Resistências mexicanas: entre massacres, travessias e lutas
Com frequência as lutas indígenas no México são articuladas em uma escala local, mas também transnacional, com a notável influência exercida pelos Zapatistas sobre movimentos e ativistas, particularmente na América Latina
Na obra prima “Pedro Páramo”, escrita em 1955 por Juan Rulfo, filho de um terrateniente assassinado pouco após a Revolução Mexicana (1910-1920), o protagonista chega à cidade fictícia de Comala e todos estão mortos. A emblemática entrada em uma cidade fantasma é uma alegoria costumeira para descrever alguns cenários do México contemporâneo. São 126 milhões de habitantes em um país com uma história particularmente tumultuada nos séculos XX e XXI no que tange às dinâmicas desenvolvidas entre atores armados, população campesina e indígena, ativistas e um sistema político marcado por fraudes eleitorais e desconfiança com a institucionalidade.
Uma das histórias mais contadas sobre o país versa sobre a Revolução Mexicana[1], no início do século XX: seus heróis Pancho Villa e Francisco Zapata, a Constituição de 1917, a demanda pela Reforma Agrária. As menos contadas dizem respeito aos persistentes efeitos que esta imprimiu nas lutas sociais neste país, que não se esgotam no canto de luta “Zapata Vive! A luta segue e segue!”[2]. Assim, a irrupção do movimento indígena em 1992[3] e a descomemoração do quinto centenário da descoberta de Cristóvão Colombo, deram início à articulação e à visibilidade das lutas nunca vistas na Pátria Grande, com um legado permanente de contestação para a região.
Foi em 1º de janeiro 1994, data originalmente pensada para mostrar ao mundo um novo México (moderno e, sobretudo, branco) à luz da onda de privatizações do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari, que o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) ganhou a cena. O combinado era mostrar a triunfal entrada do país no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta)[4], com os vizinhos Estados Unidos e Canadá, mas as notícias e o imaginário só repercutiram a cena de indígenas combatendo as forças estatais por mais de dez dias em San Cristóbal de las Casas, no sul do país. Era o México Bárbaro, o México profundo[5] que vinha à tona, com a demanda pelo fim de sua invisibilidade.
A utopia de livre mercado e anti-intervencionismo econômico que ficou conhecida como neoliberalismo foi inicialmente formulada na década de 1930, no Colóquio Walter Lippmann, em Paris, pautado pelo encontro entre liberais de Freiburg, Escola Austríaca, Escola de Chicago e representantes ingleses. Na América Latina, o experimento chileno empreendido por Augusto Pinochet na década de 1970 tornou realidade a desregulamentação dos mercados, a privatização e o desmonte do Estado de bem-estar. Atualmente, ainda que sua definição não seja consensual, é possível afirmar que esta compreende uma ideologia política, econômica e cultural; e não somente os Zapatistas, mas os movimentos altermundialistas do final da década de 1990 o elegeram como seu principal antagonista.
No México, as indústrias maquiladoras, instaladas na fronteira norte na década de 1990 exemplificam algumas das dinâmicas amplamente favorecidas pelo neoliberalismo. Impulsionadas pelos baixos salários no país, elas se concentram nas etapas mais intensivas em trabalho, na montagem – etapa de menor valor agregado – empregando uma maioria de mulheres, não raro migrantes que ficaram no país. Tudo isso em contraposição às atividades da cadeia desenvolvidas nos países mais ricos, de desenvolvimento intelectual do produto e fabricação de componentes mais avançados. Era essa a real modernidade aportada por Gortari com o advento do Nafta.
Com frequência as lutas indígenas no México são articuladas em uma escala local, mas também transnacional, com a notável influência exercida pelos Zapatistas sobre movimentos e ativistas, particularmente na América Latina. Se a ideia de uma guerrilha que abandonou as armas ganhou corações e mentes nos últimos anos[6], isso se dá também pelo apoio às causas do reconhecimento indígena. Apoio esse que não se dá de forma inconteste. O presidente do país desde 2018, André Manuel López Obrador (AMLO) e o subcomandante Galeano[7] – anteriormente subcomandante insurgente Marcos[8] – já protagonizaram uma contenda sobre o apelo do segundo ao não comparecimento eleitoral. O episódio rendeu muitas acusações e um passivo político que perdura, ao menos desde 2006. Mas o EZLN é um movimento de invenção de “outro mundo possível” e, desde o final do século XX, é significativa sua influência no pensamento emancipador e na práxis política de movimentos democráticos que lutam contra o capitalismo e o neoliberalismo.
Outros movimentos indígenas do país acompanham o movimento de resistência e contestação à ideologia neoliberal e às práticas recentes de subordinação continuada da população indígena, das mulheres[9] e das minorias. Os yaqui, no estado de Sonora, por exemplo, heroicos no seu esforço pela Reforma Agrária durante a Revolução Mexicana, lutam até hoje pela autonomia em seus territórios, influenciados e articulados com o EZLN.[10] O movimento de polícias comunitárias do estado de Guerrero, também é entendido nessa dinâmica de articulação e mobilização de norte a sul. Outra experiência compartilhada por essas mobilizações são os massacres, tentativas de destruição de suas lutas e existências , parte da outra história que se segue.

