A reconstrução como negócio
Confira a entrevista com Raquel Rolnik e Letícia Osório sobre as mudanças climáticas e o desenho urbano
Vamos voltar à tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, Porto Alegre, especificamente. É problemático definir o que fazer para reconstruir regiões afetadas por mudanças climáticas tão radicais. As ações futuras consistem em mais do mesmo ou em uma mudança completa no desenho urbano?
Para tratar dessas questões, nós convidamos duas especialistas. Raquel Rolnik é professora titular da FAU/USP e coordenadora do LabCidade. Ela foi relatora da ONU, do Direito à Moradia, visitando vários países, analisando todas essas problemáticas de exclusão, de urbanismo perverso e como enfrentar isso. Letícia Marques Osório é advogada, urbanista e doutora em Direito. É autora do “Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras”, assessorou a Lei Orgânica Municipal de Porto Alegre, esteve 10 anos na gestão de organismos do governo do estado e municipal do Rio Grande do Sul e trabalhou na ONG Cidade, em Porto Alegre.
Confira a transcrição da entrevista concedida à TV Diplomatique na íntegra:
Silvio Caccia Bava:
Para começar, como vocês estão vendo as iniciativas de governo para enfrentar essa crise que se abateu sobre Porto Alegre e toda aquela região de pampa que foi inundada com as chuvas e com a elevação do Guaíba?
Raquel Rolnik:
Vamos começar pensando nas várias dimensões dessa tragédia que, na verdade, foi totalmente construída por políticas. O que provocou essa trágica situação não é exatamente uma ira divina. Ela foi produto de decisões que foram tomadas ou deixaram de ser tomadas ao longo dos anos por aqueles encarregados da gestão do território, sejam eles governos em diferentes níveis, seja o próprio modo de ocupar/fazer, da cultura urbana hegemônica.
Neste momento temos um desafio imediato: a assistência e o socorro às vítimas. Mas temos também uma outra discussão que é a reconstrução e a recuperação.
O tema da reconstrução é marcado pelas urgências, mas também inclui uma discussão de fundo, no sentido de qual é o modelo de cidade que nós vamos recuperar, se nós vamos repetir o mesmo modelo de ocupação do território que foi responsável por essa tragédia.
Aqui temos claramente que discutir o modelo carbocêntrico das cidades, de sua relação “contra a natureza”. A questão central é o processo decisório sobre o destino dos locais atingidos e de que forma e sob que modelo se dará a reconstrução.
O que podemos trazer aqui da experiencia pregressa não é muito alentador. Será que nós vamos conseguir fazer um processo de reconstrução enfrentando as questões que nos levaram à tragédia?
A prefeitura de Porto Alegre acaba de anunciar sua associação com uma empresa de consultoria ligada a fundos de investimento financeiro, que é especializada em rebranding, ou seja, reposicionar a empresa após uma crise.
Me parece que a questão central, que é a possibilidade de que as pessoas possam ter uma vida digna, e que a reconstrução possa garantir isso para os atingidos, e, especialmente os atingidos mais vulneráveis, não é o objetivo central das operações de consultoria desta empresa.
Me parece que o caminho anunciado é o caminho das oportunidades financeiras e econômicas que se abrem para os agentes globais, os chamados agentes “abutres”, que estão prontos para entrar em processos de crise para aumentar sua lucratividade, penetrar em mercados onde não atuavam, capturando o processo de reconstrução para um processo de lucro. Em momentos de crise como esse se compra ativos desvalorizados para poder depois revendê-los com grandes margens de lucro.
Sílvio Caccia Bava:
Letícia, a Raquel fez menção a uma empresa, a Alvarez & Marsal, que é uma empresa norte-americana, que foi contratada quando teve o furacão Katrina, lá em New Orleans. Ela tem 9 mil funcionários no mundo inteiro. Uma das primeiras medidas que a Alvarez & Marsal fez lá foi demitir 7 mil funcionários da área de educação, propondo uma política de oferecer vales para os estudantes irem estudar em escolas privadas. E desmontou a educação pública. Vocês têm uma ideia do impacto na educação de Nova Orleans? É isso que podemos esperar da Alvarez & Marsal?
Letícia Osório:
Eu estive em New Orleans em 2009, em uma missão do Grupo de Especialistas contra Despejos Forçados da ONU Habitat, para analisar a situação das pessoas que tinham sido deslocadas, em agosto de 2005, pelo furacão Katrina, quando ele atingiu a costa da Louisiana.
