Reforma da Previdência e a seguridade social no Brasil
A Constituição Federal de 1988 criou um inovador sistema de seguridade social e não deixa de ser um forte instrumento de indução institucional, visto que as mudanças que essa Carta introduziu nas políticas sociais “acarretaram a inclusão dos outsiders, mais da metade da população brasileira antes excluída de direitos sociais”, no universo desses direitos
A fisionomia e a cultura política de diversas nações são decorrência dos grandes acontecimentos do seu passado. E estes sempre desempenharam uma função exemplar, simbólica e viva. O passado nunca está morto e não é um fardo que os homens têm de carregar. Na verdade, ele se constitui como uma herança que requer ser mobilizada como um feixe de forças, o qual vincula o pensar, o recordar e, principalmente, o antecipar. O Brasil, país de esquecimentos, possui uma herança. E neste artigo defendemos que é a ela que devemos permanecer ligados.
O ato de instituição do Brasil moderno se constituiu através dos processos de industrialização e de legislação social: ambos perseguidos com vigor a partir da década de 1930 com a chegada de uma coalizão modernizadora ao poder; que soube compreender o passado e ressignificá-lo no presente.
Em primeiro lugar, devem ser assinaladas duas principais novidades referentes ao período em questão: 1) no campo econômico, o Estado tornou-se, de fato, o principal agente do processo de industrialização, dando suporte ao desenvolvimento de um capitalismo nacional; 2) no campo social, a ação do Estado orientou-se no sentido de incorporar os trabalhadores urbanos no processo político através da legislação social. Assim, de um campo a outro de intervenção, o Estado brasileiro no pós-30 passaria a se mover em torno dos conflitos reais existentes na sociedade.
Era Vargas
No Brasil, a chamada “Era Vargas” desempenhou um papel adventício. A legislação social criada no primeiro governo Vargas (1930-1945) representou os conflitos e compreendeu os sentidos das reivindicações cuja finalidade era a inscrição da população em novos direitos.
A construção da proteção social marcou profundamente a experiência republicana brasileira. Contra a negação do direito à existência da classe trabalhadora, que vigorou no país entre 1891 e 1930, erigiu-se, portanto, todo um conjunto de regulações públicas que se tornaram disseminadoras de expectativas democráticas.
Tratava-se, em suma, de um forte movimento de reação ao liberalismo oligárquico e antipopular, que, a bem dizer, sempre informou o agir das forças conservadoras no país.
Desde o início, a política social teve de ser construída como um ato deliberado de ousadia, rompendo assim com um longo período de paralisia, que transformara uma abstração – a institucionalidade liberal – em eficiente técnica de exploração a serviço das oligarquias.
É nesse sentido que a realização efetiva das políticas sociais dependeu da estruturação de burocracias públicas dotadas de forte ímpeto reformista, de fortes “capacidades estatais”, criadas para implementar a legislação social.
Proteção social
Os pilares da construção da proteção social no Brasil foram representados pelos institutos de previdência, pelos sindicatos e pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, os quais vieram à tona por intermédio de um arranjo corporativo.
O modelo corporativo brasileiro construiu as bases institucionais para um reordenamento das relações entre o público e o privado, sendo capaz, nesse sentido, de modificar os recursos de organização das coletividades por meio da legislação social do Estado. Porém, essa modificação se deu de um modo bastante ambíguo, mostrando-se insuficiente para alterar os padrões de distribuição dos recursos – os padrões propriamente redistributivos – e assim de reprodução das desigualdades.
No âmbito próprio da política social e trabalhista, as tensões que se verificaram no cerne desse reordenamento muito se devem aos intentos de parte das elites estatais de construir um novo espaço público conexo à cidadania social e ao mundo do trabalho – o que provocou fortes resistências (Boschi, 1991; Costa, 1999).
Cabe destacar que o encaminhamento da legislação social dentro de uma ordem corporativa foi determinado, em grande medida, pela magnitude das resistências colocadas pelo patronato agrário e industrial, e não por qualquer voluntarismo das elites estatais em criar uma “ideologia de Estado” sobre determinante da realidade.
