Relatos de uma primeira viagem a uma posse presidencial
Toda posse presidencial tem um quê de místico e conspiratório. Mas aquela estava longe de uma posse banal
Estávamos em um grupo de quatro pessoas às 8:20 da manhã do dia 1º de janeiro de 2023. A ansiedade engolia o sono anestesiante da comemoração da virada do novo ano. Vínhamos de uma viagem para a Chapada dos Veadeiros para limpar toda a uruca dos quatro anos anteriores e preparar o corpo para a posse de nossas vidas. Nossos vinte e poucos anos só carregavam fotos miúdas da posse de 2002 e outras memórias distantes de eleições melhores.
Saímos da rodoviária já sem luzes de natal e rumamos para a Esplanada. Uma fila única quilométrica já estava formada. Camisetas vermelhas se enfileiravam, adornadas por ambulantes vendendo bonés do MST, toalhas, bandeiras e o figurino completo para entregar à ocasião.
A esquerda magistral viera em caravanas dos quatro cantos do país. A trilha arranhava o padroeiro Maderada com o hino Tá na hora do Jair… – que já tinha envelhecido e teve de ser adaptado para o Jair já ter ido embora, graças a Lula. Grupos de percussão, indígenas e sindicalistas acompanhavam estandartes coloridos, faixas e fantasias bufantes cobertas por um céu azul abafado. A previsão de chuva ainda animava os vendedores de capas a R$ 10, mas o sol ardido logo desbancou a meteorologia. A materialização do fim do último governo parecia aplacar tudo, mesmo o calor.
Aquela cena parecia a volta à vida de uma comunidade secretamente enfurecida nos últimos quatro anos. Secreto talvez não seja o termo. Rasgamos a indignação nas avenidas, nas redes e nos bares. Nos panelaços às janelas durante a pandemia, na solidariedade descoberta entre vizinhos que nem nomes trocavam e na torcida pela chegada das vacinas. Falar mal do Bolsonaro virou receita pra pular da cama no café da manhã e vindicar antidepressivos, ansiolíticos e calmantes cavalares pra dormir o sono dos oprimidos.
Essa revolta toda, porém, foi carcomida pelo medo – bastante útil ao governo de algozes, que acanharam nosso verbo e afogaram nosso grito. Mais, carcomida pela nossa impotência. Levamos o governo para Haia, para Bruxelas e para Estrasburgo. Mas não conseguimos levar para Manaus. Para Jacarezinho. Para Paraisópolis. Para o porta malas que asfixiou Genivaldo. Para o TJ do Rio de Janeiro e tantas outras cortes domésticas.
Por outro lado, ali já não era mais sobre o sufoco. Era sobre a celebração apoteótica de seu fim. Sobre voltar a ter uma rotina sem os descalabros do café da manhã chuchado de leite condensado, os impropérios de meio-dia e os fins de tarde lúgubres sem dados epidemiológicos oficiais. Era sobre voltar a pautar nossos dias por feitos ordinários, sem se mobilizar a cada hora conforme os desbaratinos macabros e patéticos da pauta presidencial.
Logo a fila única se dividiu em duas. Uma para as mulheres e outra para os homens – o esquema de segurança ainda mantinha o binarismo de gênero, para acalmar o coração dos que temiam uma vice-presidência dada a Pabllo Vittar ou algum outro ícone pop LGBT. A indignação mais que justa das mulheres veio a reboque. Os homens, já não bastassem seus privilégios diários nas filas de banheiro e revistas em toda repartição pública e privada, quase trotavam e a nossa fila não saía do lugar. Só faltava essa: a Praça dos Três Poderes, limitada à ocupação de 40 mil pessoas, ser toda forrada de esquerdomachos de shortinhos pega-rapaz e óculos de sol.
Nesse meio tempo, fomos acompanhando bandinhas passarem. Até o dragão do bloquinho carnavalesco Eu acho é pouco, um must go dos foliões de Olinda, passou. Passaram cortejos pernambucanos e sindicalistas capixabas. Desfiles de biquínis com glitter carnavalizante e grupos com camisetas de “eu fui para a festa da democracia”. Até uma moça que fez de duas toalhas de “Lula presidente” seu vestido.
