Reprimir as delinquências dos poderosos
De um lado, a ideologia securitária reforçando a repressão submetida às classes populares. De outro, política e justiça desinteressadas da criminalidade dos poderosos, sejam representantes do Estado ou de interesses privados. Longe de tornar a sociedade mais segura, esse desequilíbrio aumenta seu nível de injustiça e violência
Há mais de vinte anos se impôs no debate público a opinião segundo a qual nossa segurança – entendida, de forma restritiva, como a prevenção de atentados à nossa integridade física – seria garantida à custa de um poder cada vez mais repressivo sobre nossa vida. Dito de outra forma, a luta contra o crime implicaria reduzir cada vez mais o enquadramento jurídico e o controle jurisdicional sobre as autoridades penais, em particular da polícia. Numa época em que a onipresença da questão terrorista proíbe o diálogo pacífico, é difícil questionar o que parece ser indubitável senso comum.
Um cenário completamente diferente, no entanto, está surgindo. De um lado, a segurança prometida pelos arquitetos desse voo repressivo continua sendo uma miragem. Basta lembrar o terrível massacre em Nice no dia 14 de julho de 2016, ocorrido apesar de, oito meses antes, ter sido proclamado estado de emergência – forma última dos plenos poderes policiais que deveriam garantir a segurança dos cidadãos. De outro lado, essa ideia de segurança tem efeitos muito reais nas populações mais diretamente expostas a ela, ou seja, as classes populares. Além de esses setores já serem as maiores vítimas de atos delinquentes – são, por exemplo, duas vezes mais expostos ao risco de roubo de seu veículo e três vezes mais expostos à violência sexual do que os setores mais ricos1 –, eles se veem ainda sujeitos à crescente insegurança em relação à polícia e ao Judiciário. Notadamente, estão sujeitos a verificações policiais mais abusivas e discriminatórias – por exemplo, os jovens cuja aparência é julgada como típica de bairros mais pobres têm até dezesseis vezes mais chances de serem submetidos a verificações de identidade do que os jovens vestidos de outra maneira.2
As classes populares também são as que sofrem mais penas e estão super-representadas no sistema carcerário: 48,5% das pessoas detidas não possuem nenhum diploma e 50% não exerciam nenhuma atividade profissional quando foram detidas.3 Ao mesmo tempo, para além de alguns casos muito midiáticos, as autoridades repressivas se afastam da luta contra a grande criminalidade econômica e financeira; a prioridade permanece o tratamento rápido da delinquência mais visível: a dos espaços públicos. O número total de investigadores da polícia especializados em temas econômicos e financeiros, já baixo, caiu de 529 em 2013 para 514 em 2017.4
Efeitos devastadores da violência policial
Tomando-se o modelo dos economistas neoliberais, pode-se argumentar que, se o “senso comum” em torno da segurança falha tão miseravelmente em alcançar os objetivos que estabeleceu, é porque ainda não esgotamos as ferramentas da repressão. Mas também pode ser um sinal de que o problema não está sendo abordado de forma satisfatória. Segurança não se trata de recorrer à arbitrariedade do poder repressivo em troca de uma garantia quimérica contra qualquer risco de agressão: trata-se de se beneficiar da proteção da lei contra qualquer abuso de poder, seja ele cometido por indivíduos privados ou autoridades públicas. Pedra angular da ordem jurídica criada durante a Revolução Francesa, a exigência de segurança pressupõe a estrita igualdade jurídica dos indivíduos, qualquer que seja seu lugar na sociedade. Longe de justificar a onipotência das autoridades, implica sua subordinação à lei e, correlativamente, a efetiva proteção legal das pessoas mais vulneráveis. A lei “deve ser a mesma para todos, seja para proteger ou para castigar”, afirma a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
A exigência de exemplaridade é antes de tudo imposta aos representantes dos poderes públicos. Rompendo com a lei do Antigo Regime, o Código Penal de 1791 instituiu numerosos crimes e ofensas a fim de punir o peculato de funcionários públicos (como desvio de verba e tráfico de influência). Traduz, assim, a ideia dos constituintes de que o ataque à liberdade dos outros é ainda mais grave quando provém de uma pessoa responsável por representar o interesse geral. Estão expressas nessas leis não apenas as aspirações democráticas radicais dos atores da Primeira República, mas também seu profundo pragmatismo. Um dos inventores da legislação criminal revolucionária, Louis-Michel Lepeletier de Saint-Fargeau, afirmou em 1791: “Uma boa polícia com boas maneiras é o necessário para um povo livre, em vez de suplícios. Onde quer que o despotismo reine, nota-se que os crimes se multiplicam; isso acontece porque o homem degradou-se; e pode-se dizer que a liberdade, como as plantas fortes e vigorosas, logo se purificará de qualquer elemento prejudicial presente no solo feliz onde germinou”.5
Essa observação não envelheceu. De fato, é nos países que praticam uma repressão desproporcional, empreendida por uma força policial amplamente militarizada, como Brasil, México e Colômbia, que se conta o maior número de homicídios dolosos por habitante. Longe de diminuir a violência, essa política, ao contrário, contribui para exacerbá-la em uma escalada belicosa que leva os atores do crime organizado a se militarizarem também.6 Os Estados Unidos, por sua vez, têm um dos sistemas repressivos mais implacáveis – concentra quase um quarto da população carcerária mundial7 – e uma taxa de homicídios dolosos que, embora em declínio, permanece incomparável aos países europeus: 5,35 por 100 mil habitantes em 2016, em comparação com 1,35 na França e 1,18 na Alemanha.