Desde já é importante salientar que no período em questão os trabalhadores não se comportaram como meros espectadores do processo de institucionalização dos seus direitos de proteção.
A classe operária brasileira não permaneceu “destituída de consciência” sendo “manipulada” pela propaganda política e ideológica do novo governo (Castro Gomes, 1988). O Estado e a classe trabalhadora no Brasil, embora imbricados numa relação difícil, compartilharam interesses comuns. Limitação da jornada de trabalho, regulamentação do trabalho feminino e infantil, horas extras, férias, repouso semanal remunerado, aposentadorias e pensões, foram linhas divisórias, linhas civilizatórias por assim dizer, que demarcaram a constituição de um limiar de sensibilidade social entre os brasileiros, especialmente entre os brasileiros pobres.
Ter acesso ao conjunto desses benefícios era o sonho de muitos trabalhadores, que alguns poucos lograram realizar e a duras penas. Atravessar essas linhas significava estar protegido pelo Estado, ser reconhecido como cidadão, usufruir de uma segurança material e ontológica, ainda que mínima. Essas linhas foram riscadas num terreno hostil. No entanto, cabe questionar como a legislação social brasileira adquiriu uma surpreendente estabilidade, a solidez de um empreendimento durável, sob o assalto contínuo da mais veemente e despedaçadora instabilidade social?
A resposta para essa questão se encontra no tipo de ação pública que presidiu o processo de construção da proteção social nas décadas de 1930 e 1940: uma ação pública sociologicamente informada.
Sindicato único
Os legisladores sociais de 30 reconheciam explicitamente que sem estratégias de indução do Estado, centradas na promoção do sindicato único e do seguro social público, compulsório e de base profissional, e apoiadas por um direito do trabalho legislado, as lutas dos trabalhadores pela conquista de novos direitos facilmente sucumbiriam às pressões patronais (Lanzara, 2018).
A estratégia perseguida pelos legisladores sociais trazia consigo a promessa de construção de um Estado social centrado no eixo trabalho e proteção securitária. Tal promessa advinha das vantagens da sindicalização compulsória, associada, antes de tudo, ao acesso dos trabalhadores aos benefícios do seguro social.
Assim, por meio de induções burocráticas e legais, a securitização da força de trabalho levava ou “forçava” sua sindicalização. Esta, por seu turno, poderia fortalecer os vínculos entre os benefícios do seguro e a valorização do salário mínimo, uma vez que se contava com a expectativa de que as categorias mais mobilizadas puxariam para cima os salários das categorias menos mobilizadas.
Ao lado disso, o sistema de garantias jurídicas relacionadas ao trabalho se mantinha em função da CLT e do seu dispositivo mais abrangente, o instituto da estabilidade, criado em 1943 e extinto em 1966 (idem, 2018).
Estado de bem-estar social
No entanto, sabemos que a promessa de construção de um “capitalismo civilizado” entre nós, de ampliação das proteções do Estado de bem-estar social, se frustrou. E não há espaço aqui para elencar os inúmeros fatores que, naquela ocasião, contribuíram para as desventuras do Estado social no país.
Cabe apenas salientar que o patronato, seja ele agrário, industrial ou financeiro, sempre contestou o arcabouço da legislação social, apesar de ter se beneficiando sobremaneira do fato de os sindicatos permanecerem atrelados ao Estado, especialmente durante a vigência do Estado Novo (1937-1945).
Mas o que a Era Vargas deixou como principal legado é que era necessário valer-se da autoridade do Estado, das suas regulações, para que “mínimos civilizatórios” fossem estabelecidos no país.
Assim, através dos benefícios do seguro social público e compulsório, o governo Vargas utilizou-se de “técnicas de indução estatal” para auxiliar os sindicatos a alcançar densidade organizativa. Prevaleceu aqui uma estratégia de indução orientada a estruturar os recursos de ação coletiva da classe trabalhadora que, se desprovida desses recursos, permaneceria imersa na inércia do status quo (idem, 2018).
