Reservas internacionais e financiamento do investimento
Qual a conveniência de usar parte das reservas internacionais para financiar o investimento privado, em particular, aquele direcionado à infraestrutura?
Uma controvérsia importante marca o debate econômico na atualidade: qual a conveniência de usar parte das reservas internacionais para financiar o investimento privado, em particular, aquele direcionado à infraestrutura? A proposta, defendida por alguns economistas, faz parte inclusive do programa de governo do PT, o qual pretende direcionar parte menor dessas reservas para co-financiar o investimento em infraestrutura. A julgar pelas críticas, a proposta parece não ter agradado economistas e instituições de variados matizes. Para examinar as apreciações que lhes são endereçadas, fixamo-nos no trabalho de Josué Alfredo Pellegrini, Os efeitos fiscais do uso das reservas internacionais, publicado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado Federal. Nesse trabalho, de longe o de maior conteúdo analítico e abrangência, o autor examina três destinos para o excedente das reservas: pagar a dívida pública, financiar investimentos e não fazer nada (sic), inclinando-se pela última opção.
Mesmo um trabalho de qualidade, como o citado, merece alguns reparos e dizem respeito a uma abordagem excessivamente estreita da questão, centrada exclusivamente na sua dimensão fiscal. Seria necessário indagar, antes de mais nada, por que os países periféricos são obrigados a acumular montantes tão elevados de reservas internacionais? Apenas para ficar no Brasil, que não é o caso mais emblemático, elas representam em média 20% do PIB. Nunca é demais lembrar que reservas internacionais significam uma poupança ou poder de compra não utilizado, cuja existência, em países de baixa e média rendas, configura um contrassenso. Na verdade, a sua constituição e manutenção traduz um mal menor; um preço a ser pago para que os países de moedas fracas, inconversíveis, participem do jogo da globalização. E para garantir essa participação, isto é, a segurança de investidores de todos os tipos que se dirigem aos países periféricos, é necessário assegurar a viabilidade de sua saída, quando isso lhes for conveniente. As reservas constituem, assim, um seguro para garantir a liberdade dos capitais.
Pelo que foi dito acima, deduz-se que quanto maior a abertura financeira, ou seja, a liberdade de entrada e saída de capitais, maior a necessidade de reservas. Na prática, a ausência de controle dos fluxos de capitais transforma as reservas num seguro contra as crises cambiais. Desse modo, há um trade off entre grau de abertura financeira e necessidade de reservas, ambos mediados pela posição da moeda do país na hierarquia monetária global. Portanto, discutir um nível ótimo ou adequado de reservas implica associá-lo a determinado grau de abertura. Isso leva a outra discussão essencial, qual seja, da relação entre grau de abertura, nível de reservas e qualidade dos fluxos de capitais. Até que ponto volumes expressivos de reservas internacionais induziram uma melhoria dos fluxos de capitais, reduzindo o seu caráter especulativo e induzindo aqueles direcionados ao financiamento do consumo e da produção e não à especulação?
A resposta à pergunta implica estabelecer como o acúmulo de reservas mitigou a fragilidade financeira externa do país. No âmbito da liquidez, isto é, da capacidade do país lidar com choques externos, certamente sua capacidade melhorou. O indicador passivo de curto prazo/reservas está em torno de 1,0 há alguns anos, e melhorou continuamente após 2006, quando seu valor era de 1,4. Cabe também considerar que o papel das reservas na redução da vulnerabilidade é, sobretudo, indireto. Isto porque a reação do Banco Central aos ataques especulativos ocorre, principalmente, nos mercados de derivativos cambiais, que inclui futuros de dólar, swaps, opções e contratos a termo. A principal intervenção do BC ocorre por meio da compra e venda dos swaps cambiais, instrumentos que são liquidados em reais. Pode-se aduzir que as reservas são a garantia em última instância dessas operações. A despeito de verdadeira, a afirmação, não elide o fato de que uma redução do grau de abertura, regulando o mercado de derivativos, reduziria os movimentos especulativos, jogando a determinação da taxa de câmbio para o mercado físico de divisas, com intervenções muito mais efetivas do BC no controle desta última e com menor necessidade de reservas.
