Rappers tunisianos enquadrados
A revolta popular de janeiro de 2011 na Tunísia acarretou profundas mudanças nas práticas culturais, particularmente na música. Resistindo contra uma censura que está longe de ter desaparecido, a cena emergente também enfrenta a precariedade. Alguns, com dificuldade, conseguem escapar das exigências de visibilidade e do conformismo
No verão passado, Ahmed Ben Ahmed, conhecido como Klay BBJ, não pôde cantar seu hit “No pasarán” – uma crítica virulenta à evolução do mundo político tunisiano desde a revolução de janeiro de 2001 – nem qualquer outro de seus raps de protesto. Sua turnê de dezoito shows, a maioria programada em festivais públicos, foi cancelada. Os comunicados de sindicatos policiais solicitando que seus agentes não participassem da segurança dos eventos levaram os organizadores desses festivais a retirar o músico da programação.
Tudo começou num domingo, 16 de julho, quando Klay BBJ fez um show em Mahdia, no centro-leste do país. O evento foi interrompido quando a polícia se retirou do palco ao ar livre em protesto às letras consideradas “ofensivas e imorais”. “Na sequência, eu e mais dois integrantes da equipe fomos agredidos. Também furaram os pneus dos nossos carros”, conta o rapper. Desde então, depois de uma queixa protocolada pelo sindicato dos agentes das unidades de intervenção, o artista é perseguido pela justiça por “difamação e atentado ao funcionalismo público”. “Esse rapper ultrapassou o limite ao atacar os policiais com palavras ofensivas”, afirma Mohamed Sioud, secretário-geral do sindicato de base da unidade regional de manutenção da ordem.1
“Não se pode jogar lenha na fogueira”:2 é assim que Mohamed Boughalleb, encarregado da comunicação do Festival Internacional de Cartago, também cronista de rádio e televisão, justificou a decisão do comitê de organização de cancelar o show de Klay BBJ em 27 de julho último, apenas dez dias antes do evento. Resíduos da ditadura persistem, como no autoritarismo da polícia, e parecem prevalecer sobre a nova Constituição adotada em janeiro de 2014, cujo artigo 31 diz que “as liberdades de opinião, pensamento, expressão, informação e publicação estão garantidas”, e que “nenhum controle prévio pode ser exercido contra essas liberdades”. Na prática, o aparelho policial, que se beneficia de direitos sindicais desde a queda da ditadura, continua a abusar de seus poderes. “Vinha fazendo shows com o mesmo repertório desde 2016, em dezena de shows. De repente, começo a ter problemas. Acho que está relacionado ao contexto político. Os sindicatos de polícia querem a aprovação de um projeto de lei sobre a repressão das agressões contra as Forças Armadas”, analisa o artista.
Policiais convocam boicote
Debatida na Assembleia de Representantes do Povo (ARP), essa proposta legislativa visa proteger a vida de pessoas que trabalham com segurança, mas alguns de seus dispositivos permanecem muito vagos, como a proibição de “humilhar” um agente, o que abre precedentes para derivações de todo tipo. Para onze organizações da sociedade civil, entre elas a Liga Tunisiana dos Direitos Humanos (LTDH), o texto representa “uma ameaça para as conquistas da revolução e a possibilidade de fundação de uma ditadura policial”.3 Inúmeros artistas tunisianos que, por meio da música, desafiam a autoridade política e também a ordem social e moral correm o risco de desaparecer com essa lei.
Originário do bairro popular Bab Jdid, nas periferias da medina de Túnis, Klay BBJ vive uma espécie de reprise de agosto de 2013, quando foi agredido, detido e algemado no palco do festival internacional de Hammamet, e depois perseguido pelo Ministério Público por “atentado ao pudor, difamação e atentado à integridade da polícia”. Condenado a quatro meses de prisão em primeira instância, foi beneficiado com redução da pena após uma enorme mobilização que se estendeu dos bairros menos favorecidos aos meios progressistas de militantes de direitos humanos. Boicotado por organizadores de shows durante mais de dois anos, somente em 2016 retornou aos palcos em uma turnê com cerca de vinte apresentações.