A ameaça do furacão levou a uma ordem de evacuação de Nova Orleans, e as falhas subsequentes nos diques do Lago Pontchartrain fizeram com que praticamente todas as pessoas restantes fossem forçadas a deixar a cidade.
Eu acredito que, nessa época, a empresa Alvarez & Marsal ainda não tinha iniciado os seus trabalhos, o foco ainda estava na questão de moradia. E olhe que 5 anos depois ainda havia uma situação de crise, que atingia também as questões de saúde, pois o principal hospital que foi também danificado estruturalmente não havia ainda sido reaberto, causando um grande impacto na cidade.
Começo falando dos desastres potencializados pelos efeitos da mudança climática, de efeitos repentinos, no Rio Grande do Sul. Várias cidades e comunidades atingidas por chuvas e inundações intensas, em setembro de 2023, já apontavam situações pré-existentes de alto risco, de serem atingidas por outros eventos climáticos extremos.
Para os afetados, há uma situação pré, uma situação durante, e, quem sabe, uma situação pós. No curto ou médio prazo nós não vemos um final para o caso do Rio Grande do Sul.
Há uma semelhança entre o que aconteceu em New Orleans e Porto Alegre, a começar em relação aos sistemas de alerta que foram falhos. O que ocorreu em New Orleans pode aportar lições para não serem repetidas no RS.
O que realmente danificou New Orleans, após o impacto do furacão, foi, no dia seguinte, o rompimento dos diques do Lago Pontchartrain. As pessoas foram pegas de surpresa e muitas morreram afogadas dentro de casa porque tinham problemas de locomoção, não conseguiram sair.
Esse furacão e desastre deslocaram dois milhões de pessoas na Costa do Golfo, pois depois que o furacão passou, houve ordem de evacuação total da cidade e muita gente permaneceu deslocada.
A crise de moradia que encontramos foi resultante de um sistema de falhas de políticas públicas e programas de reconstrução, retorno, e compensação das pessoas e comunidades afetadas.
O alagamento danificou 4 complexos de moradia popular, chamados os Big Four, com 4.500 unidades, que abrigavam maioria de pessoas afro-americanas de baixa renda. Esses complexos foram demolidos sob o argumento de que era importante reconstruir a cidade de forma inclusiva, pois esses complexos reproduziam um sistema de apartheid na cidade, mas eram estruturas muito bem construídas e as pessoas gostavam de morar lá.
A necessidade de demolição foi questionada, pois muitos prédios não apresentavam danos estruturais. A alternativa à demolição consistia na reconstrução de unidades privadas mistas que acomodavam e misturavam pessoas de baixa renda com renda mais alta, com diferentes aspectos sociais, para tentar a integração. Só que eles demoliram 4.500 unidades habitacionais e reconstruíram 750. Então, essa política dobrou o número de pessoas sem teto na cidade. Quando a gente visitou, existia um grande volume de moradores de rua.
O que que isso pode trazer de exemplo para Porto Alegre? Os dados de maio da Defesa Civil mostravam que havia 37 mil pessoas em abrigos, 500 mil pessoas deslocadas, e dois milhões e meio afetados, fora as pessoas mortas e desaparecidas. O ponto é, qual é a política de proteção, reconstrução ou reassentamento para esses deslocados?
Há pessoas que puderam retornar às suas casas, há pessoas que poderão retornar sob condições especiais, tais como reconstruir taludes, diques e outras medidas para conter alagamentos. E tem pessoas que não poderão voltar. Então, o que a professora Raquel traz aqui é muito importante, qual vai ser o modelo de reconstrução e, principalmente, como vai ser o atendimento das pessoas vulneráveis, excluídas, que foram atingidas?
Muitas delas ocupam áreas por meio de posse, sem documentos de propriedade, como as vilas que se localizam na volta do aeroporto de Porto Alegre ou da arena do Grêmio; elas continuavam alagadas e são áreas que foram conquistadas pela luta popular, mediante ocupações, e depois de movimentos de melhoramento habitacional na área. E essas áreas estão sujeitas à uma gentrificação nesse processo de reconstrução.
