A conveniente miopia sobre a relação Banco Central – Tesouro Nacional
O modo como a PEC 65/2023 está concebida contribui, na verdade, para o desmantelamento da função estatal e pública que desempenha a Autoridade Monetária no Brasil
Em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, com relatoria do senador Plínio Valério (PSDB-AM), a Proposta de Emenda à Constituição nº 65 de 2023 concede autonomia financeira ao Banco Central do Brasil, transformando-o de autarquia para empresa pública. Em que pese as poucas (e insuficientes) discussões até aqui apresentadas sobre a questão, a proposta já conta com 42 assinaturas do total de 81 senadores.
À primeira vista, pode-se imaginar que determinadas pautas são tão primordiais e óbvias ao desenvolvimento do país que dispensam maiores esforços analíticos e exigem um trâmite ligeiro. Entretanto, este não é o caso da PEC 65/2023, que a pretexto de adicionar à autonomia operacional concedida ao Banco Central, além de autonomia orçamentária e financeira para “garantir a plena execução de suas atividades”, expõe uma visão míope sobre a simbiótica relação entre Autoridade Monetária e Tesouro Nacional no Brasil.
À Autoridade Monetária cabe a gestão da política monetária, aquela responsável por controlar a liquidez da economia, enquanto o Tesouro Nacional é responsável pela política de gestão da dívida pública, seu financiamento e administração. Cada uma destas importantes políticas econômicas possui dinâmica e objetivos específicos, embora existam diversos pontos de contato entre elas, sobretudo por ocorrem em um mesmo “local”, no SELIC, o mercado de dívida pública brasileiro.
Com a criação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), em 1979, o Brasil passou a ter um único e grande mercado de dívida pública. Nele utilizam-se os mesmos títulos públicos, emitidos pelo Tesouro Nacional, para a realização de ambas as políticas, com a peculiaridade de todos serem compensados em reservas bancárias. Assim, no SELIC, instrumentalizam-se operações de mercado aberto do Banco Central, além de se transacionarem títulos para fins fiscais, já que todas as transações que envolvem títulos públicos se dão em seu âmbito. O que implica esta institucionalidade?
Primeiramente, vale destacar que, para realizar suas intervenções, a política monetária brasileira utiliza atualmente como seu principal instrumento as operações compromissadas (compra e venda de títulos públicos junto ao mercado com compromisso de recompra/revenda). Com esta operação, que alcançou média de R$1,9 trilhão em dezembro de 2023 e R$2 trilhões em março de 2024, o Banco Central brasileiro controla a taxa básica de juros, a Selic, na meta estipulada pelo COPOM. Assim, como forma de neutralizar as variações da base monetária e manter a Selic na meta, o Banco Central vende ou compra, no curtíssimo prazo, os títulos vendidos anteriormente em caráter definitivo. Tem-se, daí, no overnight do SELIC, as operações de troca de reservas bancárias com garantia em títulos públicos. E o outro lado dessa operação?
Basicamente, há duas principais naturezas que explicam a demanda dos bancos por compromissadas. A primeira, caso haja sobras de recursos em caixa dos bancos ao fim de um dia, há a possibilidade de, em último caso, via compromissadas, estes recursos serem ‘emprestados’ e, assim, garantir equilíbrio de caixa. No segundo caso, por outro lado, as operações compromissadas representam a primeira escolha dos bancos quando sua motivação é diluir risco. Como ressaltado por Dornelas e Terra (2021, p. 21) “mais do que apenas controlar a moeda, compromissadas são investimento no Brasil”, uma vez que rendem, com quase inexistência de risco, os juros que oferecem seu colateral, os títulos públicos.
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Em segundo lugar, algo totalmente ignorado pela justificativa à PEC 65/2023, diz respeito ao fato de que nos dados sobre a evolução da dívida bruta do governo geral (DBGG), como condicionantes da dinâmica das operações compromissadas estão sempre Banco Central e Tesouro Nacional. Ou seja, parte relevante da dívida pública brasileira tem um componente monetário, e não fiscal, como rotineiramente se alarda a todo canto do Brasil. Tal relevância alcançou a cifra de R$1,205,385 trilhão, o que equivale a 11,1% do PIB em dezembro de 2023. Portanto, apesar do peculiar desconhecimento, a administração monetária não se dá de maneira totalmente independente da administração da dívida pública no Brasil.