O caso de Klay BBJ não é único. Durante o verão de 2013, os sindicatos policiais também pediram que policiais boicotassem shows de rap em reação à onda de solidariedade entre rappers originada com a condenação a dois anos em regime fechado de Alaa Eddine Yacoubi, conhecido como Weld El 15, em junho daquele ano. A pena finalmente foi reduzida a seis meses com indulto.4 O estopim foi um clipe intitulado “Boulicia kleb” [Policiais são cachorros], que suscitou uma polêmica nacional de dimensões políticas quando diversos opositores à coalizão governamental então liderada pelos islâmicos do Ennahda se posicionaram ao lado do rapper.5 Dezenas de trechos de músicas com linguagem crua e duras críticas contra a polícia foram divulgadas nas redes sociais. Foi a oportunidade para muitos artistas de reivindicar a descriminalização da posse e do consumo de maconha – um dos temas prediletos dos rappers tunisianos e que ecoa nas aspirações de parte da juventude que sofre repressão policial e judiciária em relação ao tema.6 A controvérsia provocada pelo caso Yacoubi se repetiu com o cantor Bendir Man, também boicotado pelos policiais, que o consideram um rapper.
Os textos de Klay BBJ, fluxo truculento de denúncia dos abusos policiais, de ataque contra a classe política e de críticas contra a injustiça social, recolocam o rap tunisiano no campo da música de contracultura. Se ele escolheu estar na linha de frente da crítica das forças da ordem, muitos artistas da cena emergente devem enfrentar outro desafio: introduzir novos estilos, novas estéticas, certa inovação na mistura de gênero e outras escolhas de letras.
Antes do levante popular de janeiro de 2011, o autoritarismo e a arbitrariedade do regime de Zine al-Abidine ben Ali bloqueavam o acesso aos meios de comunicação, censurando vários sites e portais na internet e reprimindo as vozes dissonantes. Os jovens artistas raramente tinham oportunidade de se autoproduzir. Com a queda da ditadura, tornaram-se uma alternativa visível à canção árabe e ao repertório tradicional tunisiano, dois gêneros apolíticos que dominavam os programas dos meios de comunicação e os eventos populares organizados pelo poder. A sociedade agora busca mudança e estilos menos enquadrados na ordem hegemônica. O boom do digital e a lógica da concorrência entre emissoras de rádio e canais de televisão privados se impuseram. A música pôde escapar assim do embargo do poder.
O aumento da censura na internet desempenhou um papel decisivo nessa nova correlação de forças. Os artistas da cena emergente não podem mais ser ignorados. Seus trabalhos – de forma geral promovidos por clipes de baixo orçamento, gravados graças a redes de solidariedade entre artistas e técnicos audiovisuais, em sua maioria oriundos de meios sociais menos favorecidos ou da classe média – são vistos centenas de milhares de vezes, até milhões de vezes, no YouTube. O rap representa o gênero mais visível porque seus meios de produção são acessíveis. É fácil, de fato, baixar gratuitamente um software de composição musical pirateado ou comprar um em uma loja pelo equivalente a R$ 3. Contrariamente a outros gêneros como o rock, o reggae e o jazz, a gravação de rap requer apenas um microfone, e a mixagem é mais simples. Para os artistas emergentes, esse acesso aos meios de produção permite igualmente maior liberdade na composição das letras e maior variedade em termos de estética. Quanto à difusão, combinam os vídeos on-line no YouTube com publicações patrocinadas em outras redes sociais, principalmente o Facebook.
Essa visibilidade na internet foi favorecida pelo desenvolvimento fulgurante do acesso à rede mundial de computadores. O número de assinantes na rede tunisiana dobrou desde o levante popular, passando de 850 mil a 1,7 milhão em 2015,7 o que representa um quinto da população tunisiana.
