Regulação pública
AOCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é, talvez, o mais importante think tank conservador, impregnado até a medula com o receituário neoliberal. As crises não abalam suas convicções. Não se poderia esperar nada de original na sua receita de superação da crise atual. É o arrocho, o desemprego, o corte nas políticas previdenciárias, de saúde, de educação, de transporte etc. Quem paga a conta não é quem fez a dívida, é o povo.
Quase todos os países europeus tomaram, nestas últimas semanas, medidas de corte nos gastos sociais e restringiram direitos. Estão obedecendo a esta cartilha: limitar a rede de amparo à população para estimular o investimento privado. Para essa doutrina, a saída da crise é um processo de destituição de direitos.
As manifestações de revolta popular na Grécia, contra o arrocho imposto pelo FMI, abrem um campo de possibilidades no cenário político. Um campo de contestações, mobilizações sociais e enfrentamentos que terão também suas consequências. Num movimento de defesa de direitos, pode ocorrer um deslocamento do eleitorado à esquerda, trazendo a possibilidade de uma reconfiguração das relações de poder no âmbito da União Europeia.
A Europa entra num período de maior instabilidade política. Haverá o acirramento dos conflitos sociais. A democracia será desafiada a processar esses conflitos. A própria União Europeia está ameaçada pelo receituário amargo que ela mesma impõe aos seus associados. São tempos difíceis.
Poderia haver outros caminhos para enfrentar a crise e, até mesmo, aproveitar o momento para promover reformas de base, desconcentrar a riqueza, criar uma nova sociedade. Mas não, o monótono cântico neoliberal ecoa por toda a parte, sem que haja uma visão à esquerda capaz de enfrentá-lo. Mas não podemos nos confundir, não se trata de mera disputa entre propostas, é um enfrentamento entre forças sociais e políticas com projetos distintos para o futuro dos países.
O cassino financeiro instalado permite amealhar fortunas incalculáveis em curto, curtíssimo, espaço de tempo. É o sonho do capitalismo. Seus limites foram apresentados na crise de 2007-2008, quando se verificou que não havia lastro real para as operações financeiras praticadas, principalmente pelos grandes bancos internacionais.
Os riscos sistêmicos dessa aventura especulativa são enormes. Eles apontam para uma década de estagnação ou baixo crescimento. No âmbito social, as tragédias se multiplicam. Basta dizer que, na crise de 2007-2008, mais 200 milhões de pessoas passaram a viver abaixo da linha de pobreza no mundo.
Essa situação de crise traz para discussão a necessidade de uma mais efetiva e abrangente regulação pública sobre o sistema financeiro privado. Países como a Índia optaram pela nacionalização do sistema financeiro. De todas as maneiras, a questão está colocada e já se identificam fortíssimas reações às tentativas de regulação pública.
É uma disputa entre o interesse público e o de grupos privados. O exercício do interesse público, regulando o sistema financeiro e limitando a especulação, confronta com a lógica da maximização do lucro.
Os governos dos países desenvolvidos já se deram conta dos riscos embutidos no funcionamento do cassino financeiro, e querem limitar a especulação. Eles enfrentam, contudo, o poderoso lobby do sistema financeiro privado, que não quer abrir mão de seus lucros siderais.
Um dos mais recentes episódios dessa disputa foi a aprovação, em 20 de maio, pelo Congresso dos EUA, da reforma do sistema financeiro, que reduz os ganhos especulativos.
Não faltaram evidências para comprovar a resistência dos grandes bancos a uma maior regulação do mercado. Em discurso, logo após a aprovação da lei, Obama afirmou o fracasso de Wall Street em impedir a reforma1.
As palavras de Obama, surpreendentemente, desnudam a transferência dos recursos públicos para os grandes bancos privados: “Graças à reforma financeira, o povo norte-americano não vai ter de pagar a conta pelos erros de Wall Street. Não vai haver mais resgates pagos pelos contribuintes”.
Da mesma forma, o Banco Central Europeu começa a tomar iniciativas, em busca de uma maior regulação do sistema financeiro. E enfrenta, igualmente, os “lobos” do mercado.
Ao mesmo tempo, os “poderes fácticos”, como dizem os peruanos, os poderes de fato, estão mobilizados e, neste momento, atacam o euro. Buscam desmontar a capacidade regulatória pública e forçar a desvalorização da moeda.
Essa disputa entre o público e o privado é a essência da democracia. Os pactos que se estabelecem em cada momento histórico, a garantia de direitos, tudo isso é móvel. Depende de correlações de forças. Depende da capacidade do sistema político democrático de processar esses conflitos. Depende da iniciativa cidadã.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.