Uma história contada por seus massacres
A outra história mexicana, de tentativa de aniquilação do dissenso e da pluralidade das etnias e lutas indígenas, é central para entender os movimentos neste país. Nesta história, as dinâmicas do narcotráfico das últimas duas décadas são importantes especialmente na terceirização da violência que ocorre em todo o território mexicano. Passada a promessa parcialmente cumprida de Reforma Agrária, a militarização de seus territórios e a Guerra Suja[11] contra os ativistas na década de 1970, os assassinatos em massa são uma forma alternativa de contar os anos de luta no país. Em 1995, em Aguas Blancas, Guerrero, 17 indígenas da Organización Campesina de la Sierra del Sur (OCSS) foram mortos e outros tantos feridos, em confronto com policiais. Em 1998, o massacre de El Charco, no município Ayutla de los Libres, também em Guerrero, foi uma execução extrajudicial por membros do exército, de dez indígenas mixtecos e um estudante da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), ferindo outros, com a justificativa de se tratarem de guerrilheiros. Em 1997, o Massacre de Acteal, em Chenalhó, Chiapas, contou com a morte de 45 indígenas tzotziles ligados ao coletivo Las Abejas, mulheres grávidas e crianças. Naquele momento, a novidade foi o uso expressivo de paramilitares para destruir a contestação.
Paramilitares voltaram a ser utilizados no massacre de 43 estudantes secundaristas em Ayotzinapa, Iguala, no estado de Guerrero, em setembro de 2014, a caminho de uma manifestação anual em memória a outro massacre, na Cidade do México[12]. A aplicação da repressão deixou de ser realizada exclusivamente pelas forças estatais. Matanças recentes – a lista é longa – incluem o massacre em um abrigo de migrantes em San Fernando, Tamaulipas, em 2010, em que 72 migrantes foram mortos brutalmente, ao que tudo indica orquestrado pelo cartel Los Zetas. Após os disparos em suas cabeças, foram abandonados em uma loja vinculada ao cartel. No ano seguinte, outro massacre ocorreu na mesma cidade, com 193 pessoas, a maioria de migrantes centro-americanos, que foram tiradas do ônibus em que viajavam e mortas, enterradas em valas comuns.
No final de janeiro de 2021, dezenove migrantes guatemaltecos foram encontrados mortos em um veículo incendiado em Camargo, Tamaulipas, na fronteira norte do país. O estado é território de ação de diferentes cartéis, que incluem o do Golfo e do Noroeste (dissidência dos Zetas)[13]. Neste episódio, antes de serem queimados, os narcotraficantes atiraram nas vítimas, em outra localidade, e retiraram as balas das proximidades. As mortes não deixam de ser parte de uma dinâmica própria massacratória do Estado em relação à população em trânsito – e mobilizada – no país. No mais, esta revela não somente a crueldade dos crimes, mas também a racionalização das mortes. Dentre os problemas enfrentados nas áreas de fronteira, as valas comuns, cada vez mais frequentes, escondem as ossadas de mais de cem mil desaparecidos nos últimos anos. Enquanto os paramilitares e cartéis executam, queimam e desaparecem com suas vítimas em valas comuns, as forças estatais reprimem complementarmente a passagem das sucessivas edições de Caravanas Migrantes desde 2018, em trânsito desde El Salvador, Honduras e Guatemala.
Desde o início da declarada – e mal sucedida – guerra às drogas, no primeiro dia de trabalho do então presidente Felipe Calderón, em 2006, o México observa um aumento significativo de desaparecimentos, tiroteios, execuções e massacres que o transformaram em uma área de guerra.
Apesar de viverem em um estado de alerta permanente e em um ambiente de violência continuada, os mexicanos e mexicanas não deixaram de reorganizar suas formas de resistências. É o caso, por exemplo, dos coletivos de mães que buscam as ossadas de seus filhos e filhas em valas comuns, articuladas coletivamente em busca de respostas do Estado[14]. As mulheres são maioria dentre os familiares que passam dias buscando os seus [as valas dos seus familiares][15] em uma narcoguerra que envereda a todos: cartéis, migrantes e o restante da população, mas também policiais e agentes de imigração corruptos.
Alguns caminhos para muitos fins
As resistências que emergem em solo mexicano podem ser entendidas como herdeiras da primeira Revolução do século XX. Naquele momento, Luis Terrazas, empresário em Chihuahua, talvez o maior dono de terras de toda América Latina à época, com três milhões de hectares de terra, respondia à pergunta “Você é de Chihuahua?”, com “Não, Chihuahua é minha”. É à permanência dessa concentração de poder que todos os que se movimentam em território latino-americano respondem no começo do século XXI.