Dito de outra forma, o público dos artistas emergentes representa uma parcela eleitoral consciente, que interessa aos dirigentes políticos. Durante a campanha presidencial de 2014, o candidato Béji Caid Essebsi (eleito desde então) instrumentalizou a canção “Houmani”, da dupla Hamzaoui Mohamed Amin e Kafon, um rap com influências do dub (gênero de música eletrônica que apareceu em Londres no início dos anos 2000). No mesmo momento, durante um encontro cujo público-alvo eram os jovens, seu adversário, o então presidente Moncef Marzouki, recebia apoio de El General, um rapper reconhecido como uma das figuras importantes da revolução e citado entre as cem personalidades mais influentes do mundo em 2011 pela revista Time. Por sua vez, Hamma Hammami, candidato da esquerda, teve o apoio de Bendir Man e da cantora Badiaa Bouhrizi. Um postulante, Slim Riahi, um homem de negócios de perfil conservador, recorreu aos serviços do cantor Kafon para realizar os shows de sua campanha, sem que este o apoiasse explicitamente.
A vontade de instrumentalização política em geral vem acompanhada, ou melhor, precedida por um formato midiático. Geralmente ignorantes em relação às novidades musicais e à cena emergente, os donos dos meios de comunicação dominantes, públicos e privados, qualificam todos os estilos e registros desconhecidos de “música underground”, até mesmo quando seus convidados participam de emissões em horários nobres e ocupam grandes palcos. A confusão entre rap e outros gêneros é comum. Assim, Kafon, adepto de um reggae simples composto em computador, muitas vezes é apresentado como rapper. De modo geral, qualquer indício de protesto é o suficiente para colar essa etiqueta.
Motivações materiais
Contudo, a contestação não ganhou todos os artistas emergentes. Dóceis, alguns se contentam em copiar receitas aprovadas na cena comercial ocidental, dobrando-se perante a ordem e a moral. As motivações para isso são quase sempre materiais, como ilustra o caso de Kafon: “Pouco importa quem paga, preciso de dinheiro para melhorar meu produto”,8 explica em resposta a críticas sobre sua presença em encontros políticos. Em um contexto em que o patronato e o governo fustigam a insatisfação social recorrente desde 2011, ele igualmente criticou os sindicatos ligados à educação por suas repetidas greves e solicitações de mudanças em suas letras de música, pois “contêm palavrões e seu público atualmente é familiar”.9 Os meios de comunicação, os festivais públicos, os interesses comerciais e a pressão das autoridades favorecem, assim, o aparecimento de uma categoria privilegiada dentro da cena emergente.
Outros jovens artistas são geralmente condenados à precariedade. Sem a renda da venda de discos (o mercado legal de CDs é praticamente inexistente e na Tunísia não existe plataforma para download de música) nem um sistema de direitos autorais, a principal forma de subsistência dos músicos continua sendo shows e eventos encomendados. Para a cena emergente, principalmente os rappers, o total anual do retorno gerado pelo YouTube não passa de mil euros. De fato, a monetização dos vídeos on-line na Tunísia permanece fraca em comparação à de artistas ocidentais ou asiáticos. E mesmo os artistas mais radicais às vezes precisam aceitar compor. Em 2016, Klay BBJ apresentou o hit festivo “Ghodwa khir” [Amanhã será melhor] como uma “faixa comercial”, antes de um futuro retorno ao underground. Um ano depois, atiçado por sua desventura com os sindicatos policiais, compôs “Fawdha” [caos, anarquia]: “Reduzi o número de palavrões [nas minhas canções] para poder trabalhar e cuidar da minha família. Mas acharam que por isso vendi a causa e me dobrei ao dinheiro”.
Assim, em razão dos conflitos políticos, certos jovens artistas tunisianos passam rapidamente do underground ao mainstream. Se há sete anos a queda da ditadura foi um respiro que permitiu maior diversidade na música, a pressão do cenário hegemônico está substituindo a criatividade e o protesto pelas exigências de visibilidade, conformismo e pela imitação das tendências dominantes na Europa e nos Estados Unidos.
*Thameur Mekki é jornalista.