Repercussão
A forte repercussão das leis sociais sobre os assalariados não foi um fato trivial. A legislação social apoderou-se das crenças e das sensibilidades políticas populares, materializando um “direito a ter direitos” para a classe trabalhadora brasileira (Ferreira, 2005; Cardoso, 2010).
A legislação social também deu ensejo para a construção do trabalhismo como uma autêntica corrente de opinião nacional ligada às forças populares (Castro Gomes, 1988). Em 1945, no auge do movimento denominado “queremismo”, os trabalhadores perceberam a importância política de garantir as leis trabalhistas e de reivindicar novos direitos (Ferreira, 2005).
Apesar das suas imperfeições, a legislação social de 1930 e 1940 propiciou o surgimento de novas demandas e exigências coletivas. Bastaria, portanto, que se ampliasse o eleitorado para que a democracia de 1945-1964 se tornasse verdadeiramente redistributiva; como de fato ela viria a se tornar após o advento da Constituição de 1988.
De certo modo, a Carta de 1988 representou a retomada de um projeto iniciado em 1930 e interrompido com o golpe militar de 1964: um projeto que pretendeu, nos seus termos inovadores, democratizar a herança varguista de criação de um capitalismo minimamente civilizado no país; um capitalismo nacional e de feições trabalhistas e social-democráticas.
Como se pode depreender dos argumentos ressaltados acima, a utilização de estratégias de indução para que as políticas sociais gerassem determinados efeitos sobre a realidade tem uma longa história no país.
Em uma sociedade marcada por profundas desigualdades socioeconômicas e territoriais, como a brasileira, uma poderosa indução institucional, não desprovida, é claro, de participação da sociedade, deu alento para a utilização de alguns instrumentos, como a filiação compulsória ao seguro social, considerando os seus efeitos, em momentos de protagonismo da ação estatal, para conferir faticidade aos direitos sociais e gerar ação coletiva.
Constituição de 1988 e a seguridade social
A própria Constituição Federal de 1988, que criou um inovador sistema de seguridade social, não deixa de ser um forte instrumento de indução institucional, visto que as mudanças que essa Carta introduziu nas políticas sociais “acarretaram a inclusão dos outsiders, mais da metade da população brasileira antes excluída de direitos sociais”, no universo desses direitos (Arretche, 2018:3).
Além disso, um importante instrumento de transferências automáticas de recursos, também previsto pela Constituição, facilitou a implementação descentralizada de políticas universais de saúde e educação pelos municípios, contribuindo assim para a redução das desigualdades regionais na oferta desses serviços; políticas fortemente induzidas e reguladas por mecanismos federais de coordenação (idem, 2010).
No que concerne especificamente aos programas da previdência social, a Constituição instituiu o trabalhador rural como “segurado especial”, conferindo-lhe o direito ao benefício de aposentadoria sem exigência de vínculo contributivo. Também inovou ao equiparar o plano de benefícios para todos os trabalhadores, tendo sido fixado o piso no valor de um salário mínimo, indexado aos níveis correntes de inflação. Ademais, a assistência social no Brasil é um direito universal garantido pela Constituição, contemplando benefícios que protegem os grupos em situação de vulnerabilidade social, com destaque para o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
A Constituição de 1988 contribuiu decisivamente para a redução das desigualdades no país ao ampliar o universo dos protegidos pela previdência social. Como resultado da extensão dos seus benefícios (contributivos e não contributivos), em 2014, apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda menor ou igual a ½ salário mínimo.
Com relação aos benefícios da aposentadoria rural, cabe destacar que esta modalidade funciona como um seguro agrícola, fomentando a agricultura familiar e a fixação da população no campo.
A própria composição dos arranjos familiares dos trabalhadores do campo tem se modificado como consequência da introdução das aposentadorias rurais: os aposentados rurais passaram a ter uma condição de vida mais digna e, no âmbito das relações familiares, foram deslocados do papel de “dependentes” para o de “provedores” (Beltrão; Camarano; Mello, 2005).
