Razões e consequências da anistia
Uma das intenções da anistia da ultradireita é tornar o recurso ao golpe corriqueiro, do mesmo modo que o discurso de apologia ao golpismo já foi normalizado por grande parte das elites políticas e da mídia. Não estaríamos, nesse cenário, diante de simples ameaça, mas da intenção de decretar a morte efetiva da ordem democrática
A anistia é a grande bandeira atual da ultradireita brasileira. O tema tem ações constantes nas redes sociais, articulação na Câmara dos Deputados, manifestações de rua com amplos financiamentos e forte pressão de governadores da direita. Além de constatar que se trata de uma aposta para mobilizar um campo heterogêneo e atravessado por conflitos, é necessário refletir sobre os sentidos explícitos e implícitos sugeridos pela ideia e sobre como ela mobiliza o imaginário político nacional.
A primeira indicação, mais evidente, aponta para o conceito jurídico. Estaríamos, desse modo, diante de um termo técnico, presente na Constituição federal sobretudo para a exclusão de crimes políticos, que neste caso extrapolou as paredes do Congresso Nacional e se tornou um tema de debate na esfera pública. “Anistia”, portanto, carregaria um sentido puramente institucional, não apenas sem nenhum conflito com a ordem constitucional de 1988, mas também em fiel cumprimento aos procedimentos nela previstos.
Não é necessário ir além da própria Constituição para perceber as limitações dessa interpretação. A ênfase na ideia de crimes políticos mostra como a anistia é um conceito que transborda os limites do direito, tentando criar formas de lidar, por meio de uma ordem institucional, com o que a ultrapassa. O debate sobre anistia não se resolve por exercícios de hermenêutica jurídica, mas envolve questões fundamentais sobre a legitimidade da própria ordem vigente. Ela dota a Constituição de uma flexibilidade que a permite dobrar-se sem quebrar, mantendo a aparência de normalidade mesmo ante crimes que frequentemente colocam em questão sua continuidade. No uso do instituto há, porém, o risco inerente de ultrapassar uma fronteira, que pode acabar por romper o que desejava preservar.
Não estamos tratando, contudo, de uma ideia abstrata de ordem legal, e sim da Constituição que foi mais longe na garantia de direitos democráticos e sociais na história brasileira. Ela previu pela primeira vez o efetivo sufrágio universal, com o direito de voto do analfabeto, além de instituir políticas de acesso universal à saúde, por meio do SUS, avançando de modo sem precedentes em um processo de democratização no país. Além desses traços, a ordem de 1988 se confunde, em suas virtudes e limites, com a superação do regime autoritário pregresso. Questioná-la deve, no mínimo, suscitar temores.
A anistia, contudo, ocupa lugar ainda mais central no imaginário de 1988. O tipo de transição democrática no Brasil passou pelos usos do instituto no fim dos anos 1970. Se a Nova República registrou inegáveis avanços, houve, sem dúvida, efeitos perversos no caminho trilhado, que relegou às sombras os crimes do regime autoritário de 1964, entre os quais a tortura e o assassinato como política de Estado, e manteve como protagonista do mundo político grande parte das elites da ordem autoritária pregressa, com perversas consequências para a democracia emergente.
Contudo, os atuais defensores da anistia interpretam a redemocratização em chave diametralmente distinta e pretendem reverter os movimentos supostamente empreendidos pelas elites progressistas. Eles reivindicam o papel de vítimas de um regime autoritário, supostamente vigente no Brasil após a ditadura militar e dominado pela esquerda, que mente sobre ter implantado uma democracia no país. Trata-se de mais uma demonstração da importância dos usos políticos na história da ditadura militar para a ultradireita, como se demonstrou, nas redes e na imprensa, quando das fortes e articuladas reações de lideranças da ultradireita ao filme Ainda estou aqui.
Pretende-se, por um lado, denunciar a hipocrisia da esquerda, em mote retórico comum à ultradireita, que constrói sua identidade em contraposição à representação dos adversários como moralmente depravados. Nesse discurso, os embates tornam-se algo mais profundo que uma disputa política, assumindo as feições de uma disputa entre bem e mal. Por outro lado, a ditadura é central na construção da narrativa – muito frequente em Olavo de Carvalho e em vários de seus alunos – que representava as esquerdas como grandes vitoriosas do processo de redemocratização. Dado o diagnóstico que esse campo teria construído uma hegemonia cultural, amparada nas formulações de Antonio Gramsci, surgia a sugestão de utilizar parte do repertório identificado com o progressismo como uma forma de expor sua falsidade e destruir, com as mesmas armas, essa hipotética dominação.