Raquel Rolnik:
Quando eu era relatora da ONU, preparei um relatório sobre Mudança Climática e Direito à Moradia, fazendo uma espécie de balanço de várias situações de reconstrução pós-desastre. Eu pude visitar o Haiti, o Chile, e acompanhar mais de longe os processos de reconstrução da Turquia. Todos esses processos de reconstrução pós terremotos.
Há uma questão absolutamente comum nessas três situações: territórios populares, bairros autoconstruídos habitados, muitas vezes, por não-brancos, então, a gente está falando de indígenas, de negros, que uma vez destruídos, levam ao build back better, quer dizer, uma perspectiva internacional de reconstruir de forma que a nova situação será muito melhor do que aquela anterior ao próprio desastre. E reconstruir melhor, sim, é tudo o que queremos, mas o que é reconstruir melhor e para quem?
Nessas situações, o que vimos na prática é que muitos bairros, ao serem reconstruídos, deixaram de ser territórios populares. No Chile, nunca vou esquecer, era um bairro de pescadores na beira do mar. Fizeram casas para os atingidos em cima do morro, supostamente para protegê-los de possíveis tsunamis. Mas, imagina pescadores carregando um barco em cima do morro para descer na praia! E por quê? Era muito perigoso morar perto da praia.
E o que virou a antiga área aonde essa comunidade de pesca vivia perto da praia? Resort chique, porque resort chique não é perigoso! Só é perigoso para o pescador morar em suas comunidades tradicionais. Estes momentos foram marcados por processos de despossessão. Especialmente para aqueles cujo vínculo com o território não é definido pela propriedade individual registrada.
Uma das grandes batalhas de muitas agências humanitárias é poder investir na reconstrução de casas nas comunidades cujos vínculos com a terra que ocupam são de outro tipo: coletivos, posseiros, comunidades tradicionais que vivem há décadas, às vezes centenas de anos, em um lugar. Quando perdem suas casas é negado seu direito de permanecer onde estavam.
Minha preocupação é que a especialidade de empresas desse tipo é de despossessão, quer dizer, é pegar áreas desvalorizadas em função de várias coisas – lugar que inundou, que tudo está destruído, que todo mundo perdeu – elas entram, compram, refazem, mas refazem não para aquelas pessoas que estavam vivendo ali.
Quem tem seguro consegue reconstruir sua casa com seu próprio seguro, mas esta é a minoria da minoria. E foi por isso que eu coloquei a questão do processo decisório, porque, no fundo, a questão central é: quem decide o que será reconstruído, como e para quem.
Sílvio Caccia Bava:
Para enfrentar esse desastre de proporções inéditas o governo federal destinou um volume muito significativo de recursos para ajudar na emergência nesse momento, e na reconstrução.
Mas o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, ao tentar justificar sua inação, falou que tinha outras prioridades para atender e não assumiu medidas de prevenção. Falhou até em avisar a população dos riscos que ela corria.
O prefeito Sebastião Melo é um privatista neoliberal que contratou a Alvarez & Marsal. Aliás, por que contratar uma empresa internacional se nós temos urbanistas aqui no Brasil com um know how muito desenvolvido e comprometido com a questão social?
O desafio é que a articulação desses três poderes ainda está por ser mais bem construída, se é que é possível. O que que nós podemos esperar dessa reconstrução?
Letícia Osório:
Esse ponto que você traz sobre a participação das pessoas afetadas, é um ponto fundamental. Vou voltar de novo a New Orleans, já que é o exemplo que está sendo utilizado.
Uma discussão que rolou foi sobre a reconstrução do sistema da infraestrutura de saúde, que foi muito destruído. A proposta da prefeitura, aprovada pela Câmara de Vereadores de New Orleans, era reconstruir na região da Lower Mid-City, mediante a destruição de 165 moradias históricas e 25 quarteirões da cidade, para refazer o complexo de saúde. É uma resposta quase impensável para a reconstrução.
Os residentes apresentaram um plano alternativo, sobretudo os que teriam seus imóveis demolidos, além de moradores de outros bairros da cidade impactados pela falta do acesso à saúde. A proposta alternativa foi completamente desconsiderada. As pessoas afetadas não foram consultadas ou consideradas nesse processo. E isso é algo que em Porto Alegre não deveria acontecer. Acredito que pela densidade dos movimentos sociais atuantes e presentes, poderá haver um processo de envolvimento dos atingidos.