Além disso, as transferências monetárias da previdência também produzem efeitos multiplicadores na ativação da economia dos pequenos municípios, atuando como importante mecanismo de redistribuição de renda das regiões mais ricas para as mais pobres.
É importante ressaltar que as transferências realizadas pela previdência social tiveram enorme contribuição para a queda da desigualdade durante o último período de expansão do emprego formal e de valorização do salário mínimo no país (2004-2014), visto que 60% das aposentadorias e pensões pagas pelo sistema público têm no salário mínimo o seu valor de referência (Kerstenetzky, 2017).
Em suma, com a Carta de 1988 a expansão das políticas de seguridade social passou a demonstrar de maneira contundente que a “promessa de proteção” irrealizada no passado se tornava um fato.
Desde 1990 diversos governos, mais ou menos comprometidos com a efetivação dessas políticas, tiveram de se submeter aos normativos que pretendiam finalmente estabelecer uma democracia redistributiva no país. Cabe destacar, particularmente, que na primeira década do presente século o país conseguiu conciliar pela primeira vez o que parecia impossível: aliar crescimento econômico com redistribuição de renda e ampliação da democracia política. A promessa da Era Vargas de ampliação dos direitos sociais vicejava em ambiente democrático, mostrando-se por isso bastante auspiciosa.
Acabar novamente com a herança de Vargas?
Não é de hoje que as forças liberais conservadoras no Brasil querem acabar com a Era Vargas. Por que essas forças condenam Vargas e o seu legado? Que “pecado” ele cometeu para ter gerado tantas reações adversas? Wanderley Guilherme dos Santos em instigante ensaio sobre o contestado legado de Vargas responde: “porque ele recolheu a ideia de justiça dos cárceres liberais e a distribuiu nas ruas e fábricas”; porque ele “promoveu os assalariados urbanos ao mundo da legitimidade pública” (Santos, 2006:16). Aliás, depreciar a herança de Vargas foi a fórmula encontrada pelos liberais, de ontem e de hoje, para deslegitimar toda e qualquer intervenção do Estado.
Dado esse diagnóstico, não é nada fortuito o fato de os períodos de maior intervencionismo que marcaram o modo de atuação de diversos governos brasileiros, desde 1930, serem descritos como momentos de pico da corrupção no país.
Assim, dos dois governos Vargas, passando por Kubitschek e pelas reformas de base encabeçadas pelo “populista” Jango, até os governos Lula e Dilma, tudo se resume a um conluio “patrimonialista”. Nessa trajetória de condutas desviantes, nem o prussiano governo Geisel é perdoado, pois cometeu “excessos intervencionistas”.
Para aqueles que condenam essa “herança maldita” e que apostam nas virtudes do mercado como purga dessa herança, tudo o que foi produzido em termos de planejamento e intervenção estatais é condenado como um desvio artificial, incluindo a transmutação democrática do Estado. Sem mencionar os diagnósticos de que as práticas clientelistas são filhas diletas das atividades de intervenção social do Estado, das políticas sociais redistributivas.
A ideia de que burocracias parasitárias, aliadas a políticos demagógicos, forjam essas políticas para tornar os eleitores, especialmente os mais pobres, cativos dos seus interesses.
Desmerecimento da legislação trabalhista e previdenciária
Assim, assiste-se desde 1930, com diferentes matizes e intensidades, um trabalho contumaz de desmerecimento da legislação trabalhista e previdenciária. Os direitos sociais são “privilégios” e propaganda totalitária, dizem os liberais de ontem e de hoje, sempre afirmando suas tendências de confundir a autoridade da lei, quando não lhes convém, é claro, com violência e arbitrariedade.
Aqui também se encontram os contumazes equívocos da esquerda – os equívocos de confundir o simbólico com o ideológico – ao compartilhar com os liberais a mesma visão estereotipada sobre a Era Vargas e o seu legado.
