Resgatar os laços sociais: Lélia González sob revisão
Retomada da obra da autora pelo mercado editorial coloca em evidência o caráter político de estratégias associativas perante a violência
Percorre todas as páginas do livro Lélia González: Um retrato um tom fraterno. Lançada pela editora Zahar, a publicação sobre a pensadora tem a assinatura da filósofa Sueli Carneiro – com quem a protagonista do perfil, que chega agora às livrarias, compartilha tanto desafios intelectuais quanto elementos da vida pessoal. Essa proximidade atravessa a descrição das principais realizações, passa pelas tensões na institucionalização em partidos políticos e chega aos últimos anos da biografada.
A solidariedade não parece ser um traço estético, para tornar a leitura mais prazerosa: é preciso encará-la enquanto um vetor social. Isso se deve ao caráter coletivo das manifestações populares no Brasil – país crivado por mais de três séculos de escravidão. Diante dessas evidências históricas sobre as diferentes expressões culturais, é um erro atribuir somente à aproximação com a biógrafa o ar amigável do livro. Existem outros fatores, pouco explorados, que podem facilitar essa visão.
Na iminência das agressões – consequência de incontáveis anos de sequestro de territórios de origem, estupros e assassinatos –, a coletividade encontrou alternativas para o prazer. Dessa dinâmica derivam as imagens de multidões sempre associadas às manifestações populares no Brasil. A adesão maciça de torcedores de futebol, fiéis em cerimônias públicas e sambistas no carnaval reflete a problemática confraternização em ambientes urbanos diante das transformações históricas que marcaram o século XX.
A necessidade de resguardar a si e aos seus, em ambiente tão inóspito, fez com que em a individuação fosse deixada de lado em detrimento das necessidades mais urgentes. Esses aspectos ajudam a explicar por que é tão complexo reconstruir a biografia de personalidades populares, que participaram da luta contra o racismo. Colaboram também para deixar nítido que somente por meio dessa interdependência seria possível redigir um perfil como o publicado por Sueli Carneiro.
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É conferido um protagonismo a Roberto DaMatta nos estudos sobre cultura popular nos anos 1980, que deriva das publicações do autor durante o mesmo período. Houve um deslocamento das atenções, no intervalo que compreende o ocaso da ditadura civil-militar e os primeiros acenos no país em direção à redemocratização, em direção às tradições de grande apelo no Brasil. Para isso, dois livros exerceram funções centrais: Universo do Futebol e Carnavais, Malandros e Heróis.
O grande mérito do sociólogo com relação ao esporte foi reunir um conjunto de pesquisadores das Ciências Humanas em torno do futebol: Luiz Felipe Baêta Neves Flores, Simoni Lahud Guedes e Arno Vogel se juntam ao organizador para tratar do tema – que na época do lançamento de Universo do Futebol, em 1982, tinha pouca legitimidade entre os pesquisadores na universidade. E, mais de quatro décadas depois, continua em condição de inferioridade.
Lançado em 1979, Carnavais, Malandros e Heróis se converteu em um paradigma para os estudos a respeito do universo carnavalesco no Brasil. É um trabalho que se insere no conjunto geral de Roberto DaMatta e igualmente aparece na sucessão de uma pretensa linha evolutiva do pensamento social brasileiro – em desenvolvimento desde a primeira metade do século XX. Problematizada por muitos críticos, a divisão entre público e privado predomina na obra do autor.
Revisões sobre a produção intelectual no final do regime de exceção, contudo, começam a colocar pioneirismos em questão. Os silenciamentos em diferentes dimensões, estimulados pela violência política e pelo medo, fizeram com que os escritos fundamentais tivessem circulação restrita. Especialmente no caso das tendências populares no Brasil: componentes de inegável mobilização, capazes de acrescentar níveis perigosos de instabilidade à ordem. As consequências dessas invisibilizações perduram.