Uma mulher à nossa frente, que logo se identificou com o @ de indiazinhalea no instagram, falou de sua jornada de quarenta horas para ver a posse, partindo de Belém. Seu aparelho dentário brilhante escapava toda hora da boca, com seu sorriso incansável que refletia o sol já lá no alto. Outra de sotaque sulista pediu pra fazermos cortininha pra ela tirar a calça legging porque o sol estava de lascar.
Uma moça de camisa da seleção exibia toda orgulhosa um placar de “sai 22 | entra 13”. A temática Copa teve razoável adesão, com camisetas recuperadas de um brasil verde-amarelo e meiões na canela. Um senhor vestido de Lula também fez da Esplanada sua avenida, com um terninho preto gasto – certamente maior que seu tamanho – e faixa presidencial. Também teve sua versão com glitter, em um terninho todo vermelho mais afeito às curvas da cintura. O Lula raiz tirou várias selfies com as vitaminadas de alegria. Foi-se criando uma rede de compartilhamentos. Histórias de vida, lamúrias da viagem até ali, expectativas para o grande dia e fotos de roupas bem trabalhadas.
Passamos por placas de “Deus ore pelo Brasil”, que arrancaram dúvidas das mulheres enfileiradas. Para algumas, era uma tentativa de boicote tímido da horda bolsonarista. Para outras, a conciliação da pauta religiosa com aquela lulista, já que as letras estavam em vermelho sob um fundo branco. Ao lado das placas, uma senhorinha de seus 85 anos com uma bengala e uma camiseta de “Lute como uma garota”.
Muitas cabeças brancas, tanto na fila das mulheres quanto na de homens. Várias delas em grupos, também flanando pela rua e sem entrar na fila. Minha avó mesmo estava louca para comparecer à posse, mas sua lombar (não tão melhor que a minha, que acompanha sessões semanais de fisioterapia) a impediu de sair de casa às oito da manhã. Ela já tinha acompanhado 2002, 2006, 2010 e 2014. Me exibia em fotos com ela na campanha de 2002 e 2006. 2022 abria outro universo, mas tinha um senso diferente de urgência, já marcado por suas rugas e vontade de cirurgias plásticas.
Várias viaturas de polícia também circulavam, passando ocasionalmente entre as pessoas. Policiais militares igualmente andavam em bando por todos os cantos, com seus coletes à prova de balas, cassetetes e caras absolutamente impassíveis. Meu pensamento intrusivo imediato foi pedir uma selfie com eles fazendo o L, o que obviamente não fiz.
Uma longa hora e trinta depois, conseguimos passar pela primeira revista. Toda aquela fila atarantada para uma revista que fez vista grossa às nossas bolsinhas. Conforme as orientações que recebemos pelo zap, não seria permitida a entrada com mochilas grandes, cadeiras, bandeiras com mastro, cooler ou garrafas. Levamos só pochetes ou bolsinhas pequenas, mas passamos que nem boiada pela primeira inspeção. Um sanduíche amassado, meu cartão de crédito e a carteirinha da OAB foram minhas escolhas para caber nos quinze centímetros disponíveis.
A esta altura, já estávamos na dúvida se conseguiríamos entrar na Praça depois de todos os quilos de homens que haviam chegado depois de nós, mas já passado pela revista branda. Protótipos de fila se formaram no meio do caminho, em desenhos fluidos. Optamos por ir correndo até a segunda revista, o que durou uns dez minutos. No fim, havia três detectores de metal, antecedidos por filas vultosas, e outras filas que se formaram na hora em que chegamos por decisão da segurança de ampliar a velocidade da revista e abrir mão dos poucos detectores.
Essa revista de fato aconteceu. Depois de passarmos por ela e caminharmos em direção à Praça, junto com levas e levas de militantes, tivemos um alívio imediato e muito curto. A Praça ainda estava tranquila em número de pessoas, mas as filas para obter água (dada de graça pela CAESB) e ir aos banheiros químicos já eram dignas de grandes festivais. A história que correu solta entre os presentes foi a de que Ibaneis Rocha, governador do DF, fez o possível para boicotar a posse. Em vez de liberar os oito pontos de cessão de água, só liberou dois. De manhã cedo, quando a organização ligou na CAESB em busca de mais informações, recebeu um silêncio retumbante: não atenderam aos telefonemas.