A forma como prevenimos, identificamos e punimos os abusos cometidos pela polícia é, portanto, crucial para a saúde de uma democracia. Falhas nessa área nos expõem não apenas à arbitrariedade das autoridades públicas, mas também a um aumento da violência. Eles provocam de fato uma radicalização do comportamento criminoso que se alega combater, enquanto minam o vínculo de confiança entre a polícia e a população – o que pode diminuir as denúncias de ofensas sofridas ou, ainda pior, favorecer o uso da violência privada para resolver conflitos.
Na mesma linha, é necessário enfatizar a necessidade de punir a delinquência de integrantes da classe dominante e, em particular, das elites econômicas, de forma proporcional aos danos causados à coesão social. O impacto de atos de predação econômica é ainda mais importante, pois eles são cometidos por pessoas em posições de poder. Primeiro, é claro, por causa simplesmente do potencial de escala: a evasão fiscal gera um déficit orçamentário estimado em várias dezenas de bilhões de euros;8 no entanto, em 2016, houve apenas 524 condenações por sonegação de impostos, e as autoridades fiscais encaminharam menos de mil casos ao sistema judiciário entre os 15 mil, ou mais, que constatam em média a cada ano.9 De maneira mais ampla, os delitos econômicos e financeiros representaram apenas 3% dos processos criminais em 2016 e 2017.10
Além disso, existe um grande risco de as práticas criminosas das classes dominantes adquirirem uma dimensão central nas relações econômicas e sociais, à custa de um colapso geral da proteção legal da qual os cidadãos podem se beneficiar. Por sua vez, os cidadãos podem ser levados à prática de pagamento de propinas para obter o mero exercício de seus direitos econômicos e sociais, enquanto a corrupção e a privatização do aparato repressivo pelos ricos os expõem à violência policial ou à impunidade da violência privada, se tiverem a infelicidade de entrar em conflito com ela.11
Além disso, os países com um alto índice de corrupção das elites sofrem com um afrouxamento geral do nível de cumprimento da lei por toda a população: onde prevalece a prevaricação dos grandes, a fraude se torna comum, e até normalizada, em relação às instituições estatais, principalmente em matéria tributária. Na Itália, por exemplo, a penetração da máfia torna a população mais tolerante à evasão fiscal e, mais amplamente, ao que eles chamam de combinazione (“combinação”): esquemas e pequenos acordos com a lei.12 Reitera-se, portanto, que a aplicação do estado de direito às classes altas condiciona diretamente a segurança de todos.
Ao mesmo tempo, não é possível estar vigilante e atento a todas as condições nas quais as pessoas mais vulneráveis poderiam fazer valer seus direitos, em particular quando são interpeladas pelos poderes públicos ou privados. Em outras palavras, o vigor democrático de um sistema jurídico também é medido por sua capacidade de funcionar desinteressadamente, ou seja, garantir a proteção da lei àqueles que, pontual ou estruturalmente, não possuem nenhum outro recurso (econômico, cultural, social) para defender seus interesses. Nesse sentido, a sorte reservada a pessoas particularmente frágeis, como crianças, presos, imigrantes e, em geral, todos aqueles que se encontram em uma situação de fragilidade econômica e social, é um indicador determinante.
