Realismo na Roma Antiga
É possível imaginar que o sonho de Petrônio seria o de criar uma obra que não fosse uma imitação piorada do modelo, mas uma outra, capaz de expressar essa inadequação; para isso, optou por um gênero ainda pouco prestigiado, o romance, e de um estilo baixo, que não abrisse mão da paródia aos clássicos. O resultado é uma obra de caráter realistaDavid Oscar Vaz
Foi lançado neste ano de 2008, pela Editora CosacNaify, com apresentação de Raymond Queneau – e tradução e posfácio de Cláudio Aquati -, o romance Satíricon, de Petrônio. Em conformidade com o espírito original da obra, a tradução, realizada a partir do texto estabelecido por Alfred Ernout para a Collection des Universités de France, teve em mira o português coloquial do Brasil. A todo instante nos deparamos com expressões do tipo “Que droga!”; ou, para expressar um roubo: que alguém “abafou” uma túnica. Nem sempre é fácil, nesse tipo de tradução atualizada, evitar certos exageros, dificuldade que, a meu ver, o tradutor soube contornar muito bem: nem linguagem eloqüentemente correta, mas estranha ao texto de origem, nem linguagem pretensamente popular ou descolada do tipo da “dos manos”, que mais nos afastaria do universo criado pelo romance do que nos ajudaria a penetrá-lo.
O apêndice bastante generoso que vem no final do volume traz: uma seção com diversas ilustrações; um posfácio do tradutor, com informações e comentários de extrema relevância sobre a obra, seu autor, as influências recebidas e as que exerceu sobre outros autores; uma contribuição do historiador latino Tácito sobre a vida de Petrônio; e, por fim, as sugestões de leituras, onde encontramos indicações e comentários de Cláudio Aquati das várias traduções do romance, dos mais importantes estudos acerca da obra e de outras criações de ordem ficcional ou histórica, cujo conhecimento aprimora em muito a nossa leitura do texto latino.
A sensação que o leitor contemporâneo experimenta com a leitura de Satíricon é a de que está penetrando num mundo estranho, mas que é, ao mesmo tempo, estranhamente conhecido. E isso ocorre apesar de, historicamente, as condições objetivas de hoje serem muito diferentes daquelas do século I, quando a obra de Petrônio veio à luz, e apesar do aspecto fragmentário do romance tal qual nos chegou, já que, de todo o texto original, o tempo, este cruel devorador e fazedor de antologias, nos legou apenas uma pequena parte.
Originalmente não foi assim, mas é assim que o temos hoje. E sobre este aspecto, lembro um pequeno texto de Marguerite Yourcenar [1] em que a autora belga, falando das esculturas antigas, observa que a vida de uma estátua começa no exato momento em que ela fica pronta; é a partir desse instante que o tempo começa a agir sobre sua superfície e, ao longo dos séculos, age como se fosse uma espécie de escultor parceiro daquele artista que primeiro deu forma à pedra. Sob a ação dos ventos, dos saques, dos iconoclastas ou das águas dos mares, quando submersas, as estátuas vão ganhando novos contornos, e assim nos chegam trazendo do passado nas próprias cicatrizes a promessa de que um dia deixarão de ser completamente o que são e voltarão à sua condição informe de natureza. Mas nem por se encontrarem incompletas essas estátua deixam de provocar no espectador do presente admiração, aversão ou mesmo uma vocação ao culto.
A diferença de como nos chegam as estátuas referidas por Marguerite Yourcenar e o romance de Petrônio é que, ao contrário das esculturas, o texto do Satíricon já está, ao que parece, plenamente estabelecido e só uma bem-vinda, ainda que improvável, descoberta arqueológica de outras partes do romance pode alterar sua forma e modificar, devido a isso, a nossa percepção acerca da obra.
Diferentes discursos, diferentes gêneros
Tendo isso em mente, o leitor dos nossos dias terá que se entregar à leitura do Satíricon com um desprendimento diferente do que teria se abrisse, no lugar desse, um romance, digamos, do século 19. Isso porque, ao contrário do romance do século 19, o texto aqui apresentado deve ser apreendido desfalcado de muitas de suas partes, e nossa leitura é que terá de intuir as possibilidades de preenchimento dos seus vazios. Isto não me parece uma tarefa demasiada estranha ao leitor atual, pois o fragmentário não nos é totalmente avesso, já que somos leitores nascidos após o advento do romance moderno, em que é freqüente a incorporação do discurso fragmentário. Falo do leitor nascido depois de um Kafka, de um Joyce, ou de um Rosa.