Retratar a atual democracia brasileira como falsa e autoritária é elemento tanto central na identidade da ultradireita quanto relevante para legitimar os ataques à ordem política atual e justificar sua superação. Ante um regime político nefasto, como o instituído pela Constituição de 1988, todos os meios de superá-lo seriam legítimos. No discurso predominante de defesa da anistia, o 8 de janeiro de 2023 não surge, portanto, apenas como exceção, como ocorre quando os golpistas são representados como “pessoas de bem” e ignorantes das consequências das próprias ações, mas também como princípio a ser defendido. Em argumento que pretende emular a defesa da luta armada por parte da esquerda durante a ditadura, o ataque violento contra um regime autoritário é tolerável e legítimo. Uma das intenções da anistia da ultradireita é tornar o recurso ao golpe corriqueiro, do mesmo modo que o discurso de apologia ao golpismo já foi normalizado por grande parte das elites políticas e da mídia.
Não estaríamos, nesse cenário, diante de simples ameaça, mas da intenção de decretar a morte efetiva da ordem democrática. De fato, não há democracia em um cenário no qual o golpismo é legalizado e rotineiro. Do mesmo modo que a Anistia de 1979 foi um momento central na construção de um novo regime, decisivo para as feições dessa nova ordem, a aprovação da anistia para os golpistas de 2023 pretende apontar para um novo cenário, construído sobre as ruínas de 1988. Dito de outro modo, o instituto pressupõe, de fato, uma nova transição, desta vez de uma ordem democrática para uma autoritária.

®Tolerância ante tentativas de golpe usualmente antecipa seu sucesso
A radicalidade e as profundas consequências da anistia justificam parte da resistência da elite política, mesmo da parte que foi simpática ou condescendente com Jair Bolsonaro. Eleito à frente de uma coalizão de ultradireita, composta tanto de novos protagonistas de extrema direita quanto de uma direita antes hegemônica que se radicalizou, o ex-presidente não contou apenas com o apoio de novas elites políticas, mas também com antigas lideranças, que passaram a progressivamente questionar princípios da ordem política vigente. A radicalidade da tentativa de golpe do 8 de janeiro expõe, contudo, cisões e tensões internas a essa heterogênea coalizão. Apesar da retórica diversionista que cerca a anistia, mesmo parte dos que toleraram Bolsonaro sabem que a transigência com o golpismo escancarado pode destruir o atual regime e, com isso, solapar as bases sociais e institucionais que sustentam seu poder. Como 1964 bem ensinou, por vezes os apoiadores mais fervorosos do golpe são logo descartados pela nova ordem.
A anistia, portanto, é um bom indício para as formas de relação da elite política com a ordem de 1988. Seus mais ferrenhos defensores são aqueles que se organizam em torno de Jair Bolsonaro e podem, com isso, ter suas performances e visões de mundo bem definidas pelo conceito de bolsonarismo. Em que pese a boa dose de pragmatismo da tese da anistia irrestrita para os envolvidos na tentativa de golpe, ela não se restringe a um cálculo estratégico. Como em boa parte dos movimentos no mundo da política, crenças e cálculos utilitários se misturam e a condicionam. Há algo na defesa da anistia que transborda o medo da prisão ou o desejo de vantagens mais imediatas. Parte desse excesso, revelador de crenças mais arraigadas, se mostra na defesa que personagens da ultradireita que não pertencem ao campo bolsonarista, como o Movimento Brasil Livre (MBL), fazem da medida.
A defesa da anistia funciona, neste caso, como momento inicial de algo novo, o que desvela a apologia de uma ordem que supere a organizada pela Constituição e, em muitos aspectos, a negue. A recusa a 1988 passa por discursos distintos e tem justificativas diversas, que variam de acordo com as linguagens políticas mais frequentemente conjugadas pelos atores da ultradireita. Há, contudo, um núcleo comum, que identifica as mazelas da ordem política a certa centralidade do conceito de igualdade, que limitaria a liberdade, seja econômica ou religiosa, por meio da naturalização da intervenção do Estado, do direito e da política na redução de desigualdades. Esse ordenamento seria ineficiente e imoral, como bem revela o predomínio das esquerdas, grupo indefensável seja por sua depravação moral, seja por seus equívocos políticos. Os sucessos do petismo nas eleições presidenciais são lidos, portanto, como consequências dessa ordem e sintomas de seu colapso.