Se parássemos por aqui, já teríamos elementos suficientes a serem discutidos acerca da proposta em questão. Porém, há ainda dois elementos à deriva que são fundamentais: a relação entre senhoriagem e a busca de receita oriunda das operações do Banco Central; e, a confusão (comum no Brasil) entre público e privado.
Como justificativa à PEC 65/2023, afirmam os autores que “o centro da proposta consiste no uso de receitas de senhoriagem para o financiamento de suas despesas. Entende-se aqui por senhoriagem o custo de oportunidade do setor privado em deter moeda comparativamente a outros ativos que rendem juros.” Dizem ainda que o uso da receita de senhoriagem para financiamento das atividades do Banco Central está alinhado a procedimentos adotados em países centrais do mundo.
Ignoram, primeiramente, o conceito de senhoriagem, cuja receita é apropriada pelo Estado, dado seu monopólio na emissão monetária, medida pela variação da base monetária, descontada a inflação do período e custo de produção. Ou seja, ganho que o Banco Central possui ao emitir moeda, que não possui remuneração, frente ao carregamento em seu balancete de ativos que rendem juros, como os títulos públicos. Dois problemas decorrem do uso da senhoriagem como fonte de financiamento da “empresa Banco Central”: na prática, as reservas bancárias no Brasil são remuneradas, via o uso intensivo das operações compromissadas como forma de manter o controle do juro básico no país. Ou seja, aqui, a moeda rende juros. Além disso, há a expectativa de que, sendo a receita de senhoriagem a base do financiamento do Banco Central, como se propõe, a empresa atuará em busca de maximização de suas receitas, o que, inevitavelmente, implica patamares elevados da taxa básica de juros na economia brasileira.
Em segundo lugar, a PEC 65/2023 informa o objetivo de alinhar o Brasil às práticas de países centrais no tocante à independência financeira, mas, convenientemente, ignora o fato de que a elevadíssima participação das operações compromissadas no manejo da política monetária brasileira é caso único no mundo.
Por fim, cabe destacar a recorrente confusão entre público e privado que se observa no Brasil. Como analisado acima, o Banco Central brasileiro opera com títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional e não títulos próprios. Suas receitas advêm de sua prerrogativa de emissor da moeda nacional, da remuneração dos títulos públicos dispostos em sua carteira livre (aqueles que não estão sendo utilizados como compromissadas), e da valorização de capital oriunda das reservas internacionais do país que mantêm custodiadas. Ou seja, a possível receita a ser utilizada para financiar a proposta de tornar o Banco Central uma empresa pública advém, exata e unicamente, de sua função pública de, como instituição do Estado, ter o monopólio da emissão monetária, ser responsável por gerir a liquidez da economia, ser depositário da Conta Única do Governo e das Reservas Internacionais do país.
De outro lado, dada a extensa gama de implicações que decorrem da PEC 65/2023 à toda estrutura monetária e financeira da economia brasileira e suas peculiaridades, causa estranhamento e repulsa o fato de que a única pauta amplamente debatida em torno dessa proposta seja a melhor remuneração dos servidores do Banco Central do Brasil. Não há dúvidas quanto à perda real de poder de compra da ampla gama de servidores públicos federais nos últimos anos. Entretanto, a este problema, propostas de reestruturação de planos de carreira e salários, junto à luta pela justa fatia do orçamento público são medidas mais adequadas.
Dada a complexidade envolvida na proposta, que perpassa em muito os elementos aqui debatidos, entende-se que, ao contrário do objetivo de alinhar o Banco Central brasileiro às práticas internacionais, o modo como a PEC 65/2023 está concebida contribui, na verdade, para o desmantelamento da função estatal e pública que desempenha a Autoridade Monetária no Brasil.
Larissa Naves de Deus Dornelas é Professora do Departamento de Economia, do Programa Profissional de Pós-graduação em Economia e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Referências:
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Estatísticas Fiscais. 2024.
DORNELAS, L. N. D.; TERRA, F. H. B. Selic: o mercado brasileiro de dívida pública. Campinas: Alínea, 2021.
SENADO FEDERAL. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 65, DE 2023.