Contudo, não percebem os detratores que acabar com essa herança é apagar os registros que referenciaram as lutas históricas do povo brasileiro.
Não é por acaso que a desconfiança do Estado, o questionamento da solidariedade como fundamento da democracia, o desprezo pelos interesses do mundo do trabalho, tidos agora como “retrógrados”, levaram, nos últimos anos, à ascensão de movimentos “apolíticos” cujo principal intento era suprimir as divisões fundamentais, mas saudáveis ao processo democrático, que marcavam politicamente a sociedade brasileira: as divisões entre aqueles que, segundo Maquiavel, não querem ser oprimidos e que por isso necessitam do Estado, das regulações do trabalho e das políticas sociais, e aqueles que querem oprimir e que simplesmente desdenham o povo, suas instituições e seu modo de vida.
Essa suspensão deu guarida a uma nova forma de ação puramente individualista e identitária, que acabou preparando o terreno para o surgimento do bolsonarismo e do seu séquito raivoso.
A supressão dessas divisões fez com que cada indivíduo considerasse o seu próprio ponto de vista como uma certeza inabalável e um refúgio seguro.
Sabemos que as forças conservadoras que ascenderam ao poder no Brasil a partir de 2016, também querem destruir a herança de Vargas e apagar essas divisões; por isso perseguem, obstinadamente, um conjunto de reformas que, entre outras coisas, visa destruir o arranjo político-normativo da seguridade social consagrado na Constituição de 1988.
Pretendem ainda ir além e acabar com os direitos trabalhistas, com os sindicatos e o seguro social. Aliás, não é nada casual o fato de os governos de Michel Temer (2016-2018) e de Jair Bolsonaro terem elegido a previdência social brasileira – o núcleo duro da herança de Vargas – como o “mal a ser combatido”.
Para essas forças, o Estado “onipotente” e legitimador de interesses corporativos deve desaparecer, cedendo lugar a uma sociedade monolítica e fundamentada num plebiscitarianismo mercantil, intolerante aos interesses coletivos, que nada mais é do que a pura expressão de um individualismo radical.
Aqui, a “promessa de segurança social”, menos fascinante, deve ser permutada pela “promessa da prosperidade individual” lograda através da competição, constituindo-se numa vulgar aposta, em que apenas alguns, de fato os mais afortunados, se tornam os “vencedores”. Em suma, para as forças que tomaram de assalto o imaginário de proteção do povo brasileiro, o trabalhador nacional deve se dobrar à excessiva flexibilidade exigida pelas mudanças impostas pelo mercado, aceitar os riscos, resignar-se ao “fracasso pessoal” e tornar-se o “assegurador de si mesmo”.
Estado patrimonialista
Por trás disso há a crítica da “dependência” da população à previdência gerada pela cobertura “generosa” dos seus benefícios; a crítica do Estado patrimonialista, corrupto e produtor de ineficiências; a crítica da política social criadora de “privilégios” e “interesses corporativos”.
No Brasil, as soluções defendidas pelos entusiastas da reforma da previdência seguiram esse repertório apelativo e foram colocadas como uma necessidade imperiosa de superar os problemas advindos das políticas pregressas. Assim, os problemas crônicos que afligem o sistema previdenciário brasileiro, a saber: a ausência de cobertura para os trabalhadores informais, a negligência na cobrança das dívidas previdenciárias do setor privado etc., foram praticamente esquecidos e perseguir a superação do “antigo sistema” – do sistema público de repartição – tornou-se o principal objetivo.
Enviada ao Congresso no início de 2019, a PEC nº 06/2019 busca desconstitucionalizar as regras do sistema previdenciário brasileiro. A proposta estabelece regras de idade mínima para as aposentadorias do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (62 e 65 anos, mulheres e homens respectivamente) e taxas de substituição bastante restritivas (o valor da aposentadoria corresponderá a 60% da média dos salários de contribuição, acrescida de 2% para cada ano que exceder aos 20 anos de contribuição, exigindo 40 anos de contribuição para o recebimento integral do benefício!).