Raquel Rolnik:
Já começou um movimento dos atingidos. É difícil criar um movimento deste tipo porque as pessoas estão vivendo uma enorme fragilidade, tentando desesperadamente reconstruir suas vidas. É nessa hora que os abutres rapidamente se organizam para poder aproveitar.
Eu já vi isso em vários lugares. Governos que estavam totalmente comprometidos com estratégias de ajuste fiscal, alegando que não tem dinheiro para nada, para pagar salário de ninguém, para fazer nada, para construir moradia, mudam de postura! Acontece um desastre e aparecem bilhões.
Nesse momento se aciona uma espécie de coalizão entre os que seriam os “fornecedores básicos” do processo de reconstrução da infraestrutura, que já estão prontos – empreiteiras, escritórios de consultoria de engenharia -, para, rapidamente, se mobilizar e apresentar projetos. Já conhecem todo o processo de contratação, conhecem a forma como operam os governos para poder contratar, já têm interlocuções e formatos que tem a ver com os programas dos governos, então, já estão prontos para chegar ali com seus produtos e vendê-los. E por quê? Porque está todo mundo falando da urgência, e a urgência é real, as pessoas têm pressa, elas querem ver resolvida sua vida.
E aí, nessa hora, então, se justifica, inclusive, não se discutir nada com ninguém porque estamos com pressa, porque tem que ser rápido, porque tem que aparecer logo, entregar.
É nesse momento que essa coalizão entre interesses políticos, interesses econômicos, a máquina da reconstrução, no âmbito internacional também, começa a aparecer. Porque tem uma máquina internacional de reconstrução de desastres que vai ofertando seus produtos e, inclusive, oferece de graça o trabalho para ajudar agora, através de “ajuda internacional”. Então, “nossa, é de graça, eu vou te dar de presente x casas de graça”. Só que isso depois vai implicar em um contrato de compra desses x vezes mil.
É a mesma história dessa empresa na relação com a prefeitura, ela vai fazer 60 dias de trabalho de graça para depois ser contratada e poder ser paga muito mais.
Essa coalizão acaba capturando as iniciativas e, em nome da urgência, passa-se por cima de qualquer debate e qualquer discussão com os atingidos, que são as pessoas que, em última instância, tem o que dizer sobre os seus bairros e sobre suas vidas. E acaba, por exemplo, propondo essa ideia de cidades provisórias, que é um negócio completamente absurdo, você tirar todo mundo de onde está e enfiar lá em um outro lugar, longe, todo mundo junto, o caos, sem respeitar as redes, as histórias, toda a vida que acontece dentro dos lugares de origem, onde essas pessoas estão. Quem é que vai ser favorecido por essas cidades provisórias?
Letícia Osório:
É muito importante o monitoramento da sociedade civil. Os atingidos é um conceito amplo, porque nem todo mundo que foi atingido teve que se deslocar de casa. Algumas pessoas foram atingidas porque ficaram sem luz, sem água, sem mobilidade.
Também se fala em “refugiados climáticos”, mas esse termo não é o mais adequado, porque o refúgio é extrafronteiras nacionais. O termo mais correto, para mim, seria “deslocados climáticos”, pessoas que se deslocam dentro do próprio território nacional em decorrência de desastres exacerbados pelas mudanças climáticas.
No sistema internacional dos Direitos Humanos, essas pessoas não têm um status reconhecido somente por essa caracterização de deslocamento. Então, isso as coloca em uma situação de vulnerabilidade.
Recentemente, a deputada federal Érika Hilton apresentou projeto de lei que cria a política nacional para deslocados climáticos, numa abordagem de Direitos Humanos nos aspectos da proteção e da assistência às pessoas deslocadas. Mas o projeto precisa avançar no sentido de garantir o direito ao retorno com segurança às moradias, posses ou propriedades originais, ou à restituição.
No caso do RS dois aspectos preocupantes e desafiadores se apresentam: primeiro, a construção de cidades provisórias, de lona, administradas e geridas com apoio da ONU Migrações. Sua existência dá certo alento a quem não tem para onde voltar, mas no longo prazo não podem se converter em assentamentos permanentes.
No caso de New Orleans, as pessoas que não tinham como retomar às suas moradias ou terrenos foram obrigadas a morar em trailers da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências – FEMA. Muitas pessoas e famílias ficaram morando nesses trailers por quase 7 anos, já que não conseguiram retornar frente ao um processo de reconstrução extremamente lento.