Hoje, as crianças certamente gozam de uma proteção relativamente extensa contra a arbitrariedade dos adultos, dentro e fora da esfera familiar. No entanto, esse não é o caso dos presos. Denunciadas regularmente pelas autoridades nacionais e europeias que garantem o respeito às liberdades fundamentais, as condições de detenção desrespeitam a dignidade mais básica das pessoas nessa situação. Tampouco é esse o caso de cidadãos estrangeiros, mesmo menores de idade, cuja situação vem piorando nos últimos vinte anos, seja em termos de direito de permanência ou de recondução ao território de origem. Em resumo, as pessoas precarizadas frequentemente encontram dificuldades significativas para que seus direitos sociais sejam respeitados. Recentemente, por exemplo, criou-se um litígio em torno das práticas abusivas praticadas pelo Pôle Emploi – agência governamental francesa que registra pessoas desempregadas, ajuda a encontrar emprego e fornece ajuda financeira –, trazendo à luz a situação de insegurança total na qual alguns beneficiários se encontram, confrontados com a suspensão prematura de seus direitos.
Da mesma forma que a punição de ilegalidades da classe dominante afeta o nível geral de aplicação da lei na sociedade, a proteção legal gozada por pessoas vulneráveis pode fortalecer ou, pelo contrário, enfraquecer a segurança de cada cidadão. Quanto mais as autoridades são incentivadas a respeitar os direitos dos desprovidos, mais estes também respeitarão os direitos daqueles que são suficientemente dotados para reivindicá-los. Por outro lado, a fraqueza das garantias reconhecidas para alguns pode ser facilmente estendida para outros. Isso foi observado com as medidas de restrição das liberdades para as quais a lei dos estrangeiros serviu como laboratório. Por exemplo, as ordens de prisão domiciliar para pessoas sujeitas à obrigação de deixar o território francês, pronunciadas sem nenhum controle judicial, foram estendidas a partidários supostamente violentos. Somente a censura do Conselho Constitucional permitiu evitar que também não recaíssem sobre manifestantes.13
Impor a mesma aplicação da lei de cima para baixo na sociedade é, portanto, uma questão democrática primária. Se o estado de direito for palpável para a maioria dos cidadãos, eles deixarão definitivamente de dar crédito à retórica da segurança.
*Vincent Sizaire é mestre de conferências associado da Universidade de Paris Nanterre e autor de Sortir de l’imposture sécuritaire [Escapar do impostor securitário], La Dispute, Paris, 2016.
1 Cf. Relatório da pesquisa “Cadre de vie et sécurité 2018” [Panorama de vida e segurança 2018], Ministério do Interior, Paris, dez. 2018.
2 René Lévy e Fabien Jobard, “Les contrôles d’identité à Paris” [Os controles de documento em Paris], Questions Pénales n.23.1, Centro de Pesquisas Sociológicas sobre o Direito e as Instituições Penais, Guyancourt, jan. 2010.
3 “Qui sont les personnes incarcérées?” [Quem são as pessoas encarceradas?], Observatório Internacional das Prisões. Disponível em: <www.oip.org/en-bref>.
4 “Les moyens consacrés à la lutte contre la délinquance économique et financière” [Os meios consagrados à luta contra a delinquência econômica e financeira], Tribunal de Contas, Paris, 12 dez. 2018.
5 Citado em Félix Lepeletier de Saint-Fargeau, Œuvres de Michel Lepeletier de Saint-Fargeau [Obras de Michel Lepeletier de Saint-Fargeau], Lacrosse, Bruxelas, 1826.
6 “How’s life?” [Como vai a vida?], rubrica “Segurança”, OCDE, Paris. Disponível em: <www.oecdbetterlifeindex.org>.
7 Roy Walmsley, “World Prison Population List” [Lista da população presa no mundo], 11. ed., Institute for Criminal Policy Research, Londres, 2016.
8 “Commission d’enquête sur l’évasion des capitaux et des actifs hors de France et ses incidences fiscales” [Comissão de investigação sobre a evasão de capitais e ativos fora da França e suas incidências fiscais], Senato, Paris, 17 jul. 2012.
9 “Rapport d’information sur les procédures de poursuite des infractions fiscales” [Relatório de informação sobre os processos de investigação de infrações fiscais], n.982, Assembleia Nacional, Paris, 23 maio 2018.
10 Infostat Justice, n.169, Ministério da Justiça, Paris, maio 2019.
11 Pierre Lascoumes, Une démocratie corruptible. Arrangements, favoritisme et conflits d’intérêts [Um democracia corrompível. Arranjos, favoritismos e conflitos de interesse], Seuil, Paris, 2011.
12 Roberto Scarpinato e Saverio Lodato, Le Retour du prince [O retorno do príncipe], La Contre-Allée, Lille, 2015.
13 Ler “Des sans-culottes aux ‘gilets jaunes’, histoire d’une surenchère répressive” [Dos sans-culottes aos coletes amarelos, história de uma escalada repressiva], Le Monde Diplomatique, abr. 2019.