No que tange ao aspecto da solvência, as indicações são de que o comportamento do indicador passivo externo líquido/exportações, deteriorou-se após 2015, observando-se desde o início dos anos 2010 uma piora na composição dos fluxos de capitais. A participação daqueles investimentos sabidamente de curto prazo e não direcionados (Carteira + Outros) ampliou-se ante os de longo prazo e direcionado (Investimento Direto Estrangeiro). Cabe referir uma mudança importante no investimento de carteira que foi seu deslocamento para investimento dentro do país, denominado em reais. Há controvérsias, se isto é uma vantagem vis a vis os mesmos investimentos nos mercados internacionais. De um lado, o efeito preço de ativos e a desvalorização do câmbio podem inibir a saída de capitais. De outro, o caráter de curto prazo dos mesmos, muito responsivos ao binômio câmbio-juros, introduz um condicionante adicional à gestão autônoma da política macroeconômica doméstica. As considerações acima sugerem que a acumulação de reservas, olhada estritamente do ponto de vista da inserção externa da economia, é claramente uma estratégia de resultados limitados, com eficácia para mitigar a dimensão de curto prazo da fragilidade, mas impotente para influir significativamente na de longo prazo, e portanto deveria ser combinada com a regulação dos fluxos de capitais.
Retornando ao texto de Pellegrini, nos aspectos gerais do problema, o autor discute exclusivamente as implicações fiscais do acúmulo de reservas, mormente seu efeito na trajetória da dívida pública. Reconhece, corretamente, que no nosso caso o acúmulo de reservas foi financiado com endividamento doméstico, e de maneira ainda mais particular por um certo tipo de endividamento. Refere-se com propriedade, ao aumento, no Banco Central, das operações compromissadas, como contrapartida do aumento das reservas. Porém, uma vez constatada essa forma peculiar de endividamento de curtíssimo prazo, o autor se esquece de discutir as suas implicações, preferindo analisar os aspectos quantitativos das trajetórias do valor das reservas vis a vis o valor da dívida pública.
O fato é que, para além de aspectos quantitativos, o acúmulo de dívida pública de curtíssimo prazo e financeiramente indexada, gerida pelo Banco Central, criou sérios constrangimentos à operação da política monetária, dando um poder excessivo aos rentistas detentores desses títulos na negociação da fixação das taxas de juros. Seu viés de alta baseia-se, parcialmente, neste fato. Aqui, importa menos, a despeito de ser fato relevante, que descontado o valor atualizado das reservas da dívida interna emitida e acumulada para financiá-la, a sua formação tenha sido responsável por 4 p.p do PIB no acréscimo da dívida líquida. Mais importante a assinalar é que este processo foi responsável pela ampliação de 20 p.p do PIB da dívida bruta tendo esta aumentado, para esse fim, sob a forma de operação compromissada, em montante semelhante. Em resumo, o acúmulo de reservas implicou uma fragilização tanto quantitativa quanto qualitativa das finanças do setor público.
Voltando ao texto, cabe destacar a dimensão que analisa a opção de utilizar reservas excedentes para financiar o investimento. Assim, como o próprio autor se declara desconhecedor dos detalhes da proposta, cabe rememora suas principais linhas, tal qual discutidas no artigo de Ricardo Carneiro e Guilherme Mello, O colchão do crescimento. Seus principais aspectos a serem examinadas a seguir são: definição de montante de reservas excedentes; delineamento do mecanismo de financiamento; e impacto nas finanças públicas, possíveis alternativas.
Na definição do montante das reservas excedentes, cabe esclarecer, antes de tudo, que a proposta para ser mais eficaz deveria estar articulada com a mudança do marco regulatório da abertura financeira, sobretudo no que diz respeito à limitação da operação do mercado de derivativos. Ademais, de imediato, há instrumentos que podem ser acionados para diminuir a especulação com a taxa de câmbio, tais como o retorno do IOF sobre o investimento de portfólio e sobre as posições vendidas no mercado de derivativos. Isso aumentaria sobremaneira o poder de intervenção do Banco Central no mercado de divisas, reforçando o caráter redundante de parte das reservas. No mais não há discordância com o próprio autor que, no seu texto, conclui que mesmo usando as métricas mais exigentes quanto a necessidade de reservas, a ARA do FMI, por exemplo, contata de fato um excesso das mesmas ante uma possível pressão potencial. Assim, do total de US$ 380 bilhões, apartar um montante de US$ 30 bilhões, menos de 10% do total, para uso alternativo, no caso, para alavancar o investimento doméstico, soa justificável.