E o que ocorre com as pessoas que não vão conseguir retornar para casa porque a cidade, ou o bairro, não vai poder ser reconstruído no mesmo local? Quais são os direitos dessas pessoas? Quem financia o reassentamento e como funciona para quem tem propriedade e quem tem posse?
A discriminação foi um aspecto que permeou toda a política de reconstrução de New Orleans. Os afro-americanos foram as pessoas mais impactadas pelas políticas perversas e excludentes de reconstrução. E isso é algo que teremos que observar como ocorre no Rio Grande do Sul.
Sílvio Caccia Bava:
Raquel, na história tem momentos em que uma seca desastrosa, ou inundações, obrigaram as cidades a mudar de lugar. O povo teve que se deslocar e não ia voltar mais, porque não tinha mais condições para isso. Eu fico me perguntando se a situação do Rio Grande do Sul não é algo similar, quer dizer, nós podemos prever inundações o ano que vem, o ano seguinte. Então, você acha que tem jeito de ficar lá Porto Alegre, naquela configuração geográfica, com as mudanças climáticas. E, se tiver, o que é uma cidade inovadora, o que é uma cidade que seja capaz de absorver essas mudanças necessárias e oferecer qualidade de vida, mesmo nessas condições?
Raquel Rolnik:
Não especificamente Porto Alegre, mas, eventualmente, pedaços, trechos da cidade, são trechos para se repensar se é possível ou não uma ocupação. E alguns municípios que foram inteiramente atingidos, para eles essa questão está colocada, menos para Porto Alegre, mas mais para alguns municípios do vale do Taquari.
A questão central é o modelo de cidade, que é basicamente o modelo de cidade que a gente tem, é um modelo que começou a operar no século XIX, e se intensificou muito ao longo do século XX. É um modelo baseado no quadrinômio: asfalto, concreto, cimento e ferro. E, evidentemente, o que segura isso tudo é o transporte por motor à combustão, sobre pneus.
Temos um modelo de cidade que estabeleceu uma política que é a cidade contra as águas. Isso em relação aos rios, aos lagos, às lagoas, às águas, que é o tema central dessa questão de Porto Alegre. A gente pega as várzeas dos rios, a gente aterra, cria terra firme em cima dessa várzea, a gente pega o rio e coloca dentro de um tubo, em um sistema de drenagem, muitas vezes a gente enterra o tubo e joga uma avenida por cima, ou coloca uma avenida do lado do canal. E esse é o modelo básico. Aí, quando começa a encher, você faz mais do mesmo, que é o piscinão, que é uma grande estrutura de concreto, cimento, ferro etc., que continua produzindo emissões e que não resolve absolutamente outros problemas, como as enxurradas.
Vamos lembrar que a mobilidade urbana é o que mais emite poluição, e a segunda é a própria indústria da construção e a forma como ela é feita. Então, evidentemente, a discussão que está colocada agora é transformar o modelo.
E quando se fala da cidade esponja, o termo começou a ficar famoso, essa expressão pegou, mas, na verdade, é a ideia da SBN, soluções baseadas na natureza, ou seja, em vez de você trabalhar contra a natureza, você trabalha na cidade incorporando a natureza como parte da cidade. Por exemplo, permitindo muito maior permeabilidade, permitindo que o rio ocupe melhor e mais a sua várzea, permitindo criar elementos de clima e de proteção ao próprio rio, com áreas verdes, com matas ciliares; também chamamos esta nova forma de abordar a infraestrutura de” infraestrutura verde”.
Então, a reconstrução será com a infraestrutura do século XX, que é essa que gerou a crise climática, que emite, que nega a natureza, ou vamos ser capazes de fazer uma reconstrução com uma tecnologia e uma infraestrutura do século XXI, pós-desastre e pós crise climática?
Sim, vamos ter cada vez mais enchentes. Isso já está acontecendo. Temos que nos repensar. Eu acredito que é possível continuar existindo Porto Alegre, com toda força que ela tem, com toda a população que ela tem, pensada e reconstruída. Porto Alegre, inclusive, foi uma cidade marcada pela inovação na gestão, criou o orçamento participativo, colocou isso na agenda mundial da gestão municipal. Porto Alegre está desafiada agora a se reinventar, também do ponto de vista urbanístico. E acho que tem condições. Tem recursos, tem equipe técnica, tem pesquisa, tem gente mobilizada, tem movimento social organizado.
