Refundar antes de reformar
Não se derruba um prédio com uma martelada. É preciso fazer pequenos cortes, abrir brechas… Esse trabalho fragiliza a estrutura: um mínimo movimento pode agora provocar o colapso do edifício. O mesmo vale para empreendimentos de demolição social. Desde os anos 1970, os liberais se empenham em enfraquecer os dispositivos de solidariedade nacional da França. O atual presidente, Emmanuel Macron, parece apostar que certos serviços públicos, como o das ferrovias, se tornaram degradados e impopulares o suficiente para que ele possa dar a estocada em favor do mercado. Pelo contrário, não era hora de fortalecer o interesse geral ?
É uma batalha travada entre adversários desiguais. Ela começa sempre assim: em nome da modernidade, um governo impõe a mutilação do sistema de interesse geral criado no pós-guerra como um ponto de apoio para conquistas futuras – o regime geral da Previdência Social, as aposentadorias, o estatuto dos servidores públicos, o setor público no qual os salários escapam da arbitrariedade do “mercado de trabalho”. Logo, os editores-chefes empregam a “pedagogia da reforma”. A desregulamentação seria “inevitável”, pois seria necessária (ou seria necessária por ser inevitável, não importa); inapelável, pois revelaria a “coragem política” de um Executivo dedicado a contornar o Parlamento; “justa”, pois teria sido pensada para acabar com os “privilégios” daqueles que trabalham em condições um pouco menos precárias que os outros. Escrito durante a reforma da Previdência Social lançada por Alain Juppé em novembro de 1995, esse roteiro reserva aos opositores um papel bem definido e ritualístico: mostrar que os “privilégios” não se situam exatamente onde o governo os posiciona, contrapor-se ao barulho midiático e… defender os serviços públicos.
Mas defender o quê, exatamente? Em 12 de dezembro de 1995, durante uma reunião pública de solidariedade aos ferroviários em greve, o sociólogo Pierre Bourdieu expôs a necessidade de impedir “a destruição de uma civilização associada à existência do serviço público”. Um quarto de século depois, essas instituições de interesse geral estão deterioradas. Talvez até em ruínas. A “mão direita” do Estado fomentada pelo Ministério da Economia e das Finanças, por um lado, e o nebuloso empresariado oriundo das grandes universidades, por outro, cumpriram sua missão. De reforma em reforma e de privatização em privatização, a fatia do setor público1 no total dos empregos caiu de 19% em 1985 para 5,5% no final de 2015, com 791 mil assalariados restantes. O setor produziu um quarto da riqueza nacional na metade dos anos 1980; trinta anos depois, o número despencou para menos de 6%.2 Por toda parte, as diretorias instauraram as exigências contábeis e a pressão gerencial do setor privado.
Na reforma da SNCF – Société Nationale des Chemins de Fer [Sociedade Nacional das Ferrovias], o presidente Emmanuel Macron adoraria ser confrontado por um oposição que defenda sua existência, a qual ele sabe que está fadada ao fracasso: protege-se um serviço do qual todos reclamam por causa do mau funcionamento cotidiano. Profissionais da saúde e pacientes alertam que os hospitais estão desmoronando, que os asilos públicos estão aos pedaços; estudantes e docentes preveem que as escolas e as universidades estão apodrecendo; passageiros e condutores sabem que a SNCF está fora dos trilhos. Reduzidos à sua própria sombra, os serviços públicos sobrevivem e resistem. Mas sua existência já não é mais desejável nem mobilizadora.
Espremidos pelos cortes orçamentários e pela concorrência do setor privado, os hospitais públicos, que recebem um fluxo de pacientes segundo o orçamento da Seguridade Social, estão prestes a reenviar para casa pessoas doentes incapazes de se virarem sozinhas, em vez de dar conta das necessidades de cuidados da população. As universidades, criadas para formar espíritos críticos e incentivá-los a obter as mais altas conquistas, trabalham, no entanto, equilibrando as contas e alinhando suas exigências às do mercado de trabalho. A empresa La Poste [equivalente aos Correios], fundada para prestar um serviço universal de comunicação, está se transformando em prestadora de serviços da Amazon. A France Télécom [empresa de telecomunicações francesa], separada da La Poste e em seguida privatizada, não tem mais a vocação de equipar o país com infraestruturas nem servir a seus usuários, e sim apenas vender produtos, conquistar partes do mercado e satisfazer os acionistas. Instalada no mercado internacional de energia, a EDF – Électricité de France [Eletricidade da França] está arrematando empresas privatizadas no Reino Unido. Quanto à SNCF (ver pág. 16), sua obsessão pelas linhas de grande velocidade rentáveis a levou a perder o mercado de transporte de mercadorias para as rodovias e a negligenciar as linhas convencionais.3
“Fazer negócios” em vez de prestar serviços: essa mudança de finalidade imposta contra a opinião dos usuários foi implantada com uma determinação tão extrema que enfrentou a resistência de milhões de funcionários. No serviço postal, nas escolas, nos hospitais e nos abrigos para pessoas idosas dependentes (EHPAD, na sigla em francês), os efeitos deletérios das reformas foram mascarados por muito tempo pela dedicação dos funcionários – em sua maioria, mulheres –, que se desdobram para assegurar a prestação do serviço. Como defender “os serviços públicos” quando as empresas em questão impõem a seu quadro efetivo a obrigação de trair sua vocação? Os agentes públicos, explica a socióloga Danièle Linhart, “consideram que sua tarefa é revestida de importância e nobreza, o que implica ‘naturalmente’ seu engajamento e sua vontade de fazer bem feito em todas as circunstâncias. Eles se mostram ‘a serviço do serviço público’, conscientes de que encarnam o espírito republicano para garantir o interesse geral”.4 Foi isso que causou mortes, literalmente. O gerenciamento levou ao suicídio dezenas de empregados da France Télécom e, desde então, vem fazendo que profissionais da Assistência Pública – Hospitais de Paris – também coloquem fim em sua vida.