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O crescente interesse pela figura de Lélia González tem promovido uma mobilização no mercado editorial para redimensionar a sua produção intelectual. Livros como Por um Feminismo Afro-Latino-Americano de 2020 e o recém-lançado Festas populares no Brasil demonstram como os escritos em vida ganham gradativamente nova proporção, ainda que na ausência da autora, que sofreu um infarto em 1994 e não acompanhou o resgate da sua obra. A retomada reúne instigantes indicativos.
Na década de 1970, a escritora esteve à frente de cursos da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro. A instituição já havia se notabilizado pelas experiências nas artes plásticas àquela altura, mas concedeu à Lélia González a oportunidade de aprofundar os estudos sobre a cultura popular. Essa passagem da biografia havia ficado obscurecida, mas a edição de Festas populares no Brasil publicada pela Boitempo lançou luz sobre o trabalho com os alunos.
O livro traz reproduções do cartaz, da ementa e de uma espécie de programa do curso “A Cultura Negra no Brasil”. Os documentos assinalam como as manifestações populares são enxergadas sob outras óticas. Não são exclusivamente as expressões de um histórico remoto que merecem a atenção da autora: acontecimentos da rotina do país, com alta aderência perante a população, são igualmente dignos do interesse – e em plena ditadura. Não à toa a escritora foi monitorada pelo regime de exceção.
O tópico mais provocativo da programação proposta para a EAV é “Samba, carnaval e futebol ou os fardos da cor”, que aparentemente foi a penúltima aula do curso. O fato de ter combinado essas três expressões da cultura popular já seria automaticamente instigante, mas a associação com a questão da raça nos anos 1970 acrescenta nuances políticas às tradições brasileiras. O trabalho de Lélia González se esforçava para escapar de referências estrangeiras – que limitam até hoje o entendimento sobre o país.
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Jayme de Almeida ficou conhecido nacionalmente por ter sido o treinador do Flamengo no título da Copa do Brasil de 2013. Antes, havia feito carreira no futebol como jogador e formador de novos atletas em divisões de base do mesmo clube. Já distante do comando tático dos times profissionais, foi uma exceção ao criticar a vinculação do esporte com a extrema direita durante a pandemia e denunciou o caráter excludente das novas regras para titulação de técnicos na Confederação Brasileira de Futebol.
Seu pai foi Jaime de Almeida – atleta histórico do Flamengo, tricampeão carioca na década de 1940, quando os torneios estaduais detinham prestígio esportivo incomparável. O jogador, quase homônimo ao filho, esteve por trás do desenvolvimento de um inventivo pensamento sobre a sociedade brasileira, em suas ambiguidades e disputas, no processo de questionamento das desigualdades raciais e no enfrentamento ao racismo antes da virada para o novo milênio.
Isso mesmo: Jaime era irmão de Lélia González e, com o destaque no futebol profissional, conseguiu ajudar a escritora a se manter durante o seu período de formação. A relação de ambos foi marcada pelo carinho mútuo, conforme descrevem os familiares. A gratidão pelo incentivo naquele momento decisivo da trajetória intelectual foi conservada até os seus últimos dias. O esporte era ainda mais familiar porque a autora era irmã de Tião, outro jogador da mesma modalidade.
Esse entrelaçamento indica formas de associação nem sempre perceptíveis: em ambiente de eloquente agressividade, a solidariedade se oferece como uma opção de sobrevivência – de ideias, de propósitos, mas acima de tudo para a integridade física. Consequências políticas dos laços, que se estendem a vizinhos, companheiros de militância e aliados em causas específicas, são densas e alcançam mesmo que tardiamente a academia com a recuperação do legado de Lélia González.
Helcio Herbert Neto (@exarrobasom) é o autor do livro Palavras em Jogo (Editora Dialética, 2024). Doutor em História Comparada (UFRJ), é formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisas sobre cultura popular em âmbito do pós-doutorado na UFF, mesma instituição pela qual concluiu o mestrado em Comunicação.