Algumas interpretações sobre a crise democrática brasileira, como as de André Singer e Marcos Nobre, expõem com competência o uso das instituições pela ultradireita, assim como sua reivindicação do conceito de democracia, mesmo que seja para negar seus atuais pressupostos. Importantes nomes da teoria democrática, como Adam Przeworski, indicam, por sua vez, um novo tipo de transição para o autoritarismo, bem distinto dos velhos golpes de Estado que tinham como parte de sua estética a presença ostensiva de tropas e aparatos militares nas ruas. As sugestões revelam aspectos relevantes da ultradireita global e nacional, mas perdem parte do cenário. Episódios como a invasão do Capitólio, o 8 de janeiro e a tentativa de golpe na Coreia do Sul demonstram que há uma pluralidade de performances, discursos e estratégias, não necessariamente marcados por um desejo de coerência. Não são raras as defesas concomitantes de procedimentos institucionais e de golpes à moda antiga, do direito e da força, de modo que, na prática política, não estamos diante de alternativas excludentes.
A defesa da anistia ou a disputa de eleições não implicam, portanto, o abandono de tentativas de golpe como o de 8 de janeiro ou mesmo do velho recurso a forças militares, o que de modo algum pode ser descartado, aqui e alhures.
Não estamos diante de novidade na história política brasileira. Se por um lado as performances e estratégias de mobilização de 8 de janeiro têm muito de novo, das imagens mobilizadas às formas de organização, por outro lado são marcas frequentes da vida republicana brasileira a convivência entre a força e a institucionalidade, assim como as tentativas de golpe como prenúncio de anistias que, por sua vez, antecipam futuros golpes bem-sucedidos, já que a tolerância ante inúmeras tentativas usualmente antecipa o sucesso. Alguns dos mais célebres ideólogos de nossas experiências autoritárias, como Francisco Campo e Miguel Reale, defendiam conceitos particulares de democracia, sempre dissonantes em relação às experiências democráticas então existentes.
As tortuosas persistências desse passado não implicam uma condenação eterna ou o simples retorno dele, mas revelam novas formas de velhas mazelas, que são, em muitos sentidos, contemporâneas. Nossa mais longeva experiência democrática institucional, que muitos saudaram como superação definitiva de velhas síndromes autoritárias, não padece da simples persistência de um passado, mas sobretudo das formas por meio das quais esse passado se faz atual.
O canto de sereia de que uma versão moderada da anistia seria uma boa forma de inserir os “radicais” no sistema ou de “moderar” ao menos parte do bolsonarismo é tão equivocada quanto potencialmente trágica. Revela não apenas desconhecimento dos discursos e ações da ultradireita brasileira, mas também uma clara incapacidade de perceber os contornos de eventos centrais da última década, o que pode nos levar a repeti-los de modo ainda mais grave. Dos primeiros indícios do protagonismo de lideranças da ultradireita até o 8 de janeiro há um constante esforço de normalização de atores que não são ocasionalmente contrários a elementos pontuais do sistema político brasileiro, e sim adversários radicais de qualquer experiência política democrática do pós-1945. A expectativa de uma iminente moderação ou adesão aos ritos da democracia é, no melhor dos casos, ingênua. Não estamos diante de uma discordância pontual, mas de um divórcio irreversível entre certos personagens, munidos de seus respectivos repertórios políticos, e a democracia.
É uma questão antiga e profundamente atual como a democracia pode lidar com seus adversários declarados. Uma radical rejeição contra qualquer crítica à ordem democrática pode facilmente produzir uma ordem autoritária, em que o dissenso e a crítica sejam banidos. Por outro lado, excessos de tolerância são usualmente fatais. Não se trata de uma questão abstrata, mas de um problema com traços concretos e evidentes.
Não falo, é claro, de todos os que votaram em certos candidatos ou mesmo passaram a simpatizar com determinadas lideranças e ideias e apoiá-las. É sem dúvida necessário reintegrá-los aos valores democráticos, como em outras vezes se fez. A questão são as lideranças, intelectuais e militares, de um empreendimento golpista que não se limita ao 8 de janeiro, mas encontra nele um dos cimos de um longo processo. Aprovar a anistia é, como tentei argumentar nas linhas acima, não apenas colocar em risco o futuro, mas também condenar o presente.
*Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).