Rap à francesa
Como alternativa à anestesia da música bem-comportada, artistas e grupos como D’, La Rumeur e Keny Arkana propõem crítica social, resistência e resgate de direitos. Fincados nas periferias “problemáticas” e ligados à migração, eles não recuam nem diante dos boicotes, nem da censura
“Assuntos como a periferia não são uma questão de partido. Ao contrário, é preciso haver uma união republicana, um Plano Marshall para os bairros.” Não, este não é um discurso do presidente francês. As palavras são de autoria de Abd Al Malik, um rapper de origem congolesa para quem “é preciso livrar-se do saco de dores”, ou seja, dos rancores acumulados ao longo de séculos de exploração. Inspirada na religião sufi – a vertente “mística” do islamismo -, sua declaração encontrou um eco favorável em diversos setores da mídia, tanto de direita como de esquerda [1]. Afinal, era preciso tranqüilizar a população e os meios de comunicação depois dos motins de novembro de 2005, nos subúrbios de Paris.
Intitulado Gibraltar, o disco desse poeta foi recebido como uma bênção. A ministra da Cultura, Christine Albanel, outorgou a Abd Al Malik a insígnia de Cavaleiro das Artes e das Letras em 27 de janeiro de 2008. A ocasião foi um acontecimento para o sacrossanto Mercado Internacional do Disco e da Edição Musical (Midem), que saudou esse “expoente particularmente brilhante da cultura hip hop, preconizador de um rap consciente e fraterno”. O autor de “Qu?Allah bénisse la France” (Que Alá abençoe a França) agradeceu: “Simbolicamente, o que está acontecendo hoje me leva a amar ainda mais o meu país. Um dia, minha mãe me disse: ?Ame a França e a França também o amará?. Eu nunca me esqueci disso. Viva a França!”.
Alguns dias antes, por ocasião do lançamento de Spleen et ideal, novo álbum de seus colegas do coletivo Beni Snassen – cujo título retoma As flores do mal, de Baudelaire -o mesmo Abd Al Malik escrevera em seu site na internet: “Nós queremos retornar ao espírito inicial do rap, devolver-lhe suas letras de nobreza, mostrar que essa música é capaz de proporcionar inteligência, pertinência, uma estética, e não promover a separação dos seres. Os rappers podem influenciar uma ampla parcela da população. Esse lugar obriga-nos a mostrar responsabilidade” [2]. Ele afirma ainda ter como objetivo não reduzir o hip-hop a uma manifestação da realidade social. Uma ambigüidade curiosa quando se sabe que o alicerce dessa contracultura é justamente o destaque dado às minorias excluídas do sonho norte-americano. Mas a extrema previsibilidade do verbo de Abd Al Malik de modo algum pode calar o ruído que vem da periferia parisiense.
Finamente orquestradas [3], as palavras de Abd não deixam de ter um vínculo com a frase que Nicolas Sarkozy pronunciou na noite da sua eleição, em 6 de maio de 2007. “Eu quero acabar com o arrependimento, que é uma forma de ódio de si mesmo, e com a concorrência das memórias que alimenta o ódio pelos outros.” Para uma geração inteira que está em busca de explicações e às voltas com uma crise de identidade, essas palavras não param de alimentar reações epidérmicas de repulsa. Para ouvi-las, basta apontar o
microfone para figuras menos “admissíveis” do rap francês, tais como D’”. Essa frase é uma criação de antologias. Os políticos esvaziam
o sentido das palavras. Não são discursos, mas apenas comunicação. Para eles, ser político significa empilhar os consensos para agradar ao máximo. É o inverso da minha abordagem artística”, afirma.
Cada declaração de D’ é uma tomada de posição. Este radicalismo não é absorvido pelas rádios, que privilegiam versões pasteurizadas, como reivindicações indolares
Há mais de dez anos, esse martinicano vem mesclando seu timbre rouco com todas as formas de expressão. Em maio de 2007, fez um extenso poema em torno da escravidão, das suas ressonâncias sobre as culturas urbanas e de todos os não-ditos, para o seu espetáculo Ecorce de Peines (Casca de Penas). “Toda vez que eu abro a boca, ouço a voz dos nossos pais? Toda vez que eu grito, ouço o grito das nossas mães.”
Cada uma das declarações de D? é uma tomada de posição. O seu mais recente álbum afirma isso a partir do título: La théorie du K-O (A teoria do nocaute). Tamanho radicalismo não tem como encontrar um caminho nas ondas das rádios, que privilegiam versões pasteurizadas com reivindicações indolores. “O fato de a música Aux arbres citoyens (Árvores cidadãs), o hino revolucionário pop ecologista de Yannick Noah, estar no primeiro lugar nas paradas e de Sarkozy ser eleito, dizem um pouco a mesma coisa”, acredita o músico. A respeito dessa problemática, D? acenou com uma canção, Démocratie mourante (Democracia moribunda): “Eles apelam para a gente votar, mas a gente não acredita mais / eles nadam contra a própria vontade, mas querem que a gente vá atrás deles / ser um cidadão é recusar os abusos”.
