Resistência e Memória: O Confronto entre os novos empreendimentos e os lares
Mesmo diante de mudanças nas cidades, é necessário que haja um espaço para a preservação de histórias individuais e coletivas
O sonho da casa própria, idealizado como o refúgio definitivo de segurança e pertencimento, parece durar apenas até que o mercado imobiliário descubra seu potencial. Quando o lar, guardião de memórias e histórias, se torna alvo de interesses comerciais, a resistência contra o assédio imobiliário se transforma em um ato de coragem, mas também de vulnerabilidade. O mercado, com sua máquina publicitária sedutora, oferece cifras que brilham mais que os afetos, mas raramente menciona os custos sociais desse processo. A pressão coletiva de vizinhos que cedem à venda e a deterioração orquestrada dos espaços sufocam aqueles que se recusam a abrir mão de seu passado. O resultado não é apenas a transformação de uma paisagem urbana, mas o questionamento sobre até que ponto o lucro pode ditar o destino de algo tão íntimo quanto a ideia de lar.
É fato que grandes obras da ficção nascem a partir de histórias reais, mas são raras as situações em que esse processo se torna cíclico. Casos como o de Maria Juracy Aires tocam questões traumáticas e desafiadoras, como se as linhas entre o imaginário e o vivido se esbatem. Maria foi uma dessas mulheres que, de maneira brava, viu sua história pessoal se entrelaçar com os dilemas de um enredo real, como o filme Aquarius.
Maria resistiu à pressão da construtora Plaenge Empreendimentos, que queria comprar seu apartamento no bairro Cabral, em Curitiba. Para ela, o imóvel era mais do que um bem material – era um pedaço de sua história, um espaço sagrado de memória e afetos. Sua resistência foi uma batalha contra uma força impessoal e voraz que tentava engolir o que restava de sua vida no imóvel, tornando visível o quanto o mercado pode desconsiderar o valor humano das coisas.
Proprietária do imóvel desde 1979, Maria enfrentou a pressão para vender sua unidade, enquanto as outras já haviam sido adquiridas pela construtora. Mesmo vivendo em um local vandalizado e sem manutenção, a escolha de permanecer evidencia sua luta pelo que considera mais do que um simples espaço físico: seu lar, símbolo de sua história e do afeto que construiu ao longo das décadas. A resistência de Maria escancara o confronto desigual entre a lógica financeira do mercado e a necessidade humana de pertencimento e preservação das raízes.
Esse cenário aponta para uma discussão mais ampla sobre o papel do planejamento urbano e das políticas públicas na preservação do equilíbrio entre desenvolvimento econômico e qualidade de vida. A especulação imobiliária, quando não regulamentada, transforma os espaços urbanos em mercadorias, ignorando o valor simbólico e afetivo que as pessoas atribuem aos seus lares. Maria representa uma luta por dignidade e pela manutenção de vínculos que vão além da materialidade do imóvel. A falta de proteção institucional a moradores como ela evidencia como o poder econômico pode moldar as cidades em detrimento das histórias individuais.
Essa lógica de “esvaziamento” não é apenas uma questão local, mas reflete desigualdades estruturais que permeiam o mercado imobiliário no Brasil. A pressão para transformar áreas tradicionais em novos polos de valorização econômica cria um ciclo de exclusão, em que os moradores originais são substituídos por empreendimentos voltados a classes mais altas. Essa dinâmica não só desfigura a identidade urbana, mas também levanta questões éticas sobre o impacto social desse modelo. A resistência de Maria provoca o incômodo necessário: que tipo de cidade estamos construindo e para quem ela está sendo planejada?
A relação com o filme Aquarius (2016), estrelado por Sonia Braga, transcende a ficção ao espelhar a resistência de Clara, personagem que se recusa a sair de seu apartamento. O Edifício Aquarius, retratado no filme, é inspirado no real Edifício Oceania, em Recife, que em 2024 foi reconhecido como Imóvel Especial de Preservação (IEP). Assim como Clara, Maria em Curitiba também carrega em sua resistência um apelo pela preservação da memória e da dignidade frente à especulação imobiliária, evidenciando a força das narrativas pessoais diante das pressões do mercado.