Ao que tudo indica, no romance completo acompanharíamos a jornada de Encólpio, o protagonista, desde Massília (atual Marselha), passando por várias localidades, até Lâmpsaco, local de nascimento de Priapo, deus da fertilidade. Os fragmentos correspondem às aventuras do protagonista ocorridas entre as cidades de Baias e Crotona. Estes episódios são formados por parte dos livros XIV, XV e XVI do texto original. Percebemos que os episódios não são dispostos casualmente, uns após os outros, mas estão numa relação de causalidade uns com os outros, o que nos faz perceber a unidade de toda a obra. Muitas das coisas que são ditas ou que ocorrem num dado momento se referem a coisas que se passaram em um momento pregresso, muitas vezes em outro livro do Satíricon, que se perdeu.
Assim, por exemplo, na parte 10, intitulada com o nome do personagem Licas pelo tradutor, quando Encólpio e Gitão se encontram num barco, percebem que se encontram em grande perigo. O proprietário da embarcação é Licas, que viaja junto com sua mulher Trifena. Gitão e Encólpio ao descobrirem isso entram em pânico, contam para Eumolpo, o poeta que os acompanha, que cometeram em tempos anteriores um crime contra Licas e Trifena e que se forem descobertos a bordo certamente serão mortos. O ocorrido no passado é apenas aludido, dando a entender que o caso já fora relatado em algum livro anterior.
Licas e Trifena são devassos – a rigor não há um personagem, seja de que classe for, desprovido de defeitos nesse romance. O que vemos aqui é uma galeria de libertinos, caçadores de heranças, novos-ricos exibicionistas, velhos viciosos, literatos aproveitadores e por aí vai. O próprio narrador, Encólpio, jovem interessado em arte, é um assassino. E Petrônio encontrou no romance a forma mais eficiente para contar as aventuras e desventuras de seus personagens, o que significa para o autor a descrição de uma determinada classe.
Gênero absolutamente novo, o romance não possuía ainda o status de alta literatura como a poesia lírica, a épica tradicional representada pelas epopéias e as obras destinadas ao palco. Mas é neste gênero que o autor do Satíricon irá encontrar o espaço ideal para agregar diferentes discursos e mesmo diferentes gêneros, sempre intimamente ligados à ação corrente. Quando Eumolpo, por exemplo, vai descrever o sentido de um certo quadro para Encólpio, ao se conhecerem numa pinacoteca, ele o faz com um poema. A intromissão da lírica neste texto em prosa, longe de ser um fato isolado é mesmo uma constante no texto de Petrônio. Além da poesia, nos deparamos freqüentemente com outros discursos de natureza variada, ora com entrechos de caráter filosófico, ora com reflexões de teoria literária. Acrescente-se a isso o estilo propositalmente baixo adotado e o constante diálogo com as obras da tradição, cujo intuito é o de fazer paródia da alta literatura.
Partindo de Massília, em algum momento Encólpio profanou o culto a Priapo, o deus da ereção permanente, e foi punido com a impotência e com o ciúme. Ciúme e impotência ao mesmo tempo formam uma punição e tanto, com graves conseqüências: o despeito amoroso teria levado o protagonista ao assassinato. Os personagens se vêem a todo momento em deslocamentos e fugas, e é possível pensar que por trás destas fugas esteja uma busca de retratação ao Deus, afinal o destino de Encólpio é Lâmpsaco, cidade onde nasceu Priapo e onde termina o romance. Há, ao longo do romance, dois triângulos amorosos de caráter tipicamente homossexual: na primeira parte da narrativa, entre Encólpio Ascilto e Gitão; na segunda, entre Encólpio, Gitão e Eumolpo. Mais correto do que classificá-lo como uma romance homossexual, seria o de considerá-lo um romance bissexual.
Uso da intertextualidade
Ao mesmo tempo em que adota um estilo que está longe de ser elevado, apesar disso, e graças ao uso corrente da intertextualidade, o autor chama a participar de sua narrativa vários textos clássicos cujo propósito é francamente o de paródia. Uma das grandes influências do romance é a Odisséia. Como neste, o herói de Satíricon empreende também uma longa jornada; como na epopéia de Homero o herói de Petrônio também é perseguido por um deus. A referência a certos nomes e a certos episódios é incontestável, a mulher com quem Encólpio tem uma frustrante experiência amorosa chama-se Circe, nome da deusa que na Odisséia transforma os marinheiros de Ulisses em porcos. Este é reconhecido na volta a Ítaca, vinte anos depois de sua partida, por uma velha ama devido a uma cicatriz na perna adquirida quando Ulisses era muito jovem. Na barca de Licas, este reconhece Encólpio não por causa de uma cicatriz, mas pelo reconhecimento de sua genitália pelo dono da embarcação. É o narrador que, em seguida, faz a vinculação de forma direta entre este episódio e o episódio da ama de Ulisses na Odisséia.