Eu acho que Porto Alegre pode ser um grande exemplo para nós, de como fazer isso. Agora, para isso, vai ter que quebrar uma quantidade de ovos fenomenal, vai ter que enfrentar a coalisão político/técnica/empresarial que tem sustentado e reproduzido o modelo hegemônico de cidade que temos, que vai hoje na direção contrária do que estamos apontando, tanto do ponto de vista de projeto e modelo de cidade como de sua gestão.
Sílvio Caccia Bava:
Essa política tradicional tem a anuência da Câmara dos Vereadores, que está muito comprometida com o capital imobiliário, e não tem tanto vínculo com os interesses populares, tem o apoio do prefeito, do governador.
Mas, Letícia, você conhece algum exemplo no mundo em que a gente possa se inspirar para poder pensar uma reconstrução sustentável, um novo jeito de viver nas cidades? Nós não temos que pensar em cidades menores, descentralizadas, sem essa escala toda de problemas?
Letícia Osório:
Concretamente não conheço nenhum exemplo de reassentamento em que as pessoas não tenham tido sofrido impactos negativos quanto à situação econômica, social ou cultural.
Em todos os estudos que se referem a reassentamentos, Raquel é especialista internacional nesse tema, principalmente no que concerne a impactos de grandes projetos de desenvolvimento, as comunidades são partidas, as redes sociais são fragmentadas, e as pessoas que dependem da terra ou território onde residem são muito afetadas.
No caso de Porto Alegre há evidências, e eu espero que isso seja apurado criminalmente pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, da negligência e omissão do governo municipal em fazer a manutenção do sistema de proteção contra cheias. Isso talvez não evitasse o alagamento de certas áreas de Porto Alegre, mas evitaria uma tragédia, a dimensão do estrago que teve. Então, a manutenção das bombas, dos diques, essa é a grande questão para as cidades da região metropolitana que foram atingidas, averiguar causas, consequências e soluções urgentes.
Por exemplo, o bairro de Canoas que foi mais atingido, foi construído à esquerda da BR116, então, próximo ao rio, onde era uma plantação de arroz anteriormente. A infraestrutura colocada ali não dá conta de evitar esses alagamentos. E os alagamentos no Brasil, eles não são só de água, eles são também de lama, o que dificulta a contenção e causa um impacto ambiental e social muito maior.
Muita gente compara essa enchente de Porto Alegre com a de 1941, mas não mencionam que tivemos uma enchente em setembro do ano passado que arrasou o Vale do Taquari. Em maio, várias cidades receberam um volume extraordinário de chuva, correspondendo a um terço da média histórica de precipitação para todo um ano. Essas chuvas levaram 14 trilhões de litros de água para o lago Guaíba, equivalentes a quase metade do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipu. A chuva excessiva afetou mais de 60% do território estadual.
No caso de Porto Alegre, essa reconstrução passa por uma melhoria dos sistemas dos serviços públicos. Há também a questão da reconstrução econômica do campo rural do RS. Desde o agro, com seu arroz, até a agricultura familiar e os assentamentos do MST, e seu arroz orgânico. Como esses setores serão atendidos e beneficiados? Não há transparência nas informações governamentais. A gestão de bacias hidrográficas tem que estar integrada aos processos econômicos e nos processos de produção de cidade.
Raquel Rolnik:
É uma nova forma absolutamente necessária de relação com o território e com a natureza, pensada no campo e na cidade, para que a gente possa imaginar uma sobrevivência digna para todos e todas a médio e longo prazo.
Essa questão da inundação já está colocada há muitos anos. Há décadas se anuncia como uma tragédia ambiental iminente. Mas, infelizmente, – e contraditoriamente, – quem está se apresentando como alternativa para a reconstrução é mais do mesmo.
É mais do mesmo do ponto de vista do modelo de infraestrutura, é mais do mesmo do ponto de vista dos atores organizados e estruturados em torno dela, dos interesses que se movem em torno dela, e, sobretudo, em termos de gestão.
Já as “máquinas da reconstrução”, que tem presença na gestão pública e na política, são aquelas que se oferecem no atacado, padronizam sua produção, e reproduzem o modelo um milhão de vezes, buscando rapidez na entrega e a maior margem de lucro.
As coisas menores e pequenas são as coisas que vão abrir possibilidades de inclusão, absorver muito mais, inclusive com os agentes econômicos locais, os agentes de desenvolvimento local. Como não são estratégias que vão gerar grandes negócios, elas acabam preteridas.