Para o Regime Próprio de Previdência Social – RPPS, que cobre os servidores públicos, merece destaque o estabelecimento de alíquotas escalonadas de contribuição, que podem chegar a 22%.
PEC 06
Não resta dúvida de que um dos pontos mais polêmicos contidos na proposta original da PEC 06 era a instituição de um regime de capitalização individual. Defendida com unhas e dentes pelo atual ministro da fazenda – um entusiasta do modelo previdenciário chileno de capitalização individual-, a adoção do regime de capitalização pretendia constitucionalizar essa modalidade, alterando radicalmente a estrutura de financiamento e provisão do sistema previdenciário brasileiro.
Contudo, os estilos decisionistas do atual presidente e do seu ministro da fazenda, junto à impopularidade dessas medidas, colocaram a PEC 06 em rota de colisão com o Congresso.
Em sentido contrário ao governo, o relatório substitutivo, apresentado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados e finalmente aprovado em plenário, retirou vários pontos polêmicos contidos na proposta original, entre eles destacam-se: a supressão da criação do regime de capitalização; a preservação da atual idade de aposentadoria dos trabalhadores rurais; e a anulação das alterações previstas para o BPC (DIEESE, 2019).
É importante destacar que as soluções mais radicais de reforma previdenciária contidas no projeto original foram influenciadas pelas chamadas “comunidades epistêmicas da austeridade” (Boschi; Pinho, 2019) que dão suporte intelectual aos projetos reformistas.
Nesse aspecto, não podemos deixar de mencionar que think tanks com íntimas ligações com o sistema financeiro se tornaram centros especializados em inflar na sociedade, especialmente através da mídia, as supostas vantagens da reforma da previdência. Nunca é demais lembrar que os grandes conglomerados de comunicação brasileiros, na qualidade de empresas capitalistas, possuem fortes interesses na aprovação da atual reforma da previdência.
Coube à mídia, portanto, tornar cognoscíveis essas “vantagens” para o público. O período que antecedeu à reforma previdenciária no Brasil foi bastante alusivo do envolvimento ativo da mídia no debate sobre a “necessidade da reforma”. O fato mais grave é que a ausência de pluralidade de pontos de vista muitas vezes reduziu esse debate a uma propaganda enganosa, grosseira e agressiva.
A imprensa deu grande importância ao fato de a reforma da previdência contar com “apoio massivo” da sociedade, configurando-se, o Brasil, em único país no mundo no qual a retirada de direitos sociais contou com “forte adesão popular”. É de estarrecer. Seria risível se não fosse trágico e inconsequente.
Às vésperas da votação do texto substitutivo, deu-se ampla cobertura a uma espécie de “Revolta do Chá” que se armou na Avenida Paulista, cujas reivindicações, além da defesa das “liberdades econômicas” contra o Estado usurpador e corrupto, diziam respeito ao apoio ao projeto original da reforma da previdência. Na verdade, sabemos que essa Revolta do Chá tupiniquim não passou de um cínico protesto que reuniu um grupo de indivíduos fartos de arcar com os “pesados” encargos trabalhistas e previdenciários de empregadas domésticas, babás, porteiros, vigias, balconistas, caixas de supermercado, operadores de telemarketing; enfim, de toda a sorte de gente detentora de “privilégios”.
Favoráveis ao texto da PEC 06
Segundo a grande mídia, tais reivindicações “massivas” e “populares” seriam um recado para os parlamentares reticentes em aprovar o texto substitutivo da reforma que, sabemos, foi enviado uma semana depois ao Congresso e finalmente aprovado.
Para os parlamentares que votaram favoráveis ao texto da reforma, alguns dos quais mediante promessas de liberação de generosas emendas parlamentares, a aprovação do texto substitutivo na Câmara dos Deputados representou uma vitória. Mas esta é certamente uma “vitória de Pirro”, pois aqueles que se manifestaram nas ruas em favor da reforma constituem apenas uma parte, evidentemente bem menor do que os entusiastas da reforma imaginam, daqueles que terão a oportunidade de se manifestar nas urnas.