Como se pode entender a adoção do gênero e do procedimento de Petrônio? Não pretenderia o escritor estabelecer um diálogo com a tradição elaborando, com a utilização do mais baixo dos estilos, o cômico, uma obra em maior consonância com o seu tempo? Não seria possível criar uma obra à altura da dos gregos baseada na imitação de suas realizações, era como se os modelos antigos já estivessem desgastados para servirem de modelo, isto porque as realidades históricas grega e romana são muito diferentes. Num dos momentos da sua História da Literatura Ocidental, Otto Maria Carpeaux faz a seguinte observação sobre a literatura romana em oposição à grega: “Devia ser literatura [romana] de evasão porque não tinha nada com a realidade no meio da qual surgiu. O espírito grego cria suas realidades: Estado e poesia, religião e teatro estão no mesmo plano; a distinção entre realidade material e realidade espiritual, para o grego, não tem sentido. A realidade romana é construção em material dado. É realidade econômica, política, jurídica, administrativa. O romano não criou seu mundo; encontrou-o, dominou-o, continuou a dominá-lo, pensando em termos administrativos. A realidade espiritual, importada de fora, é uma planta exótica em Roma; os que pretendem viver nela só podem fazê-lo como alto funcionário que nas horas vagas de ócio se entrega a caprichos de diletante, ou como boêmio que se afasta das ocupações sérias da vida” [2].
Tributo a Homero
É possível imaginar que o sonho de Petrônio seria o de criar uma obra que não fosse uma imitação piorada do modelo, mas uma outra, capaz de expressar, entre outras coisas, essa inadequação; para isso, optou por um gênero ainda pouco prestigiado, o romance, e de um estilo baixo, que não abrisse mão da paródia aos clássicos. O resultado é uma obra de caráter realista. Para observar melhor este aspecto, tomemos o episódio que nos chegou na integridade, que é o Banquete de Trimalquião.
O que assistimos nesse banquete é a uma magnífica festa para poucos convidados, em que a ostentação exagerada, de mistura com as atitudes e a linguagem muito grosseiras de seus participantes, principalmente de seu anfitrião, causa perplexidade até mesmo no leitor contemporâneo. Trimalquião, que nascera escravo e se tornara um homem livre e muito rico, carente de um refinamento que só a cultura poderia lhe dar, tem a necessidade de se afirmar por meio do luxo. O desejo de pavonear anda aqui de mãos dadas com a riqueza e a rudeza. A atitude exibicionista do dono da casa guarda semelhança com as dos novos-ricos dos dias de hoje, daqueles que enchem a piscina de seus palacetes com champanhe francês no dia do casamento da filha, ou que convidam as maiores celebridades para o aniversário da cachorrinha de estimação que, na companhia de sua dona, receberá os convidados com um reluzente colar de diamantes ao pescoço.
A narração fortemente descritiva de todo episódio é feita com vagar, lançando luz suficiente para compor todo um quadro colorido em que nada fica à sombra, nada fica subentendido. Esta maneira de proceder é um tributo que o escritor paga a Homero. O fato é que este episódio é iluminado também graças à narrativa de outro conviva do banquete, a quem o narrador cede a voz para falar de Trimalquião e de sua esposa. A novidade aqui é que este novo narrador utiliza-se de um discurso próprio, subjetivo, que revela sua condição social e um histórico de vida semelhante ao do anfitrião. Ceder a voz a outro narrador é estabelecer momentaneamente outro ponto de vista à narração, e este tem o condão de iluminar assim a cena de dentro – e nesse discurso estão presentes os hábitos lingüísticos e valores de um homem de condição social semelhante à de Trimalquião.
É notável que uma das hipóteses da sobrevivência dos fragmentos do romance deveu-se não propriamente a literatos, mas a gramáticos que viram na escrita de Petrônio excelentes exemplos de discursos do latim vulgar. O deslocamento do ponto de vista, carregado da subjetividade própria de quem o realiza, é um procedimento que aproxima a escrita de Petrônio da modernidade, ou, para dizer com Auerbach, a quem essas últimas linhas são tributárias: “Não é de forma diferente que trabalham os escritores modernos, como Proust, só que mais conseqüentemente também dentro do trágico e do problemático, do que falaremos logo mais. O procedimento de Petrônio é, portanto, superlativamente artístico e, se ele não tiver tido precursores, genial” [3]. O que Auerbach vai dizer mais adiante é que Petrônio irá se manter fiel à unidade do tom que é a do cômico, nunca descendo ao emaranhado trágico dos conflitos. O realismo do autor latino o aproxima da moderna representação da realidade – ainda segundo a visão do crítico, é a fixação exata, nada esquemática, do meio social.
Por tudo isso o Satíricon nos dá a sensação de estrema modernidade e entendemos perfeita