Relatórios da cólera
Problema social e político, as desigualdades constituem ao mesmo tempo um entrave para a proteção do meio ambiente e um freio ao desenvolvimento econômico. É isso que constata o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Organização Internacional do Trabalho, que propõem soluçõesAnne-Cécile Robert
(Garoto despeja lata de esgoto em córrego de Nairobi, no Quênia)
Um círculo vicioso – é assim que o vigésimo relatório anual de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) descreve a realidade atual: a desigualdade amplifica os danos ambientais, que por sua vez aumentam a desigualdade.1
Os atentados contra a natureza tocam mais duramente as populações pobres, em particular o 1,3 bilhão de pessoas que vivem da pesca, silvicultura, caça e coleta. Desse modo, “os países com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH) são os que menos contribuíram para as mudanças climáticas globais,2 porém os que mais sofreram com a redução das chuvas”. E isso afeta negativamente sua produção agrícola, seu acesso a água potável, saneamento etc., contribuindo para baixar seu IDH.
Bastaria que esses países enriquecessem para se verem ao abrigo dos danos ambientais? Não, responde o Pnud: historicamente, o aumento da riqueza levou ao aumento das emissões de CO2 e à deterioração da qualidade do ar e do solo. Nessas condições, como fazer para que as exigências em matéria de meio ambiente não punam o desenvolvimento de tais países? Como “encontrar um acordo entre a necessidade de expansão da oferta de energia e as emissões de CO2”?
Segundo os autores do relatório, há “muitas perspectivas promissoras”: alguns Estados – como a Costa Rica – conseguiram ao mesmo tempo elevar seu IDH, reduzir as desigualdades sociais, diminuir a poluição atmosférica e promover o acesso à água potável.
Controle de natalidade
É preciso inventar novas práticas que permitam associar “equidade” e “sustentabilidade”: ampliar o acesso a energias renováveis, fortalecer a “autonomia política” das populações, estimular a “gestão comunitária”dos recursos naturais, instaurar um imposto sobre operações econômicas em escala global para financiar medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, ou ainda estender o controle de natalidade.
O relatório aponta que, “se todas as mulheres pudessem fazer sua escolha no que diz respeito à reprodução, o aumento da população seria lento o suficiente para colocar as emissões de gases de efeito estufa abaixo do nível atual. Estima-se que a resolução das lacunas no planejamento familiar até 2050 traria 17% de redução das emissões mundiais de carbono em relação ao que se verifica hoje”.
Um dos interesses desse relatório é formular múltiplas propostas com base em observações em campo. Todas apontam para uma mudança no modelo de desenvolvimento.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também pesquisa uma “outra via possível”.3 A crise financeira teria aberto o caminho para a mudança ao revelar as falhas do sistema atual, pois “não há dúvida de que a incapacidade apresentada pelos líderes políticos de hoje para tomar medidas decisivas a fim de utilizar o poder do Estado no propósito de proteger os trabalhadores vincula-se ao discurso neoliberal dominante nas últimas décadas”.
Os autores, de formações e nacionalidades diferentes, analisam diversos movimentos sociais nos últimos anos, na França, na África do Sul, no Brasil, na Ásia etc. No prefácio, Dan Cunniah, diretor do Programa de Atividades para os Trabalhadores do Bureau Internacional do Trabalho (BIT), comemora essa combatividade crescente, e às vezes vitoriosa, especialmente nos países do Sul.
Como mostra o caso do Brasil, progresso social não é incompatível com dinamismo econômico. De acordo com Paulo Eduardo de Andrade Baltar, a experiência recente do país “contradiz a hipótese frequentemente afirmada de que o estabelecimento de um salário mínimo acarreta perdas claras de emprego e pressões inflacionárias. Na verdade, ela salienta a importância da regulamentação do mercado de trabalho nacional pelos poderes públicos”. Uma regulamentação ainda mais urgente quando 2,3 milhões de pessoas morreram em decorrência de acidentes ou doenças do trabalho em 2008, o que significa mais de 6.300 mortes por dia.4
Assim como o Pnud, a OIT destaca as desigualdades, que são simultaneamente uma expressão do modelo dominante e um freio para sair da crise, que é menos orçamentária do que ligada à má distribuição de riqueza: “Nunca foi tão urgente garantir que os trabalhadores recebam a justa parte que lhes é devida. Mais que uma questão moral, essa é a única maneira de eliminar o caos macroeconômico atual”, explica Sharan Burrow, secretária-geral da organização. E acrescenta: “Os períodos de cólera certamente não são o momento de continuar fazendo o que sempre se fez…”.
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).