Mas D? não é o único a fazer uma análise inversa àquela apresentada por Abd Al Malik. “Karl Marx escreveu coisas que são mais atuais do que nunca. Sim, uma minoria está prejudicando a maioria”, afirma Ekoué, do grupo La Rumeur (o Rumor), que cursa pós-graduação em Direito Público. “Fundamentalmente, ser negro não é uma vantagem. Nós ganhamos com isso alguma visibilidade, mas eu não me dou por satisfeito!.” Com esse discurso, Ekoué evoca a “Françáfrica” dos bairros “quentes” e faz zombaria ao enumerar as figuras da periferia que “moram” nos estúdios de televisão, todos eles acenando como “álibis suscetíveis para mascarar realidades”. De Guadalupe até Marselha, começam a surgir pensamentos de que nem o RMI (Programa Renda Mínima de Inserção), nem um apresentador de televisão, têm qualquer utilidade e, em última instância, só servem para anestesiar o pensamento crítico.
“Alguns imaginaram que eles poderiam comprar o meu silêncio com as bolas de futebol da seleção da França”, ironiza Ekoué numa de suas músicas. Adocicar o discurso está fora de questão: “Eles querem uma canção no estilo do “vamos viver juntos?”, algo gentilmente ingênuo e lucrativo. Mas não é tão simples assim. Existe um racismo estrutural nas sociedades ocidentais”. O seu pai, por exemplo, um auditor contábil e financeiro, não conquistou a carreira que seus diplomas prometiam. Ter nascido no Togo e não se submeter ao clã do ex-presidente Gnassingbé Eyadema são duas qualidades pelas quais é preciso pagar caro na França.
Hamé, parceiro de Ekoué no grupo La Rumeur e doutor em Sociologia, é outro que vincula o presente e o passado à análise que faz da situação: “Quando são universitários que falam dessas histórias sujas, isso não é problema, pois o que eles dizem não é difundido. Já o que nós queremos fazer é colocar novamente o debate nas ruas. Nós temos a legitimidade da vivência com as nossas famílias. Mas essas questões não são da alçada exclusiva e particular do grupo La Rumeur. São dilemas que envolvem a sociedade inteira”. Por ter denunciado a violência excessiva dos policiais e os crimes impunes – tais como o massacre de 17 de outubro de 1961 [4]-, esse filho de um operário argelino está sendo processado na justiça [5].
As vozes-tambores do La Rumeur reforçam em suas letras as evidências da miséria francesa. A grande maioria dos pobres está nos bairros “problemáticos”, onde a taxa de desemprego chega a 22%
Exímio na arte da dialética, Hamé sempre se considerou um instrumento de contrapoder cultural e simbólico. “E, daqui para frente, político”, conta. Assim como Ekoué, ele quer evitar escorregar para o lado das pregações ingênuas e às vezes desvinculadas da realidade do poeta-repentista crítico Grand Corps Malade (Grande Corpo Doente, nome artístico de Fabien Marsaud). Por ter nascido e crescido em Seine-Saint-Denis, um departamento “difícil” na periferia de Paris, um bom número de meios de comunicação faz de Fabien Marsaud um porta-voz “positivo”. Para ajudar mais na construção dessa imagem, ele conseguiu superar o trauma de um acidente que o deixou incapacitado da cintura para baixo. Suas letras cantam o amor pelo outro, muito além das “cores políticas”. “É o fruto de uma ideologia morna, que manda a juventude dos bairros reexaminar seus erros, sua responsabilidade individual, eliminandoos dados sócio-históricos”, avalia Hamé. “Essas figuras da boa-consciência constituem simbolicamente um bom negócio para as elites midiáticas. Elas desarmam os problemas.” Sem solucioná-los. Hamé atribui aos períodos de crise a virtude de derrubarem as máscaras e revelarem a verdade. E por isso considera os motins de novembro de 2005 como “o movimento social mais importante dos últimos dez anos na França”.
As vozes-tambores do La Rumeur reforçam em suas letras as evidências estatísticas da miséria francesa. A grande maioria dos pobres se concentra nos bairros considerados problemáticos, que, segundo avaliação do observatório Nacional das Zonas urbanas Sensíveis, apresentavam uma taxa de desemprego de 22% em 2005 — ou seja, o
dobro da média nacional. Além do mais, 33% desses jovens são beneficiários do RMI, contra 20% em nível nacional.