O fato é que longe de ser “neutra”, como apregoam os seus defensores, a reforma da previdência atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social e, ao contrário de abolir “privilégios”, reforça a desigualdade. Contribuirá em breve, tão logo se façam sentir os seus primeiros efeitos, para ampliar o universo dos excluídos, dos subcidadãos sem qualquer proteção, pois é irrealista supor que os trabalhadores brasileiros manterão sua capacidade contributiva diante de regras tão rígidas de acesso aos benefícios.
O objetivo inconfesso, mas dissimulado pelo discurso do “combate aos privilégios”, do fim dos estatutos e das corporações, é elevar as desigualdades para patamares de antes da Constituição de 1988, ou quiçá de antes da década de 1930, deixando a massa de assalariados sem proteção e reconhecimento legal.
Ouça o episódio #32 do podcast Guilhotina com Eduardo Fagnani sobre o debate desonesto da reforma da Previdência
Teto de gastos
Não podemos esquecer que duas medidas adotadas anteriormente prepararam o caminho para a reforma da previdência, para o arquitetado desmonte dos direitos sociais. A primeira medida, a Emenda Constitucional nº 95 de 2016 (EC 95/2016), fixou por 20 anos um teto para o crescimento das despesas públicas, constitucionalizando as metas de austeridade fiscal até 2036.
Como apontam alguns especialistas, a finalidade dessa medida é acirrar o conflito distributivo dentro do orçamento público, comprimindo o espaço fiscal para as despesas com as políticas de seguridade (Oreiro, 2018).
Assim, através de um instrumento de limitação constitucional das despesas públicas, o governo passa a “fabricar uma escassez de recursos” para criar, propositadamente, disputas entre diversos setores de política social, levando o conflito distributivo dentro do orçamento público ao limite (idem, 2018).
O objetivo inconfesso dessa medida é submeter os grupos que dependem das políticas sociais a uma regra uniforme, tornando o orçamento um instrumento de disciplinamento dos anseios democráticos. Tudo isso para combater os “excessos” de demandas inscritos na Constituição de 1988. No fundo, o que a EC 95 quer consagrar é a ilegalidade da redistribuição.
Reforma trabalhista
De fato, não podemos ser otimistas porque a reforma da previdência “preservou” o caráter público do sistema previdenciário ao rejeitar o sistema de capitalização individual, pelo menos até o momento. Outras reformas ainda mais radicais certamente virão, particularmente se a EC 95 não for revogada.
A segunda medida é a reforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467). A orientação geral dessa reforma, além de materializar o antigo sonho dos setores mais conservadores da sociedade de sepultar de vez a Era Vargas, é o desmantelamento total da CLT.
O objetivo maior da reforma trabalhista é transferir a flexibilidade estrutural existente nas relações de trabalho para o conjunto das leis, enfraquecendo assim o poder normativo da Justiça do Trabalho.
Não devemos subestimar o alcance dessa reforma, pois ela visa desestruturar a base sindical que se constituiu em torno dos direitos sociais no país. Visa, portanto, extirpar os direitos da classe trabalhadora e também a ação coletiva que se estruturou em torno desses direitos.
Daí a destilação de ódio contra os sindicatos e os interesses corporativos, pois enquanto estes subsistirem sempre haverá garantias de resistências ao projeto, ora em curso, de converter a sociedade num amontoado de indivíduos autointeressados.
Contudo, a política social incorpora a diferença e a distinção como princípios ubíquos; sua lógica também é estatutária e, nesse aspecto, é natural que ela represente os diversos particularismos socioprofissionais presentes na sociedade e difíceis de serem abolidos. Nunca é demais lembrar que o direito social é herdeiro do conceito medieval de liberdade como privilégio, que contribuiu para o advento de uma noção estatutária de proteção social, sem a qual o Estado assumiria uma face absoluta e plebiscitária (Bendix, 1996).