Um ponto importante que já está definido no texto de Carneiro e Mello é o do direcionamento e forma de utilização desses recursos. A ideia central é que eles sejam dirigidos a um fundo de investimento fechado, de propriedade do Tesouro, cujo lastro seriam as debêntures de infraestrutura, títulos similares aos que já circulam hoje no mercado, emitidos por empresas privadas, concessionárias de serviço público que estejam implantando ou ampliando esses serviços. Esses recursos seriam utilizados para co-financiamento desses investimentos, em conjunto com o crédito do BNDES e o capital próprio, na razão de (30%, 50% e 20%). É crucial que isso seja realizado em conjunto com o BNDES, pois dessa forma garante-se o direcionamento correto e a qualidade dos projetos. Outro aspecto decisivo diz respeito ao cronograma de liberação de recursos: projetos de infraestrutura têm prazo de instalação médio de trinta meses. Logo, os recursos destinados à subscrição das debêntures deverão respeitar os cronogramas particulares, o que implica que serão liberados progressivamente em pelo menos trinta meses.
A definição do montante e dos prazos da liberação é crucial para rebater as críticas do autor. Assim teríamos um montante de US$ 1 bilhão por mês, cerca de R$ 4 bilhões que seriam transferidos durante trinta meses ao fundo de investimento em infraestrutura. Para tanto, esses recursos teriam que ser transferidos do Banco Central ao Tesouro e convertidos em reais, nos marcos da Lei nº 11.803, de 2008. Ambas as operações não trazem maiores consequências. O próprio BC venderia as divisas e, ao contrário do que afirma Pellegrini, o impacto na taxa de câmbio seria desprezível. Em primeiro lugar, porque a formação da taxa de câmbio ocorre no mercado maior e mais líquido, o de derivativos, de onde se transmite para o mercado de divisas. Aliás, mesmo que a taxa se formasse nesse último mercado, o impacto seria mínimo. Em 2017, o mercado de divisas ou de câmbio contratado negociou, US$ 1,4 trilhão, uma média de US$ 112 bilhões por mês, dos quais US$ 730 bilhões ou 60,8 bilhões na ponta da venda. Diante desses números é praticamente impossível que a venda de US$ 12 bilhões por ano ou US$ 1 bilhão por mês possam alterar a taxa de câmbio. A passagem dos recursos do BC ao Tesouro poderia ser feita utilizando a Conta Única por meio da rubrica Remuneração das disponibilidades. Caso o montante transferido excedesse esse limite, poder-se-ia usar o valor das reservas convertidas para resgatar dívida do Tesouro no mercado e, imediatamente, emitir títulos de valor equivalente.
O autor elenca ainda outras objeções a essa proposta de uso das reservas excedentes que se referem ao impacto das operações sobre as finanças públicas. Desde logo, o impacto patrimonial, nos estoques de dívida, brutas ou líquidas, seria nulo, ocorrendo apenas uma mudança na posição ativa do Tesouro que trocaria reservas internacionais por um fundo de investimento em infraestrutura. A única possibilidade da operação resultar em aumento da dívida pública decorreria da alternativa do Banco Central entrar no mercado recomprando divisas para evitar a valorização do real, mas essa hipótese não é realista.
Do ponto de vista da remuneração, o Tesouro trocaria reservas internacionais com taxas de juros inferiores, acrescida ou diminuída de eventuais variações patrimoniais, por uma remuneração de quatrocentos ou quinhentos pontos-base acima da Selic, digamos cerca de 11% ao ano. Ou seja, não haveria e nem seria necessário subsidiar juros, pois as empresas já se financiam a essas taxas no mercado. A grande vantagem desse tipo de financiamento para as empresas seria a estabilidade das fontes, ou seja, o financiamento certo e seguro, e os prazos alargado dos títulos emitidos. Por sua vez, essa alternativa reduziria o custo líquido de rolagem da dívida pública – exceto na hipótese de desvalorizações cambiais permanentes –, implicando na redução da carga de juros e do déficit nominal. Para contraditar esse argumento, ele se refere ao fato de que esses investimentos teriam que computar uma taxa de inadimplência, que implicaria reduzir a remuneração. Claro que investir em títulos do Tesouro norte-americano é bem menos arriscado e menos rentável do que em debêntures de infraestrutura no Brasil, mas o argumento da inadimplência significativa é frágil em razão da participação conjunta do BNDES, cuja inadimplência média, nesses anos de crise, está em torno de 2% da carteira.
Ao longo deste texto, explicitou-se o conjunto de questões e problemas envolvidos no tema do uso do excedente de reservas internacionais para financiar o investimento e rebateu-se as suas principais críticas. Algumas situações extremas foram propositadamente evitadas, como por exemplo, aquela de como ficaria o programa diante de uma conjuntura de ataque especulativo. No limite, as reservas são importantes para isto, mas têm implicações permanentes muito negativas e que são ignoradas. Por fim, timing correto, flexibilidade e, sobretudo, mudança no marco regulatório seriam coadjuvantes importantes para a implantação do programa.
*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e ex-diretor executivo pelo Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento em Washington.