Ao longo da tarde, os manifestantes afoitos passaram a fazer gatos para obter água mais depressa. Usaram parafusos e outros objetos pontiagudos captados às pressas para abrir as mangueiras alternativamente e não ter que esperar tanto tempo na fila. Valia tudo para se salvar da desidratação à espreita.
O mesmo aconteceu em relação aos banheiros químicos. Em uma conta aproximada, eles estariam na proporção de um para cada 2.500 pessoas. Com o passar da espera, poças de xixi dos impudicos passaram a se formar atrás dos banheiros. Entre seus vizinhos diretos, a chama eterna da democracia no topo do Panteão da Pátria e o Supremo Tribunal Federal. A Justiça, cega, não via as calças abaixadas. O cheiro de amônia empesteava toda a ala sudoeste da Praça.
Estendemos nossas toalhinhas no chão para marcar território e ficamos esperando. Lá pelo meio dia, sol a pino e nuvem alguma para cobrir nossa insolação iminente, bombeiros e mais bombeiros passaram a recolher as pessoas que desmaiavam e passavam mal. Não havia comida disponível para comprar; a água era escassa e, a menos que se tivesse boné ou sombrinha, o sol fritava os miolos. Os próprios bombeiros pareciam nas condições perfeitas para desmaio. Em macacões laranja de tecido grosso, capacetes e botinas, eles perambulavam segurando pranchas de resgate. Não fosse a ocasião, eles bem poderiam estar vestidos para uma soirée underground no centro de São Paulo.
Também várias crianças estavam presentes. “@criançaspetistas” estava gravado atrás da camiseta de uma delas. Essa é uma conta que bombou no Instagram durante essas eleições, aliás. Se a estética de direita nas redes vem sendo esculpida pelo funk, agronejo e roupas bem apertadas, a retaguarda de esquerda também vem fazendo bonito. Quem sabe um dia nos tornamos a vanguarda estética na sucessora do TikTok.
Algumas das crianças acabaram se perdendo dos pais. Nessas horas, o coro de entusiastas do novo presidente pedia para a multidão toda se abaixar, bater palmas e gritar o nome da criança da vez para possibilitar o reencontro. Contei três ocorrências, todas bem-sucedidas. Não bastou comparecer ainda criança à histórica posse de 2023, foi possível também se perder e abrir uma janela para um trauma de abandono ser tratado na terapia futuramente. Ou criar um gatilho para o desenvolvimento de uma egolatria narcísica, impulsionada pela memória de seu nome entoado por uma sintonia de milhares de vozes reunidas.
Não só conseguimos estender nossas toalhinhas, como também nos encontramos com outras amigas e amigos no nosso ponto de encontro. Uma delas havia trazido filtro solar e impediu algumas queimaduras insolentes ao grupo todo. Acabou também cedendo a pelo menos cinco pessoas diferentes que farejaram o bálsamo mais precioso daquela circunscrição e choravam pelo sol inclemente. Talvez mais do que comida, protetor solar era ali um ativo de primeira necessidade – até porque as previsões mais otimistas predicavam ao céu nuvens persistentes e um tempo emburrado, o que para muitos displicentes (eu inclusa) significava se dar ao luxo de não passar protetor solar.
Alguns pródigos de energia entoavam musiquinhas sem descanso. “1,2,3… é Lula outra vez”, “Lula, guerreiro do povo brasileiro” e outras rimas fáceis eram hits para fazer o tempo passar. Mas os maiores ecos vinham do pedido “Dilma passa a faixa” – em referência à indefinição de quem iria colocar solenemente a faixa no presidente recém-empossado. A ex-presidenta também ganhou sua própria sósia na Praça: um rapaz em tailleur vermelho, com uma peruca bem penteada e faixa presidencial.
Dois amigos foram buscar mais água no auge do calor. A fila dos dois pontinhos mirrados de água da CAESB só aumentava. Ficaram cerca de duas horas esperando. Presenciaram a fúria dos sedentos furando as mangueiras, os jorros de água na nuca dos alucinados e os esguichos de bombeiros no tapete de pessoas se espremendo por refresco. Viram a fauna toda enfurecida pelas condições de privação.