Rocé e Dgiz abordam o assunto com a mesma autoridade e profundidade. Esses dois rappers usam as palavras para falar dos males franceses, conectando sua vertente musical à gramática do jazz livre, sem se esquecer de abastecer-se de inspiração na fonte do trauma social. O mesmo discurso é repetido num tom sombrio pelo conjunto Fada (gíria que significa “louco”), de Bordeaux, quando fala sobre uma estátua de Toussaint Louverture (1743-1803). Louverture se tornou governador da ilha de Santo Domingo, hoje Haiti, após dirigir um levante revolucionário. Ele é considerado o primeiro líder negro de um país colonizado a triunfar sobre as forças de um império colonial europeu. A estátua em questão foi inaugurada com grande pompa por ocasião das comemorações da abolição da escravidão. “Bordeaux, cidade negreira / recordaste mesmo os grandes negros de ontem? / Gostarias de esquecer, mas Toussaint é orgulhoso / Então, sempre teremos um irmão para nos lembrar de quem éramos ontem?”.
“Assim que você se aprofunda nas questões, está fora da mídia”, relata Anies. Conhecida por seu posicionamento contra a homofobia, ela continua traçando seu próprio caminho
Entre todas essas vozes de protesto que desafinam o coro dos consumidores satisfeitos de conteúdos televisivos, as mulheres não ficam para trás. “Uma revolta é uma reação, um impulso instintivo. uma revolução é uma rotação, um movimento como uma onda gigante”, diz a marselhesa de origem argentina Keny Arkana, que gosta de citar o exemplo dos piqueteros de seu país de origem. A jovem apóia, não de forma incondicional, o presidente venezuelano Hugo Chávez e mantém contatos com movimentos alternativos, “não necessariamente associações, que, em casos freqüentes, são braços dos governos”, diz. Arkana participou do Fórum Social Mundial policêntrico em Mali, um dos três países que abrigou o evento em 2006, e hoje analisa os limites dessas organizações: “Estamos sempre diante de um exercício do poder vertical e não radical. Mesmo em Nairóbi [Quênia, sede do Fórum Social Mundial de 2007], os membros da coletividade local nem sequer foram convidados a tomar a palavra!”.
No final de uma extensa turnê intitulada A cabeça na luta e após ter participado de um protesto junto com os contestadores da associação Apelo aos Sem-Voz [6], essa mulher agitada, sempre prestes a explodir, acaba de lançar o álbum Désobéissance (Desobediência). “Reunir-se já equivale a uma insubmissão. Levantar-se é um apelo para a desobediência”, diz. Será que ela é uma utopista? “Não, sou apenas pragmática. O povo não tem mais escolha. Cabe a nós voltarmos a nos apoderar dos valores, das palavras? O nosso próprio coração foi colonizado pelo capitalismo. “Obviamente, os mais cínicos dirão que essa doce sonhadora não passa de uma candidata à musa dos revoltados e que os seus textos não deixam de ser conceitualmente curtos. Lúcida, ela sabe que a crítica faz parte do sistema. Mas sabe também que é preciso “agir, imediatamente”, conforme constava no seu blog, na noite de 6 de maio de 2007 [7].
Integrante da Fundação do hip-hop Cidadão [8], a artista Princess Anies escreveu ano passado uma “Carta ao Presidente”, que não foi respondida. A iniciativa, contudo, teve como conseqüência a supressão do seu blog do site Skyrock, “por não ter respeitado a ?política de conteúdos?”. “A censura existe. Basta ver o que está acontecendo com o La Rumeur. Logo que você se aprofunda nas questões, já está fora dos grandes veículos da mídia”, relata Anies. Conhecida pelos seus posicionamentos contra a homofobia, ela segue traçando seu próprio caminho, fiel ao seu primeiro nome de cena: Átila, uma dupla referência às suas origens taiwanesas e à sua vertente hardcore.
O mesmo acontece com Bams, uma rapper que atua de modo subterrâneo. E temos também Casey, que é um caso à parte. Esta martinicana do “93” – número do departamento “quente” de Seine-Saint-Denis – arremessa textos que são verdadeiros socos [9]: “Nenhuma diferença nesta doce França / Entre o meu passado, meu presente e meu sofrimento / Estar no fundo do precipício ou na superfície / Mas em todo caso, sempre no pedaço e odiada até não poder mais / As minhas cicatrizes estão repletas de estresse / Repletas de refrões racistas que me oprimem / De equimoses, de quistos, de pena e de correntes grossas”. O álbum Nos histoires (Nossas histórias) é dos mais explícitos: relata a inevitabilidade desse debate, que é conseqüência daquele sobre a partilha das riquezas entre o norte e o sul, e preliminar àquele que preconiza uma política de integração
social não ligada à cor da pele.
*Jacques Denis é jornalista.