Isso inclui os dezenove guatemaltecos do pequeno povoado de Comitancillo, brutalmente assassinados em busca do sonho americano em janeiro desse ano. E outros tantos em movimento e em luta por uma vida digna no país. A fala da porta-voz zapatista Ana María, na inauguração do Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo em 1996 não foi uma alegoria: “nossas vidas valiam menos que as máquinas e os animais. Éramos como pedras, como plantas que ficam no caminho”.[16] Até a década de 1960, a “questão indígena” latino-americana era considerada secundária, um entrave para o desenvolvimento de Estados modernos. E para os milhares que ousaram lutar contra a concentração de terras e riquezas, o racismo institucional contra povos originários e a espetacularização da violência aplicada contra o dissenso, diversos foram seus fins. Da criação de coletivos contra a violência estatal às denúncias em organismos internacionais de matanças passadas, a continuidade da mobilização parece ser a chave. A beleza dos povos de passado e presente indígena que celebram seus mortos em festa – e que lutam desde abajo – não pode ser sobrepujada por sua contagem de massacres e mortos atravessando o país.
*A autora agradece as revisões de Luna Campos, Vitória Gonzalez, Bruno Prado e Rodrigo Cantu.
Simone da Silva Ribeiro Gomes é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPel e do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS), da UFPel
[1] Não me deterei aqui neste episódio. Para saber mais, ver: A Revolução Mexicana”, de Carlos Alberto Sampaio Barbosa, de 2019, da coleção UNESP e “The Mexican Revolution: A Short History 1910-1920”, de Stuart Easterling, publicado em 2013.
[2] “Zapata Vive! La luta sigue y sigue!”, em espanhol, no original.
[3] É importante afirmar que o movimento indígena no México é anterior à “comemoração” dos quinhentos anos. Em 1974, por exemplo, o Congresso Indígena, que aconteceu no país, já reuniu forças para movimentos posteriores. Dentre eles, destaco o Consejo Guerrerense Quinientos Años de Resistencia, de Guerrero, responsável pela “Campanha 500 Anos de Resistência”. Décadas depois, foi realizado o Congresso Nacional Indígena (CNI), em 1996, reunindo a maioria das organizações independentes no país.
[4] Em inglês, no original, North American Free Trade Agreement.
[5] Título dos clássicos de John Kenneth Turner e Guillermo Bonfil Batalla, respectivamente.
[6] Sobre essa transformação, o livro de Yvon Le Bot, “La Gran Revuelta”, de 2013, traz aportes interessantes, sobretudo os que incluem transformações advindas da Outra Campanha, movimento do EZLN até a capital do país em 2001 e o não cumprimento dos Acordos de San Andres, da parte do governo, assinados como parte da trégua, em 1994.
[8] Desde o assassinato atribuído a grupos paramilitares e ao grupo da CIOAC-H em uma emboscada do professor Galeano, em um dos caracóis zapatistas, em maio de 2014, o então sub Marcos adotou o nome do companheiro. O conhecido porta-voz do movimento que preconiza “mandar obedecendo” assina comunicados periódicos no site https://enlacezapatista.ezln.org.mx/ . Dentre os comunicados, destaco um que pulveriza a imagem de Marcos, em que o sub assume múltiplas identidades minoritárias https://www.bibliotecas.tv/chiapas/may94/28may94.html .
[9] Para Segato (2016), os feminicidios em série de trabalhadoras das maquilas na fronteira norte mexicana, na década de 1990, são exemplares da aplicação de uma violência específica sobre corpos femininos.
[10] Para saber mais, ver: Rodríguez (2015) “En busca de la autonomía entre los yaquis. Múltiples proyectos de desarrollo y una sola «gran verdad” “.
[11] A Guerra Suja foi um episódio traumático para os movimentos sociais e ativistas mexicanos, com a difusão de práticas estatais que iam de prisões arbitrárias à tortura, e ao desaparecimento forçado de pessoas, com a justificativa de suspeita de associação com a guerrilha.
[12] Em 2 de outubro de 1968, forças policiais, exército e grupos paramilitares conhecidos como Halcones assassinaram mais de trezentos manifestantes na praça de Tlateloco, na Cidade do México. Até hoje, a data é marcada por uma marcha que termina na mesma praça, para lembrar as vítimas da barbárie.
[13] Desenvolvi o tema dos cartéis no verbete sobre O Narcotráfico, no blog do Labemus. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/10/26/leituras-elementares-da-vida-academica-narcotrafico-por-simone-da-silva-ribeiro-gomes/
[14] A realidade das mães que ganham conhecimento forense na busca por seus próprios filhos pode ser melhor entendida no trabalho de Renshaw, Layla, Marina Álamo Bryan, Zuzanna Dziuban and Claire Moon (2020) ‘Tools in the search for human remains’ in The Secret Life of Objects, no ISRF Bulletin XXI.
[15] Como o exemplo de Marisela Escobedo, cuja filha foi vítima de um feminicídio em Chihuahua e passa a buscar por justiça e pela ossada da jovem. O documentário Las tres muertes de Marisela Escobedo aborda o tema.
[16] Ver Yvon Le Bot, “La Gran Revuelta”, de 2013.