Nesse ponto, eu já não ousava movimentar a cabeça bruscamente. Minha visão turvava ao menor movimento. Concentrei todas as minhas energias em aguardar Lula e resistir ao sol. Nenhum protetor solar potente sobreviveria àquele descampado. Fui de papete e meus pés – quem coloca filtro solar nos pés que não na praia? – vieram a ostentar uma marca assimétrica e disforme. Vermelhos e ardendo. As canelas, alheias e minhas, também estavam incandescentes.
Até cerca das 15h, quando Lula passou a ser transmitido pelos telões no Senado, os manifestantes foram se rearranjando. Diversos acabaram por ir embora – ao menos foi o que nosso entorno sutilmente menos aglomerado denunciou. Quando menos esperamos, havia ao menos um pé e meio de distância entre nosso grupo e os grupos de fronteira – e nenhuma reclamação a mais de pés pisados. Até a internet melhorou e consegui finalmente passar a enviar mensagens.
O homem finalmente apareceu. Nem consegui me levantar para ver a primeira volta no Rolls Royce em meio ao mar de cabeças. Depois dos prelúdios no Congresso, Lula sentou-se à mesa do Plenário, acompanhado de seu vice Alckmin, Rosa Weber, Rodrigo Pacheco e Luciano Bivar, ex-presidente do falecido partido que elegeu Jair Bolsonaro. Ele foi encarregado de ler a ata da posse, o que poderia parecer uma grande ironia, não fosse o racha presidencial ao partido ainda no primeiro ano de governo e o alinhamento de Bivar de primeira hora ao governo petista, já sob a insígnia da recém-nascida União Brasil. De qualquer modo, a simbologia do vira-casaca ainda era potente.
Para assinar a ata, Lula soltou que estaria usando a caneta que recebera décadas atrás, depois de um comício no Piauí. Que a recebera batizada com a promessa de vitória em 1989, que só veio a acontecer 13 (número cabalístico?) anos depois. Que, nessa ocasião, esqueceu a tal caneta, mas hoje a trazia consigo. Falou sobre o combate à fome, a revogação dos decretos escabrosos, a resistência do sistema eleitoral e a volta da democracia ao poder. A necessidade de paridade salarial, a produção de combustíveis, a tragédia da pandemia e a extinção do teto de gastos. A preservação da Amazônia e a soberania brasileira, a potência da solidariedade e o desafio civilizatório contra o extremismo autoritário.
Eu, que estava ansiosíssima para o discurso, parecia ouvir as palavras escaparem lentamente aos meus ouvidos. Talvez conseguisse fazer uma análise mais acurada do conteúdo como fizera com o belíssimo discurso de Gustavo Petro, alguns meses antes, se estivesse no conforto de minha cozinha preparando algum jantar de vários passos. Sob aquelas bufas de calor, suor e sede, as palavras pareciam vindas de muito além do telão e soavam etéreas demais, derretendo em meio à multidão ululante.
Rodrigo Pacheco, o presidente do Senado, veio a discursar em seguida, mas ninguém esbanjava paciência de ouvir. Seu discurso até pareceu mais longo que o de Lula. Não sei se porque as palavras do presidente correram ao ritmo da ansiedade da ocasião ou se de fato Pacheco queria roubar a cena. Fato é que pareceu um martírio desnecessário acompanhar os movimentos de sua boca, já que sua voz soava menos confiante e apetitosa que a de seu antecessor. Me atravessei pensando se ele pedira a um exército de assessores que o auxiliasse com as palavras ou as cavara de uma inspiração intestina.
Decidimos nos afastar um pouco para respirar sem o calor da multidão. Fomos para os finalmentes da Praça, onde metros de chão à vista pareciam um privilégio sem tamanho. Dois cinegrafistas com câmeras exóticas e enxutas faziam cenas panorâmicas. Casais esparsos cobriam as cabeças com toalhas de estrela, deitados como se estivessem em uma praia deserta.
