Retratos do Império, quando decadente
Temidos por seu poder e cobiça, os EUA foram também admirados, durante décadas, por sua democracia e mobilidade social. Serge Halimi sustenta que esta ilusão acabou. Para ele, vinte anos de neoliberalismo dividiram a sociedade em castas, e a política foi soterrada pelo marketingSerge Halimi
Para os militantes republicanos, o momento é grave: “Tudo o que obtivemos em seis anos pode ser perdido em um dia”, escreveu-lhes Sam Brownback, senador do Kansas. E ainda: “Os democratas querem aumentar os impostos, reduzir a eficácia de nossa guerra ao terrorismo e lançar [contra o presidente] um processo de impeachment.” Na segunda circunscrição de Indiana, os potenciais eleitores são importunados por comunicações telefônicas geradas por computadores a serviço do comitê pela reeleição do parlamentar republicano.
Às vezes, a mensagem é mais personalizada. Em uma correspondência eletrônica, dirigida a um de seus supostos apoiadores ? que, nesse caso particular é um francês bastante afastado de suas idéias ?, o presidente George W. Bush escreveu em 17 de outubro: “Caro Serge. Em 2004, você participou da organização de minha campanha vitoriosa. Juntos, enviamos ao povo americano uma clara mensagem a respeito da necessidade de preservar a segurança de nossa Nação, de manter baixos os impostos e de continuar a criar empregos. Este ano, eu peço novamente a você que me ajude (…) Na falta de uma maioria republicana no Congresso, nossos adversários políticos se empenharão em revogar o Patriot Act, em aumentar os impostos e em me impedir de nomear juízes conservadores nas cortes federais. ”
O tom militante da correspondência revela a aposta de Karl Rove, estrategista da Casa Branca. Uma vez que a participação em uma eleição de meio de mandato (midterm) é geralmente fraca (39% em 2002), seria menos importante seduzir os indecisos que reagrupar sua base. “Em 2004”, precisou há algumas semanas o diretor de campanha do partido no poder, “62 milhões de norte-americanos votaram no presidente Bush, um recorde. Nas midterms de 2002, 77 milhões de americanos foram às urnas. Se conseguirmos mobilizar todos os republicanos [de 2004] que só votam espontaneamente nas eleições presidenciais, nós desbancaremos os comentaristas e conservaremos a Câmara e o Senado.”
A hipótese é audaciosa. As coisas vão tão mal para a Casa Branca que o jornalista Bob Woodward, com seu lendário oportunismo em uma profissão lendária por seu oportunismo, volta-se contra George W. Bush, a quem havia elogiado sem moderação nas suas duas obras precedentes. Muitos fatores — o atoleiro mortífero no Iraque, a paquera entre um parlamentar apaixonado por “valores morais” e um adolescente empregado no Capitólio, o crescente sentimento de que a vida se torna mais difícil — indicam que “mobilizar” os partidários do presidente não será tarefa fácil.
Em lugar de projetos políticos, clientelismo high-tech
Não faltam meios técnicos e financeiros para fazê-lo, no entanto. Em cada uma das circunscrições onde o resultado parece incerto, os candidatos podem ? cruzando uma imensa variedade de informações sobre idade, tipo de habitação, preferência religiosa, hábitos de consumo mais diversos possíveis ? identificar o tipo de eleitor potencial que lhes interessa atrair prioritariamente. Esse procedimento não tem nada de novo. Em 1995, convencido por seu estrategista de que deveria primeiramente seduzir os norte-americanos amadores de caminhadas a pé, de camping e de golfe, o presidente William Clinton havia renunciado ao iate durante suas férias de verão?
Desde então, o sistema foi aperfeiçoado. A “micro-escolha do público-alvo” permite, a todos os partidos que possuem recursos para tanto, traçar os perfis típicos de simpatizantes. Os republicanos estabeleceram quarenta e dois diferentes, somente no Michigan, graças à sua síntese (onerosa, mas o dinheiro dos lobbies industriais serve para isso) de uma massa de dados informatizados. Por exemplo, a assinatura de uma revista, uma doação a uma instituição de caridade, a inscrição em uma escola particular, a posse de um scooter apropriado para a neve… Se esta última característica define mais freqüentemente um partidário do presidente, é importante informar ao grupo ? por correio, por internet, mas também de porta em porta ? que o “extremismo ecológico” do Partido Democrata ameaça impedir a construção de novas pistas nas montanhas. Já às religiosas praticantes brancas que vivem nas zonas rurais, serão enviadas a elas mensagens que reativam a hidra do casamento homossexual [1]. Até 7 de novembro, os dois grandes partidos teriam gasto 500 milhões de dólares. Sem contar as somas investidas pelos próprios candidatos. O número de mensagens eletrônicas enviadas não será contada. E estas técnicas marcarão a próxima eleição presidencial.