A prática de demolir edifícios antigos para erguer novas torres de apartamentos reflete uma dualidade no desenvolvimento urbano. Por um lado, essas novas construções oferecem moradia, aquecem o setor econômico e modernizam a infraestrutura local. Por outro, levantam questionamentos cruciais: a quem realmente servem esses empreendimentos? Eles podem aprofundar desigualdades, excluindo antigos moradores e transformando áreas em espaços elitizados. Essas transformações desconsideram a preservação da memória urbana, a inclusão social e a criação de espaços públicos funcionais, levantando a questão de se o preço dessa transformação não é alto demais para a coletividade.
Essas dinâmicas de verticalização atendem às necessidades reais das cidades? Como conciliar desenvolvimento econômico com a preservação de construções históricas e de menor escala, que carregam fragmentos da memória coletiva? Ao substituir bairros tradicionais por arranha-céus, comprometemos a diversidade cultural e arquitetônica que faz parte da identidade urbana? Essas mudanças trazem benefícios para todos ou apenas para uma parcela privilegiada da sociedade?
A atuação das empresas imobiliárias também precisa ser questionada. Será que o poder econômico justifica a negligência com as pessoas que atribuem significado aos espaços urbanos? A falta de políticas públicas robustas para regulamentar essas práticas agrava o cenário de exclusão e apagamento histórico. E nós, como sociedade, até que ponto estamos dispostos a questionar um modelo de desenvolvimento que privilegia o lucro em detrimento das relações humanas com o território?
Do ponto de vista jurídico, a Plaenge defende que a deterioração considerável do edifício, intensificada após a venda das unidades pelos vizinhos de Maria, justifica a venda total em assembleia. Para a construtora, a condição do prédio inviabiliza sua manutenção, tornando a alienação uma alternativa pragmática. Contudo, o caso, que tramita na 9ª Vara Cível de Curitiba, provoca reflexões sobre o equilíbrio entre direitos individuais e coletivos, levantando questões acerca dos limites éticos da pressão econômica.
Em 2019, um caso semelhante em São Paulo, no bairro da Pompeia, evidenciou o impacto da verticalização nas cidades. A casa de Jane, cercada por arranha-céus após recusar uma proposta de venda, tornou-se um símbolo da resistência. Esse caso gerou movimento de grupos sociais como o “Preserva Vila Pompeia”, alertando sobre a descaracterização do bairro e o aumento do trânsito. O debate sobre o custo real das transformações urbanas para a memória, a identidade e a qualidade de vida são urgentes.
O Conjunto Residencial João Gualberto, onde Maria resistiu até o fim, não é apenas um edifício, mas um marco na história de Curitiba. Construído em 1960, representava o progresso urbano da época. Desde 2015, parte do conjunto foi demolida para dar lugar a um empreendimento vertical. As duas torres restantes, como a habitada por Maria, permanecem como testemunhas de uma época e resistem à força das transformações.
Maria viveu uma história marcada por lutas e resiliência no Residencial João Gualberto, enfrentando o impacto da gentrificação e da transformação urbana. Apesar de falecer em agosto de 2024, sem ver sua missão concretizada, seu legado nos chama à reflexão sobre o papel de cada um em questionar e resistir às transformações urbanas, exigindo que, mesmo diante de mudanças, haja espaço para a preservação de histórias individuais e coletivas.
A história de Maria não é apenas de resistência individual, mas um microcosmo dos conflitos urbanos que atravessam tantas cidades contemporâneas. Entre memórias, vínculos e pressões do mercado imobiliário, sua vivência nos convida a refletir sobre os impactos da gentrificação e da verticalização, que muitas vezes diluem a identidade local em nome do progresso. Como argumenta Henri Lefebvre, a cidade é mais do que um espaço físico; é um espaço de encontros e práticas sociais. Casos como o de Maria desafiam a homogeneização imposta pelo capital e reafirmam a importância do direito à cidade – o direito de habitar, de lembrar e de resistir. A luta de Maria deixa um legado de questionamento e ação, lembrando que a construção das cidades deve ser coletiva, humanizada e atenta às histórias que moldam seus alicerces.
Lucas Silva Pamio é Arquiteto e Urbanista, especialista em Planejamento Urbano, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e pesquisador do grupo de pesquisa Arq|Hab da Unesp.