Refazendo o mundo a golpes de bisturi.
O crescimento do setor de cirurgias plásticas – de 465% na última década – reflete uma tentativa de resolver a contradição entre os sonhos cada vez mais grandiosos alimentados pela mídia.Mona Cholllet
Na primavera de 2007, falando ao telefone com dois banqueiros, em seu escritório na Universidade de Middlebury, em Vermont, Laurie Essig anunciou que os Estados Unidos estavam na iminência de uma crise grave. Seu conhecimento de economia era parco, mas seu campo de pesquisa em sociologia, a cirurgia estética, a colocava num lugar privilegiado para assistir ao que ela chama de “a crise subprime do corpo1”.
Nos Estados Unidos, de fato, 85% dos procedimentos estéticos – não só cirurgia, mas também tratamentos a laser ou injeções – são pagos por empréstimos. Eles não requerem nenhuma contribuição mínima, como é o caso em todos os países, exceto México e Austrália. Essa situação se deve a duas medidas tomadas pelo presidente Ronald Reagan logo após sua ascensão à presidência em 1981: por um lado, a autorização da publicidade médica e, por outro, a desregulamentação do crédito. As empresas que se especializam no financiamento de procedimentos médicos, sendo a mais importante a CareCredit, uma subsidiária da General Electric, concedem empréstimos para todos, incluindo a população de baixa renda. As taxas podem chegar a 28% e dobram quando o devedor não efetua o pagamento mensal2. Anteriormente reservada aos ricos, a cirurgia plástica se tornou um empreendimento maciço de “padronização do rostos e do corpo”. Ela visa atingir, disse um médico, “tanto as cabeleireiras como as executivas da rede WalMart”. A clientela é 90% feminina e 80% branca. Entre 2000 e 2010, os estadunidenses gastaram anualmente cerca de US$ 12,5 bilhões em procedimentos estéticos.
O crescimento do setor foi de 465% na última década e acompanhou o aumento da disparidade entre ricos e pobres. Isso reflete uma tentativa de resolver a contradição entre os sonhos cada vez mais grandiosos – alimentados pela exibição midiática do estilo de vida das classes privilegiadas – e os rendimentos cada vez menores. Mas a cirurgia estética corresponde também a uma visão liberal de um indivíduo infinitamente maleável, livre de qualquer pré-determinação e trabalhando continuamente para seu próprio aperfeiçoamento. Ela beneficia a crença de que todos os problemas e soluções, tanto o fracasso como o sucesso, são essencialmente individuais, não coletivos.
Essa lógica fechada explica por que essa indústria foi pouco afetada pela crise. Laurie Essig logo descobriu que seus conterrâneos estavam mais determinados que nunca em ir para o bisturi, mesmo que isso significasse assumir uma segunda hipotecaem sua casa. Eles percebem seu corpo como um capital a ser valorizado num mercado, seja o do amor ou o do trabalho, para ter uma chance de ver finalmente realizado o tal sonho americano. Modificá-lo para torná-lo mais agradável parece ser o mais sábio investimento. “Achei que talvez se eu não parecesse tão velha, tão cansada, conseguiria mais clientes”, disse uma amiga de Essig que é profissional autônoma e, embora falida, gastou, apenas em injeções, US$ 800 para encher o sulco nasogeniano (entre o nariz e o canto dos lábios). Encontrou aí a única resposta que poderia conceber uma insegurança de ordem estrutural.
Na França, a indústria cosmética não deixa de explorar essa insegurança, como fica evidente no recente dossiê “Rejuvenescimento Especial”, da revista Elle. O caso de Chloe, 36 anos foi submetido, entre outros, à opinião de dermatologistas: “No futuro, não é de ácido hialurônico que ela vai precisar nos sulcos leoninos da face, mas de toxina botulínica3. Quanto à sua forma oval, é necessário começar a mantê-la hoje. Aos 50, se ela realmente perder a sua firmeza, só o facelift poderá consertá-la”4.
A ideologia liberal, lembra Laurie Essig, repousa na crença da “liberdade de escolha”. Mas o que impressiona é a impotência que surge no discurso de seus entrevistados: “Gostemos ou não, somente a aparência conta em nossa sociedade”; “O fato é que o emprego sempre vai para aquele ou aquela que parece ser mais jovem etc.” O facelift ou botox parecem ser inevitáveis, “assim como os impostos e a morte”, observa ela. Dessa forma, eles mesmos criam a realidade à qual alegam estar submetidos como se o impacto de suas ações coletivas, de tanto ser negado, se voltasse contra eles. Como todos querem se destacar, vemos uma escalada absurda em que as frontes devem ser sempre mais suaves, as linhas cada vez mais congeladas e os seios maiores. A avalanche de imagens de corpos artificiais, lisos e brilhantes dos supermodelos e celebridades dá o tom, alimentando a ansiedade e o ódio ao corpo real.
Ironia suprema, a maioria dos médicos sonhava, inicialmente, com outra coisa, particularmente com a cirurgia reparadora ou reconstrutiva, mas eles se especializaram em implantes mamários e lipoaspirações a partir do momento em que tiveram seus próprios empréstimos para pagar.
Alguns até afirmam que seu trabalho é feminista porque ajuda as mulheres a “obter melhor opinião de si mesmas”. Isso é confundir a autoestima com o alívio que vem de “provar sua lealdade à ordem dominante”, nas palavras de Laurie Essig, em uma eficiente síntese da obra de Michel Foucault sobre o moderno exercício do poder pela disciplina dos corpos. Ela aponta que, desde sua origem, o projeto da cirurgia estética tem sido o de normalização, tanto racial como sexual, tentando apagar todos os marcadores que poderiam catalogar um sujeito como “não branco” e liberá-lo de seu corpo “degenerado”, mas também para acentuar a diferença entre os sexos, vista como sinal de superioridade racial. Os primeiros médicos praticantes queriam corrigir o “nariz de judeu ou irlandês”; hoje em dia, um cirurgião iraniano constata que “a Disney fez um dano considerável ao nariz persa”. Quanto à paixão das mulheres brancas pelos ases do bisturi, cada vez mais dedicados a torná-las mais “femininas”, só tem feito crescer.
“Ser mais feminina e aumentar a confiança em si mesma” são os objetivos das “Jornadas de Ação Relooking”, organizadas na França pelo Polo de Emprego para mulheres desempregadas por longos períodos, em parceria com o Fundo Ereel. Quando a campanha foi lançada, com ampla cobertura da mídia, em janeiro5, a comediante Marie-Anne Chazel explicava sua confiança nos “truques de mulher” para combater o desemprego em massa. Quem sabe logo teremos um crédito especial para os beneficiários de baixa renda?
Mona Cholllet é autora de Rêves de droite (Sonhos de direita), Paris, editora Zones, 2008.