A micro-escolha do público-alvo não impede o recurso a procedimentos menos refinados. Em matéria de luta contra o terrorismo, por exemplo. “Vote como se sua vida dependesse disso. Porque esse é o caso”, ribomba uma publicidade republicana. A Al Qaeda “vai voltar a nos atingir, por causa do fracasso das políticas de George Bush”, respondem os democratas. A demagogia ambiente e o desejo de se proteger dela explicam por que dezenas de parlamentares democratas aceitaram os repetidos ataques às liberdades públicas orquestrados a partir da Casa Branca, a legalização das torturas inclusive [2]. Em 29 de setembro, o orçamento de 448 bilhões de dólares do Pentágono (alta de 40%, desde 2001) ? dos quais 70 bilhões de créditos suplementares para as guerras no Iraque e no Afeganistão ? foi adotado pelo Senado por unanimidade.
Diferentes na campanha, bem parecidos após as eleições
Apesar de a guerra no Iraque ocupar um lugar especial na campanha, é difícil distinguir, no fundo, as posições dos campos face a face. A maioria dos republicanos eleitos falam de “manter o rumo” até o dia em que será possível passar o bastão às autoridades iraquianas. A maioria dos democratas eleitos afirmam querer alterar o rumo, mas recusam-se a fixar uma data para a retirada das tropas. Analisando as posições de dois candidatos muito bem quotados para se enfrentar na disputa presidencial de 2008, o diretor da revista diplomática The National Interest concluiu: “Quem compara as declarações da senadora [democrata] Hillary Clinton e as do senador [republicano] John McCain, observa uma abordagem quase idêntica dos temas internacionais. [3]” E é freqüentemente à direita que se ouvem as críticas mais mordazes sobre o aventureirismo imperial do presidente Bush [4].
O contraste entre a veemência eleitoral, multiplicada pelos anúncios de publicidade e pela internet, e a ausência de uma perspectiva de ruptura com as orientações fundamentais da Casa Branca repete-se em matéria de política interna. À exceção do cálculo do salário mínimo federal, cujo nível (5,15 dólares por hora) permanece inalterado desde 1997, e algum sensacionalismo contra o dumping social praticado pelo gigante da distribuição Wal-Mart, é difícil imaginar uma proposta em torno da qual uma eventual maioria parlamentar democrata possa se unir e superar a obstrução de um veto presidencial. Também neste terreno, uma hipotética mudança de rumo deverá esperar até novembro de 2008.
A menos que a recessão apareça mais cedo que previsto. Uma eventual explosão da bolha pode acelerá-la, em um país onde a taxa de poupança é negativa, as taxas de juros subiram e milhões de norte-americanos endividaram-se penhorando, a preços superestimados, suas casas. No entanto, o quadro geral não é uniformemente sombrio: o déficit comercial chegará aos 800 bilhões de dólares no final do ano (aproximadamente 6% do PIB!), mas inflação permanece baixa (2,1%), a taxa oficial de desemprego estável (4,6%), o crescimento bastante estável, e o déficit orçamentário (260 bilhões de dólares, ou 2% do PIB) suportável para um país em guerra. Mas o que significam exatamente estas estatísticas, essas médias, em um país onde as classes se endurecem a ponto de constituir castas?
O declínio da mobilidade social norte-americana
A ilusão da mobilidade social, “dos farrapos à fortuna”, nunca foi tão grande. Em 1983, 57% dos norte-americanos pensavam que era possível “começar pobre na vida e acabar rico”. Em 2006, a proporção atingiu 80%. Mas neste mesmo período, a fatia da renda nacional absorvida pelo 1% mais rico praticamente dobrou, passando de 9% a 16% [5]. Este é um dos paradoxos da situação.
Analisado a partir de um período mais longo, o quadro também não anima. Os salários representam hoje a fração mais baixa do produto nacional desde que tal estatística existe. Simetricamente, os lucros abocanham uma parcela nunca alcançada em mais ou menos meio século. É, aliás, a eles que se atribui a abundância de certas receitas fiscais (a arrecadação do imposto pago pelas empresas aumentou 27%) e, em conseqüência, o bom equilíbrio relativo do déficit financeiro.