“Defender os serviços públicos”: a palavra de ordem traz consigo uma ambiguidade mortal quando a mão direita do Estado consegue torná-los detestáveis, tanto para quem os produz como para quem os utiliza. Lutar com qualquer chance de sucesso pelo serviço público de interesse geral significa agir diferentemente na batalha trivial que envolve cada governo há trinta anos. Sair do abrigo da defesa passiva e passar para a ofensiva.
O trabalho, a seguridade econômica e social, a educação, a aposentadoria, a saúde, o lazer, o transporte, o acesso de todos à energia e as grandes infraestruturas que esse conjunto implica não são apenas serviços. São direitos. Alguns constitucionais, outros adquiridos por lei; eles não são favores, tampouco são concedidos pelo Estado e pelos patrões como uma cereja do bolo democrático: são devidos à população. Em outras palavras, as coletividades têm a obrigação de garantir seu fornecimento e eficácia, além de abster-se de atentar contra eles. O preâmbulo da Constituição de 1946, retomado na que está em vigor, indica, inclusive, o seguinte: “Todo bem, toda empresa, cuja exploração tenha ou adquira as características de um serviço público nacional ou de monopólio de fato, deve tornar-se propriedade da coletividade” (artigo 9º).
Exigir em todas as ocasiões a reestruturação de um serviço público de alta qualidade, em conformidade com o direito inalienável da população, em vez de defender empresas públicas sucateadas pelos reformadores, apresenta virtudes unificantes e mobilizadoras mais importantes. Primeiramente, tal exigência se apoia no interesse comum dos usuários e dos agentes públicos, dos habitantes tanto das grandes metrópoles como das cidades pequenas, das periferias, do campo e dos territórios ultramarinos. Além disso, ela confere ao movimento social um lado positivo e o efeito de treinamento que tanto lhe faz falta após décadas de lutas defensivas: a reestruturação de uma instituição universal rumo ao futuro.5 Ninguém seria ingênuo de esperar uma vitória rápida; mas cada mobilização ofereceria a oportunidade de fixar os três princípios de um projeto consensual o suficiente para agregar um bloco social majoritário.
O primeiro remédio para um dos grandes males do assalariado moderno: criar condições para os agentes públicos fazerem um bom trabalho. Condição elementar de desenvolvimento e de qualidade, ela foi retirada dos trabalhadores do setor privado com os cortes provocados pelas novas modalidades de gestão dos anos 1990. Desde a metade da década seguinte, enfermeiras, auxiliares de escola, professores, carteiros, condutores etc. transformaram-se em empregados privados. Metas absurdas, redução de equipes e ordens inatingíveis de gerentes que nada conhecem do trabalho passaram também a ser a realidade tanto em empresas privadas quanto em órgãos públicos.
Esse triste traço da união público-privada torna-se uma linha de força: os favoráveis à manutenção sabem por experiência a que se submetem os cuidadores e quais são as consequências disso, mobilizando talvez mais voluntários para que a coletividade forneça meios de tratar os idosos com respeito.
O segundo princípio tem a ver com a unidade e a organização do território. A reestruturação do serviço público deveria priorizar as populações que vivem fora das grandes metrópoles, dotando-as das infraestruturas mais sofisticadas e dos agentes públicos mais qualificados. É no interior da França, mais do que em Paris, que se experimentam sistemas confiáveis e eficazes de saúde, educação, transporte, comunicação e de compartilhamento de dados digitais para fins de utilidade pública. Situadas majoritariamente fora dos grandes centros urbanos, as classes populares são a força motriz desses serviços realmente públicos, do ponto de vista tanto dos agentes públicos como dos usuários, como elas o fizeram no pós-guerra ao fundar a Seguridade Social.
O terceiro princípio trata do estatuto e do financiamento dessa instituição de interesse geral. Aqui, outra equação costumeira chama nossa atenção: o serviço é público, portanto de estatuto público, portanto de Estado. Logicamente, os estatutos das empresas de eletricidade e gás, de mineração e dos servidores públicos foram conquistados em 1946 como o ápice de um modelo social de comunistas que estavam então no governo. Mas a ligação entre o Estado e o interesse geral enfraqueceu, quase se rompeu. Como depende do Ministério da Economia e das Finanças, todo serviço público se encontra à mercê dos fundamentalistas do mercado. Enquanto aguarda a virada histórica que alterará os rumos, o movimento social deveria reivindicar a criação de instituições para obter certas garantias do Estado, mas independentes do Ministério da Economia e das Finanças e gerenciadas pelos usuários e funcionários. É o caso do regime geral do auxílio-doença. Como explica o economista e sociólogo Bernard Friot, esse benefício retira seus imensos recursos não dos impostos, mas, para o essencial, da cotização social. Esta última não compete ao Ministério das Finanças, e sim a fundos que, de 1946 a 1967, foram administrados pelos próprios assalariados. Um serviço público financiado pela cotização em vez de impostos, uma riqueza socializada comandada pelos produtores em vez de tecnocratas, por usuários com voz ativa: uma ideia de futuro…
Alguns dirão que é utopia. Porém, nas circunstâncias atuais, reestruturar o interesse geral não é menos irrealista que defender o estatuto dos condutores. Não que se deva abandonar este último, mas o melhor meio de salvá-lo é universalizar: devolver ao serviço público sua vocação original de vanguarda do bem-estar comum.
*Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde Diplomatique.