As demandas relacionadas à política social, por mais “corporativas” e segmentadas, conferem um rosto sensível ao mascaramento opaco das abstrações do liberalismo fundadas num hipotético “interesse geral”; numa suposta igualdade que “valeria para todos”.
Sejamos realistas, a busca da distinção profissional está no cerne da sociedade salarial. Mas para que essa sociedade não fique refém de uma luta fratricida, das vicissitudes de lutas categoriais intermináveis, faz-se necessário as arbitragens e mediações políticas exercidas pelo Estado (Castel, 1998).
Não há país no mundo que tenha introduzido formas puras de igualitarismo nas suas políticas sociais. O que deve existir, na verdade, é um sistema que explicite as garantias de acesso da população à proteção social, mas este sistema nunca deixará de ser mais ou menos estratificado, em razão das características dos mercados de trabalho, da composição das famílias e do caráter multidimensional das desigualdades.
A fragmentação corporativa de alguns sistemas previdenciários inclusive contribui para sua maior resiliência. E não é nada acidental o fato de a reforma da previdência no Brasil contar com múltiplos vetos e interdições. Pode-se se dizer que é exatamente as “vantagens da fragmentação corporativa” – os vestígios da herança de Vargas – que vêm inibindo a adoção de uma reforma da previdência mais radical no país, pois a existência de diferentes categorias que lutam para preservar seus benefícios acaba gerando resistências nos sistemas públicos de repartição.
O que deve ser retido em relação a esses argumentos, é que as prestações públicas do Estado social, em diversas sociedades, não desempenharam apenas a função de redistribuir renda, e sim um papel protetor mais abrangente. Em todos os sistemas de proteção social, os sistemas públicos de aposentadoria seguiram estritamente os níveis hierárquicos das diferentes escalas salariais (salário baixo aposentadoria baixa, salário alto aposentadoria alta). Porém, a função protetora da previdência pública, ao dissolver o aspecto “providencial” das poupanças privadas individuais, mostrou-se fundamental em estabilizar as expectativas dos assalariados quanto à manutenção das condições de sua independência em relação ao mercado, constituindo-se numa “propriedade para a segurança das coletividades” fortemente imbricada à ideia de pertencimento coletivo (Hatzfeld, 1982).
Enfim, o objetivo inconfesso das reformas acima mencionadas é exatamente impedir esse pertencimento, fazendo ruir os pilares de proteção que estruturaram a sociabilidade entre nós: os sindicatos, o seguro social, a CLT e a Constituição de 1988, ou seja, quebrar os arranjos de proteção que, desde a Era Vargas, pretendiam condicionar o desenvolvimento do capitalismo nacional à expansão da cidadania democrática, o nacional-desenvolvimentismo ao trabalhismo, o esforço de superação do atraso à construção de uma nação soberana e liberta do peso das suas inaceitáveis desigualdades.
Mas sejamos otimistas: o espírito de Vargas ainda ronda o país; e não está confinado no Palácio do Catete, como o seu célebre pijama listrado. Na verdade, ele está mais do que presente: está no imaginário popular, nas universidades, nos centros de pesquisa e nas empresas estatais. Está inclusive nas novas formas de trabalho precárias que clamam por regulamentação e proteção. Pois, diferentemente dos “mitos” de hoje – passageiros e vazios de sentido – o mito Vargas é mais consistente e duradouro porque fez despertar uma comunidade de sentimentos materializada em instituições. Para os pósteros, no entanto, ficou o difícil desafio de saber reinventar politicamente a herança de Vargas, de saber readaptá-la aos fatos presentes, não como mera contemplação, mas como herança viva.
Arnaldo Provasi Lanzara é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED) – e-mail: [email protected]. Bruno Salgado Silva é doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e pesquisador do Núcleo de Estudos do Empresariado, Instituições e Capitalismo (NEIC) – e-mail: [email protected]