Qualquer vestígio de sombra maior era densamente ocupado. Os metros quadrados mais povoados eram abaixo do Museu da Cidade, embora não tão disputados quanto os parapeitos com vista de primeira da rampa do Planalto. Os ocupantes de cada um desses pontos da Praça tinham perfis bastante diferentes. Se os resistentes aguerridos do parapeito exibiam suas bandeiras e hospedavam insolações inconsequentes, os vencidos da sombra se sentavam e cobriam com bandeiras e olhavam curiosos para quem passava nos entornos.
A essa altura, só havia uma saída da Praça aparentemente, que era ao sudeste – na extremidade oposta da zona pestilenta dos banheiros. Quem estava dentro não tinha internet suficiente para saber, mas Esplanada afora corriam boatos em tempo real de que o novo presidente não iria tomar posse, tampouco subir a rampa do Planalto. O Uber que nos pegou no fim da festa falou de uma família de passageiros que o assegurou durante o dia de que Lula não iria completar seu percurso. A convicção absoluta o chocou, afinal, Jair já fizera terra arrasada por aqui e agora curtia a ressaca da virada em terras floridenses com sua versão turbinada de betacarotenos.
Quando Lula iniciou o ritual todo no Congresso, a saída sudeste foi fechada. Quem estava lá dentro não conseguia mais sair. A reação de exasperação era mais do que esperada. As informações dadas pelas diferentes autoridades de segurança não convergiam. Se você perguntasse como sair para os policiais da zona central da Praça, eles te direcionariam para a saída sudeste, que estava fechada. Os policiais do sudeste, por sua vez, estavam rodeados de pessoas ávidas por comida, água em abundância, uma sombra pra descansar ou qualquer outra facilidade longe daquelas condições atmosféricas bastante hostis. A comunicação de risco, em suma, mandava lembranças.
De rabo de ouvido, ouvimos um policial justificar a saída fechada com uma suspeita de bomba no caminho trilhado pelos desertores da posse. Uma mochila havia sido deixada nas imediações e eles estavam apurando o ocorrido. Como o presidente passaria em seguida ali por perto, o mais seguro seria esperar sua passagem e depois abrir as comportas para os militantes exaustos. Tudo isso correu em meio a privações sucessivas, então certamente injetou ansiedade a quem estava acompanhando a cena. Talvez se tivéssemos tentado a extremidade oposta da Praça, tivéssemos ouvido uma narrativa diferente da que estava em curso.
Quando a cerimônia se encerrou no Congresso, nossa respiração parou. O mundo estava aflito com a volta de Rolls Royce até a multidão. O presidente já recusara as recomendações de segurança para usar colete à prova de balas: estava descoberto e acenando no carro com Janja, Alckmin e Lu.
Foram minutos assombrosos. Rastejaram-se a conta gotas, com a aflição repentina de uma bala que atravessasse algum dos presentes ou uma explosão feroz. Os snipers no topo do Planalto à vigia de tudo com seus binóculos (ao menos é o que imaginei ser coerente eles estarem portando e que não tivesse a forma fálica de armas pujantes) pareciam chancelar essa narrativa. Não sei quanto disso era uma distopia catastrofizante minha ou estava na conta de cenário possível. Toda posse presidencial, imagino, tem um quê de místico e conspiratório. Mas aquela estava longe de uma posse banal.
Entrementes, a orquestra sinfônica de músicos pela democracia instrumentava Tu Vens, como que um agouro positivo do que estaria para chegar. Janja já havia solicitado a lavagem da rampa com sal grosso e se perguntava na boca miúda que outros rituais seriam necessários para desinfectar o Alvorada também. Pobres assombrações! – alguns diziam – já teriam sido afastadas pelo ranço do presidente anterior.
Uma voz da organização anunciava para os presentes tomarem seus lugares definitivos porque o presidente estaria para chegar. Parecia a sineta de peças de teatro, tocando uma, duas vezes. Também falou algo sobre telefones celulares, o que não consegui entender nenhuma das vezes. Aparentemente, foram pedidos para desligar os aparelhos ou não portá-los ao alto com o desembarque do presidente. Talvez fosse uma estratégia para facilitar o trabalho de localização de ameaças pelos snipers. Não sei, estava tão envolvida com o momento que nem percebi se a alegada orientação foi levada a sério.
