expressa por uma divisão internacional do trabalho na qual se concentra o trabalho sofisticado e de maior valor agregado; enquanto na parte não branca do mundo – negros e indígenas – se estabelecem os mecanismos de trabalho mais degradantes.
O racismo é o pilar de sustentação do poder global do capital, do imperialismo, dos processos de neocolonização e da concentração de riquezas. Políticas públicas pontuais introduzidas nos países da periferia do capitalismo têm limites para reduzir as desigualdades raciais, independentemente de sua qualidade, eficácia ou gestão, e, ainda assim, despertam a ira dos setores conservadores, pois arranham um arcabouço político-ideológico que sustenta o poder global do capital.
Necessário é deslocar o combate ao racismo para o centro da agenda política como categoria articuladora dos mecanismos de sustentação do poder global do capital, do imperialismo, da divisão internacional do trabalho atual, entre outras. Não é uma questão de dificuldade de tratar a “diversidade”, de problemas comportamentais ou uma mera manifestação da divisão de classes sociais.
*Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}