As melhores alternativas para enfrentar isso, elas deveriam ser absolutamente descentralizadas no sentido de que pensadas no lugar, para o lugar e com as pessoas do lugar.
Temos que lutar muito por planos de reconstrução locais nos bairros de Porto Alegre, nas cidades e bairros da região metropolitana. Temos algumas cidades enormes ali, que também deveriam ser descentralizados e usar mecanismos, inclusive, para poder instalar provisoriamente os deslocados, próximos a estes locais. Não dá para manter as pessoas em abrigos, tem muita gente em abrigo que é escola, a escola tem que voltar a funcionar.
Ao invés de ficar fazendo mega acampamentos, para criar meganegócios de gestão de acampamentos, você pode, por exemplo, alugar espaços vazios e subutilizados no próprio bairro, mobilizar pousadas e hotéis para colocar as pessoas, pagar as pousadas e hotéis para manter as famílias alguns meses nessas pousadas e hotéis, até que possam, ou reconstruir sua própria casa, com apoio, com assistência técnica, ou, eventualmente, poder acessar uma nova casa em um novo lugar.
Queria lembrar aqui a experiência do Furacão Katrina, eu estava olhando as informações sobre o Katrina, me preparando para esse nosso debate: depois do furacão, a cidade perdeu metade da população, e, mesmo hoje, ela ainda tem 20% a menos de população do que tinha.
As pessoas, especialmente negros, os afro-americanos de baixa renda que foram os mais atingidos, se mudaram para Houston, se mudaram para Dallas, mudaram de cidade, e é o que não pode acontecer de jeito nenhum, eu acho, no caso de Porto Alegre e demais municípios do Rio Grande do Sul. As pessoas têm o direito de continuar vivendo em seus territórios, o direito à restituição, o direito ao retorno.
Sílvio Caccia Bava:
“olha, depois da inundação do ano passado e, agora, depois dessa, eu vou me mudar, não vai dar para ficar aqui”.
O auxílio emergencial e a solução precária de moradia devem ser reforçados, atender esse sentido de emergência, mas a forma de reconstrução, eu não estou ainda percebendo como vai ser, vão ser sobre pilotis as casas agora? Como é que vai ser?
Letícia Osório:
Gostaria de acompanhar o processo de reconstrução de Eldorado do Sul que teve 90% de seu território coberto pela água e terá que pensar em uma estratégia de relocalização.
Os princípios internacionais dos Direitos Humanos que tratam dos deslocados por força de conflitos armados, na impossibilidade das pessoas afetadas não poderem mais voltar para aquele local, essa avaliação da inviabilidade habitacional tem que ser realizada de forma muito transparente, com a participação das pessoas e comunidades afetadas.
A normativa internacional de Direitos Humanos que trata de deslocados internos por conta de conflitos armados (por exemplo na Colômbia) assegura por meio de leis e decisões judiciais uma série de direitos para os deslocados, referente a acesso a serviços nas cidades receptoras e assistência ao retorno.
É o caso dos deslocados de Eldorado do Sul, RS que estão em Porto Alegre. Têm que ter acesso à educação, escola para as crianças, saúde. As cidades receptoras começaram a questionar seu papel ao receber um volume tão grande de pessoas, e seus serviços públicos não dando conta.
O Governo Federal respondeu de uma maneira bem rápida, ao modelo de resposta à Covid. Os decretos e as medidas provisórias que eles começaram a aprovar a partir de 7 de maio aprovam mecanismos como dispensar intervalo para novos saques do Fundo de Garantia, créditos extraordinários para certas operações econômicas, apoio financeiro emergencial de R$ 5.100 reais.
Com a possibilidade de prever eventos climáticos extremos, recursos emergenciais poderiam ser aportados antecipadamente. Houve um caso em Moçambique em que eles previram evento hidrológico grave e aportaram os recursos para as pessoas antes do acontecimento. Isso possibilitou que, de alguma maneira, as pessoas planejassem melhor a sua saída temporária ou permanente do local. Então esses sistemas de alerta eficientes têm que ser instituídos ou aprimorados nas cidades de uma maneira muito articulada com os sistemas locais de proteção de serviços. Mas, realmente, como isso vai ser feito, é ainda uma grande questão.