Quando o carro finalmente parou, respiramos parcialmente aliviados. A comitiva saiu tranquila rumo ao momento tão esperado. Cerca de oito horas tinham se passado desde nossa saída de casa até o estacionamento das estrelas da posse. Nem imagino quantas foram para aqueles que acamparam por um lugar no parapeito frontal. Nesse momento, juntaram-se às novas autoridades diversas personalidades e até a cachorrinha Resistência.
Lula subiu a rampa com todas elas. Indígenas, mulheres, negros, PCDs, LGBTQIAP+s. Catadores, metalúrgicos, periféricos, professores, artesãos, cozinheiras. Não há marcadores, profissões ou adjetivos suficientes para descrever a cena, mesmo porque não se conheciam muitas das personalidades até aquele momento – embora diversos jornais tenham se apressado a mapear quem era quem depois. A imagem da subida em bando arrancou quaisquer palavras e fez a Praça cair no choro. Toda a diversidade que o governo anterior procurou socar pra fora entrando pela porta da frente. “Amanhã”, de Guilherme Arantes, orquestrou os enquadramentos todos.
O sono retirado de todos nós; os calmantes, os antidepressivos, os ansiolíticos; as inimizades criadas, as famílias fraturadas; os salários achatados; a falta de autoestima; a desistência do futuro; a fuga de cérebros; o desmatamento sufocante da Amazônia; a violência brutal nas ruas; o genocídio negro e indígena; o escárnio na pandemia; as centenas de milhares de mortes evitáveis; a farra aviltante do agro; a brutalidade atávica da polícia. Tudo isso passou como em um plano sequência na minha cabeça, como que um passado prestes a ser enterrado pelo amanhã.
Aline Sousa, mulher negra, catadora, de 33 anos, foi a eleita para passar simbolicamente a faixa ao novo presidente. Não foi Dilma, como suplicaram militantes de plantão. Muito menos Mourão, como cogitaram alguns desavisados. O gesto tão confabulado e misterioso, que ficara em aberto até os últimos instantes, estava finalmente acontecendo. Sem a uruca da presidência anterior nem tampouco a simbologia da última presidência eleita democraticamente e arrancada ao sabor do reacionarismo golpista, a faixa foi passada com vista para o futuro. Sem reivindicar espólios de um passado que não mais poderia voltar ou fazer acinte ao último inquilino do Alvorada, o governo propunha uma reconciliação daqui para frente.
Depois de se posicionar aos melhores ângulos para as câmeras sem fim, Sousa finalmente fez o gesto da transferência. A passagem era acompanhada por todos. Os seis outros representantes da sociedade civil que acompanhavam a cerimônia, o vice-presidente, as primeiras-damas. Os 40 mil amontoados na Praça. Os 160 mil reunidos na Esplanada. As milhões de televisões sintonizadas na cerimônia. Juntos, todos passavam ao presidente as honrarias do povo brasileiro. Passavam a confiança de um Brasil melhor, de um futuro maior e mais inclusivo. De um solo mais gentil aos seus filhos, como escarra em pompa o enigmático hino nacional.
Ainda havia o discurso no parlatório e o festival do futuro quando rumei à saída, agora já aberta àqueles que entregaram os pontos. Meu coração já se amainara depois de todo o temor de algum atentado durante os momentos de maior exposição do presidente. Centenas de pessoas saíram em bando. Era uma longa caminhada até o festival do futuro, a rodoviária ou alguma barraca de espetinhos, churros ou água. Fomos passando pelos interstícios da Esplanada. No caminho, vários carros oficiais, pessoas pedindo selfies no Anexo do Senado, reclamando do sol, da sede ou da fome. Outras, do custo daquela peripécia toda. “Nunca gastamos tanto dinheiro para passar por tudo isso” – sugeriu um casal a outro que estava na nossa frente.
Subindo um viaduto em fila indiana, conseguimos divisar ao longe uma procissão de pessoas, enquadrada pela catedral. Extenuados pelo sol, ávidos por água e comida, mas, acima de tudo, compartilhando a fé num futuro melhor, assim eles iam. E nós também.
Marina Slhessarenko Barreto é pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut). Faz mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo e é bacharela em Direito pela mesma universidade.