Reimaginando o futuro diante da crise climática
Abre-se uma janela de oportunidade profunda para redefinir os paradigmas que informam modelos de desenvolvimento
À medida que o mundo enfrenta uma série crescente de desastres climáticos extremos, desde enchentes sem precedentes na África, Brasil e China até ondas de calor na Ásia e secas persistentes na Europa e América Latina, abre-se uma janela de oportunidade profunda para redefinir os paradigmas que informam modelos de desenvolvimento. Esse momento exige um despertar filosófico e uma reconsideração ousada de nossa dependência de combustíveis fósseis, que podem se beneficiar das reflexões de Immanuel Kant e pelos avisos urgentes de Paul Valéry em A crise do espírito.
O conceito de sublime de Kant, explorado em sua Crítica do julgamento, oferece uma lente poderosa através da qual podemos visualizar nossa atual crise climática. O sublime, segundo Kant, surge de nossa confrontação com algo avassalador e imenso, algo que evoca uma mistura de admiração e medo. É nessa confrontação com as forças da natureza – forças que agora se manifestam como desastres climáticos – que podemos transcender nossas experiências ordinárias e nos permitir alcançar um estado mais elevado de consciência.
Essa consciência elevada é crucial à medida que enfrentamos o que só pode ser descrito como a ameaça existencial de nosso tempo. As crescentes frequência e severidade dos desastres climáticos – seja pelas temperaturas recordes que o planeta experimentou em 2023 e que está se preparando para reviver em 2024, ou pelas enchentes, secas e incêndios catastróficos que continuam a se intensificar – nos forçam a confrontar a possibilidade de nossa própria extinção. Nessa confrontação, nossas mentes se abrem, como sugere Kant, para novas formas de pensar e de ser. Ideias e fatos que são dados como imutáveis tornam-se flexíveis, permeáveis.
O filósofo francês Paul Valéry, escrevendo no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, alertou sobre uma “crise do espírito”, um período em que antigas certezas são destruídas e novas realidades exigem novas abordagens. Hoje, essa crise é personificada em nossa emergência climática. A percepção de Valéry sobre a necessidade de renovação intelectual e moral é mais relevante do que nunca. Nossa dependência tradicional dos combustíveis fósseis e as estruturas econômicas construídas ao seu redor estão se mostrando insustentáveis. No entanto, essa crise também apresenta uma oportunidade sublime: uma chance de romper com esses paradigmas desatualizados e forjar um caminho para um futuro mais sustentável e justo.
Chefes de Estado, especialmente do G7, que se reunirão no próximo mês na Itália, e o G20, que se reunirá em novembro no Brasil, devem lidar com uma questão premente: “Quantos mais desastres climáticos desejam presidir?” A busca incessante pela exploração de combustíveis fósseis continua sem trégua, com investimentos significativos planejados, apesar do claro e presente perigo que representam para nosso planeta. Por exemplo, o Brasil, sob o presidente Lula, está em uma encruzilhada. Lula demonstrou um compromisso com a administração ambiental, particularmente em seus esforços para proteger a Floresta Amazônica. O presidente também fala da necessidade da transição energética justa, inclusive como maneira de proteger a própria Amazônia. No entanto, sua administração também enfrenta pressão para explorar as substanciais reservas de petróleo do Brasil, se mostrando refém da percepção que petróleo é sinônimo de desenvolvimento e crescimento econômico.
Essa dicotomia é emblemática de uma tensão global mais ampla. Os governos frequentemente justificam os lucros da exploração de combustíveis fósseis prometendo benefícios econômicos, mas socializam os custos de resgate, recuperação e reconstrução após desastres climáticos. As recentes enchentes apocalípticas no Rio Grande do Sul, que mataram mais de cem pessoas, deslocaram centenas de milhares e causaram uma devastação generalizada que custará ao país bilhões de dólares, ilustram o custo humano e financeiro de tais políticas.
Em 2023 a Petrobras pagou R$ 240 bilhões em royalties e impostos e registrou lucro líquido de R$ 124,6 bilhões, o segundo mais alto na história da companhia. Esta semana os custos de reconstrução após as cheias do Rio Grande do Sul foram estimados em R$ 200 bilhões e eles provavelmente ainda irão crescer. E esse é só um dos vários desastres climáticos que o Brasil – e o mundo – irá encontrar em 2024. Como pode-se justificar o enriquecimento de acionistas que investem em empresas como a Petrobrás, enquanto os contribuintes arcam com os custos desses desastres cada vez mais frequentes e severos?
No mundo, as consequências dos eventos climáticos extremos destacaram contradições ainda maiores, visto que países que não se beneficiam de royalties e lucros dos combustíveis fósseis são os mais vulneráveis às mudanças do clima. Bilhões de dólares em ajuda federal foram necessários para reconstruir, mas o país continua a subsidiar a
indústria de combustíveis fósseis com bilhões ao ano. Esses subsídios, efetivamente fundos públicos, sustentam uma indústria que contribui diretamente para as catástrofes climáticas das quais o público deve ser resgatado.
À medida que navegamos por essa crise, devemos nos perguntar que tipo de mundo queremos construir. Continuamos por um caminho de destruição ou aproveitamos esse momento sublime para alterar radicalmente nosso curso? A resposta, dada pela mesma ciência que previu o aquecimento e desastres causados pelas emissões, é clara. A busca por novos combustíveis fósseis deve acabar – já existe mais descoberto do que pode ser queimado para evitar desastres ainda piores. Ao mesmo tempo, todos os esforços possíveis devem ser dedicados à criação de um novo futuro. Um futuro que abraça soluções energéticas sustentáveis e reformula nossas prioridades econômicas para valorizar aquilo que realmente importa. Isso inclui o meio ambiente, que é a base para toda a vida, assim como a redução de desigualdades e a criação de oportunidades para vidas dignas, livres e mais felizes.
A tecnologia e o conhecimento para essa transição para fontes de energia renováveis já existem. Muitos países fizeram avanços significativos nessa direção, provando que um futuro sustentável não é apenas possível, mas também economicamente viável. A janela de oportunidade apresentada por nossa crise atual é um chamado à ação para todas as nações pararem de procurar novos combustíveis fósseis, eliminarem seu uso e investirem em energia renovável, criarem empregos verdes e desenvolverem infraestruturas resilientes capazes de suportar a crescente severidade dos impactos climáticos.
Ao esbarrarmos na possibilidade de nossa extinção e abrirmos os olhos para o que dá significado à vida, percebemos que as escolhas do passado não precisam ser o caminho do futuro. Como Paul Valéry bem colocou: “Nós, civilizações, agora sabemos que somos mortais. Sabíamos bem que toda a terra visível é feita de cinzas, que a cinza significa algo. Percebíamos, através da espessura da história, os fantasmas de imensos navios que foram carregados de riqueza e espírito. Não podíamos contá-los. Mas esses naufrágios, afinal, não eram da nossa conta”.
João Talocchi é biólogo e ativista climático. Já trabalhou no Greenpeace Brasil e na Purpose.