Os recursos que o governo federal está passando não dão conta de responder ao fato de que muitas pessoas não poderão voltar para suas casas, ou não poderão reconstruir suas plantações nos locais originais, quem é que vai cobrir esses custos?
Está na hora de começar a pensar como o financiamento climático tem que ser dirigido para proteger os direitos das populações deslocadas, e aportar esses recursos para as pessoas vulneráveis e em situações emergentes.
Existe o fundo de Perdas e Danos aprovado na COP-28 que inclui a mobilidade humana, significando que países, comunidades e organizações, poderão solicitar recursos para atender às necessidades dos deslocados climáticos, mas que ainda não tem recursos suficientes. O Brasil está acessando esses recursos, não está acessando? Então, um controle social sobre esses investimentos seria muito importante.
Raquel Rolnik:
De alguma maneira, tem alguma semelhança, com todas as diferenças, entre esses processos de reconstrução pós-desastre e as preparações para megaeventos esportivos.
Porque também é uma situação em que em nome da urgência, da calamidade, todos os decretos vão sendo suspensos, os processos de controle social que existem no nosso ordenamento jurídico vão sendo anulados, em nome da rapidez, evidentemente necessária, mas sem construir outras formas de controle social no lugar.
Eu acho que esse é o ponto. Quais serão as formas de controle social que nós temos sobre esses recursos? Quem vai fazer esse controle social? Não adianta você fazer isso no âmbito apenas do campo político-partidário das instituições de governo e legislativo.
Me parece que, nesse momento, essa utopia de ter conselhos, de ter comitês de representantes, descentralizados, que possam acompanhar esse processo, monitorar esse processo, fazer com que a sociedade civil tenha voz e poder neste processo.
Porque foi muito impressionante a mobilização da sociedade civil diante da enchente. Foi muito impressionante. Eu mesma vivi, como prefeita do campus da USP do Butantã/SP. Na hora da tragédia, houve um chamado da direção da Universidade para que fizéssemos uma ação de solidariedade.
Foi incrível! Sem nenhum comando central, em um processo totalmente horizontal, em três dias juntamos e enviamos 19 caminhões de doações para o Rio Grande do Sul, vindos de todos os campus da USP. Isso daí mostra uma capacidade de auto-organização, de mobilização das pessoas, e uma vontade de colaborar. Por que que não podemos usar isso para fazer um processo intenso de controle social e monitoramento de todo esse processo de reconstrução?
Sílvio Caccia Bava:
Isso sugere, inclusive, um outro desenho de gestão da cidade, com uma descentralização em subprefeituras que possam atuar com características próprias em territórios específicos.
Tem todo um desenho do futuro que é bastante interessante. Só temos que enfrentar os conservadorismos e o interesse do Capital, que se sobrepõe a tudo isso, comanda a Câmara dos Vereadores, e, pelo visto, tem a adesão integral do Sebastião Melo, porque ele é financiado, inclusive, pelas grandes construtoras imobiliárias que atuam na região.
Letícia Osório:
É muito importante que a sociedade civil se organize, que monitore a aplicação dos recursos da reconstrução, porque, com certeza, vai haver uma distribuição desigual, privilegiando áreas mais valorizadas das cidades, negligenciando as pessoas mais pobres.
E, realmente, haja uma força tarefa no sentido da unificação de alguns setores em prol desse monitoramento, como, por exemplo, o Tribunal de Contas do Estado, a Defensoria Pública, o Ministério Público, as organizações da sociedade civil. As organizações dos pequenos comerciantes, dos pequenos agricultores, dos sindicatos, teriam que, realmente, ter um papel mais ativo na tomada de decisões públicas.
Isso tem muita relação com o tema dos grandes eventos esportivos, mencionados pela Raquel, em que os Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas cumpriram com o papel de não apenas monitorar, mas denunciar e propor alternativas. Vozes que não tinham vez nos espaços oficiais, criaram seus próprios espaços na sociedade.
Raquel Rolnik:
Nesses momentos, é difícil falar nisso agora, mas crises como essas são crises terríveis, estou pensando especialmente nos mortos, nos desaparecidos, e nas pessoas que sofreram perdas materiais irreparáveis nas suas vidas, tenho todo respeito por elas, mas é uma oportunidade incrível que a gente tem de poder pensar as questões de uma outra forma. Isso é absolutamente urgente e necessário.
Responsável pela transcrição: Ana Amélia Duarte Marques – (21) 96643-4545