Regularização fundiária
Os processos em curso precisam considerar a peculiaridade de cada assentamento, tanto do ponto de vista físico-urbanístico, como jurídico e social. Mas, mais do que isso, têm de levar em conta as relações sociais construídas ali, suas formas de organização e representação
Mais de 40 milhões de pessoas moram em áreas consideradas irregulares nas cidades brasileiras. Ou porque não têm o título de propriedade, ou porque lhes falta acesso a algum item de infra-estrutura básica como água, luz elétrica, coleta de esgoto ou coleta regular de lixo.
O intenso processo de urbanização das últimas décadas é o responsável direto pela precariedade urbana e irregularidade fundiária. O modelo de urbanização acompanhou o modelo de desenvolvimento desigual e excludente. A ocupação do território urbano, sem ser acompanhada de uma política habitacional para a população de baixa renda e obedecendo à lógica de um mercado imobiliário sem controle, não deixou alternativas de moradia para os mais pobres.
Durante décadas essa precariedade foi ignorada pelo poder público. Dessa forma, não se instalavam serviços de infra-estrutura sob a alegação de serem áreas irregulares. É apenas na década de 80 que surgem as primeiras iniciativas de regularização fundiária dessas áreas ocupadas informalmente pela população de baixa renda.
Essa situação muda em 2001, com a promulgação do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01. A partir de então a legislação brasileira passa a exigir, que na execução das políticas urbanas, os municípios obrigatoriamente devem proceder à regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda.
Recentes manifestações do Judiciário têm determinado aos governos municipais a realização da regularização fundiária de áreas demarcadas, no planejamento urbano municipal, como Zonas Especiais de Interesse Social, as ZEIS. Tais decisões significam uma verdadeira mudança de postura do judiciário no que diz respeito à possibilidade de exigir o cumprimento do planejamento municipal expresso no Plano Diretor, bem como o reconhecimento de que a legislação brasileira aponta para a necessidade de uma política urbana que proceda à garantia de direitos nesses assentamentos na cidade.
Em 2003 é criado o Ministério das Cidades, que formula uma política nacional de apoio à regularização fundiária que provoca inúmeras iniciativas municipais de regularização. No seu conjunto essas iniciativas abrigam grande diversidade e seus resultados ainda não são conhecidos, uma vez que não há uma sistematização dessas experiências. Mas todas elas enfrentam desafios comuns, obstáculos, resistências e questões que se expressam em âmbito municipal.
A política de regularização fundiária tem natureza essencialmente curativa1 e deve ser compreendida de forma ampla como “um processo de intervenção pública sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas, ocupadas em desconformidade com a lei, para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária”2.
Os processos de regularização fundiária precisam considerar a peculiaridade de cada assentamento, tanto do ponto de vista físico-urbanístico, como jurídico e social. Mas, mais do que isso, tem de levar em conta as relações sociais construídas no assentamento, suas formas de organização e representação.
Como se sabe, a capacidade dos governos locais de gestão do território e implementação de políticas públicas é bem diferenciada entre os mais de 5 mil municípios brasileiros. Grande parte desses governos carece de recursos humanos, técnicos e financeiros para implementar de maneira adequada uma política de regularização fundiária que se sustente em longo prazo.. Isso porque, considerando todas as suas dimensões, as políticas de regularização fundiária demandam altos investimentos.
Talvez por essa razão os processos de regularização fundiária não contemplem, em muitos casos, todas as suas dimensões – urbanística, jurídica e social – e, por sua escala reduzida, não têm condições de enfrentar, nem mesmo em médio prazo, o passivo existente.
Além da problemática da escala reduzida destas ações, é preciso considerar que os processos de exclusão socioterritorial persistem nas cidades brasileiras. Sem uma política fundiária e habitacional que permita acesso ao mercado formal de terras por parte da população de baixa renda, o ciclo de produção dos assentamentos precários e irregulares continua. Enquanto se regulariza um assentamento, outros surgirão pela força das necessidades. O que torna evidente a necessidade de que as políticas de regularização fundiária sejam implementadas em articulação com o conjunto das políticas urbanas e habitacionais.
Nesse contexto, para que as ações e políticas de regularização fundiária alcancem melhor resultado, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo, é preciso estabelecer algumas referências e enfrentar alguns desafios.
Uma das principais apostas para que um processo de regularização fundiária tenha sustentabilidade, e seus objetivos perdurem em longo prazo, é comprometer a comunidade beneficiada com o processo de regularização. A sua participação, com poder decisório, em todas as etapas do processo é fundamental, principalmente na elaboração e aprovação do plano de urbanização.
Lembremos que as áreas das cidades que são ocupadas informalmente são as mais desvalorizadas do ponto de vista do mercado imobiliário. São áreas protegidas ambientalmente, são áreas com riscos geológicos, são glebas com conflitos de domínio.
Por tais condições, os processos de regularização geralmente exigem reassentamento de ao menos uma parcela das famílias. Tais reassentamentos precisam ser negociados e acordados no decorrer do processo de elaboração do plano de urbanização, e deverão ocorrer em lugar o mais próximo possível da moradia original.
Viver na informalidade não é opção deliberada dos moradores de assentamentos informais. Isso acontece por falta de capacidade financeira desses moradores, que não têm condições de arcar com os custos da inserção no mercado formal. Os processos de regularização fundiária precisam levar em conta essa condição e criar condições que possibilitem a inserção dessas populações no mercado formal.
Também a integração de várias políticas no território passa a ser condição para o sucesso da regularização fundiária: educação, saúde, geração de emprego e renda, entre outras.
Do ponto de vista legal, a falta de diálogo entre a legislação urbana e a ambiental é um grande entrave à implementação de políticas de regularização fundiária. É preciso considerar, no entanto, que em áreas ambientalmente frágeis, com ocupação consolidada e irreversível, a regularização fundiária tem objetivos que convergem com a preservação ambiental, uma vez que viabiliza, ao menos em hipótese, a implantação de saneamento ambiental.
Outra dificuldade, pouco ou quase nada debatida, é implementar a regularização fundiária em espaços territorializados por traficantes de drogas. O que “pode ter como decorrência desde interferências dos traficantes sobre o andamento da regularização (paralisação de obras, dificuldades de implementação de aspectos dos projetos, controle dos processos de cadastramento), até o encolhimento da margem de manobra para a conquista de um planejamento e gestão urbanos participativos”3.
Se o planejamento e gestão urbana requerem a pactuação entre os diversos segmentos sociais, como é possível planejar e fazer a gestão de um território controlado pelo tráfico de drogas? Como garantir padrões básicos de intervenção estatal e melhoria das condições
de vida das pessoas na cidade, sem que os mesmos sirvam como instrumento de empoderamento do tráfico?
Paulo Romeiro é advogado do Instituto Pólis; conselheiro municipal de habitação em São Paulo; fundador e membro do Conselho do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; mestrando em direito urbanístico e ambiental pela PUC-SP.
*Rosane Tierno é advogada; consultora jurídica da Secretaria de Habilitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de Osasco; secretária executiva do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; ex-gerente de regularização fundiária da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades do Governo Federal.