A direita norte-americana vê, neste último resultado, o triunfo da “política econômica de oferta” (supply side) [6]. A baixa das alíquotas de impostos, estimulada pelo presidente Bush desde 2001, teria provocado um afluxo de receitas fiscais. Isso significa esquecer que a política de oferta tinha como principal objetivo elevar a taxa de poupança (que se tornou negativa pela primeira vez desde 1933) e, por outro lado, que o excedente de receitas arrecadas pelo Tesouro foi — como o reconhece o Wall Street Journal — “amplamente alimentada pelos ricos, que se beneficiaram de salários mais elevados, de bônus e de ganhos na bolsa [7]. “Na verdade, o “milagre” pode ser explicado sem dificuldade: os ricos pagaram um pouco mais de impostos, porque ganharam muito mais dinheiro.
Diferente do pós-guerra, agora ganham os muito ricos
A concentração sempre crescente dos frutos do crescimento caracteriza agora a sociedade norte-americana. Um estudo da Northwestern University conduzido por Ian Dew-Becker e Robert Gordon, deu indicações surpreendentes desse fato, mesmo sem levar em consideração os ganhos do capital. Entre 1966 e 2001, o valor real do salário médio (o nível abaixo do qual se situa a metade dos assalariados) aumentou apenas 11%. Mas para os 10% dos assalariados mais bem pagos, o aumento chegou a 58 %. E os ganhos aumentam à medida que se chega ao topo da pirâmide; aumento real de 121%, para o 1% dos assalariados mais bem remunerados; de 256 % para o 1/1.000 mais favorecido; de 617% para o 1/10.000 ultra-privilegiado. [8]. Na disputa pelo bolo, agora “o ganhador leva tudo” [9].
Não foi sempre assim: “No passado”, lembra Clive Crook, “a produtividade parecia uma onda que levantava quase todos os barcos. Durante os vinte anos de crescimento contínuo de produtividade que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, as rendas médias aumentaram no ritmo das rendas mais elevadas [10].” Entre 1966 e 2001, em contrapartida, segundo o estudo da Northwestern University citado, o 1% dos mais ricos abocanhou uma fração mais importante dos ganhos de produtividade do que os 50 % mais pobres. Compreende-se que a maioria dos eleitores americanos contenha também facilmente sua alegria quando se anunciam os bons índices de crescimento?
Os anos Bush acentuaram uma tendência que já era observada durante a presidência de Clinton, quando a liberalização comercial, deslocalizações de empresas, imigração e enfraquecimento dos sindicatos pesaram sobre os salários dos trabalhadores menos qualificados. Hoje, o sistema norte-americano favorece de tal forma as fortunas que certos “remédios” não funcionam mais. Em 1993, esperando desconcertar os conselhos de administração muito generosos para com seus dirigentes, as autoridades federais obrigaram as sociedades cotadas na Bolsa a tornar público o pagamento e os “extras” voluptuosos dos dirigentes das empresas. Em 1984, o Congresso já havia revogado certos benefícios ficais concedidos quando salários e “proteção social” dos executivos-chefes (a indenização por rescisão de contrato, por exemplo) ultrapassavam o milhão de dólares.
Ao invés de corrigir, a política amplia desigualdades
Quais foram os resultados? O pagamento dos executivos-chefes de grandes empresas atingiu os 10,5 milhões de dólares em 2005. São 369 vezes a remuneração média de seus assalariados (contra 131 vezes em 1993 e 36 vezes em 1976). Paradoxalmente, a divulgação das remunerações conduziu os dirigentes menos remunerados a reclamar tanto quanto os mais afortunados. O teto de 1 milhão de dólares, além do qual o imposto havia sido elevado, foi transformado no “salário-mínimo de PDG”. A contrapartida do desempenho capitalista nem sempre está presente: no final do ano passado, o executivo-chefe da Pfizer havia acumulado 83 milhões de dólares sob forma de fundos de aposentaria. Sob sua direção, o valor das ações da empresa havia caído em 37% [11].
A metade dos norte-americanos possui apenas 2,5% da fortuna nacional; os 10% mais ricos detêm 70% [12]. Entre estes últimos, há um grande número de parlamentares, freqüentemente escolhidos para representar seus partidos em função de sua capacidade de financiar uma campanha. Ou seja: o jogo político e a disputa “democrática” praticada a cada dois anos não corrigem — ao contrário, exacerbam — as distorções do mercado. O “contra-poder” midiático tampouco, e pelas mesmas razões.
O próximo Congresso confirmará um perfil social singularmente pouco representativo do país: 40 entre 100 senadores são milionários em dólares; 123 dos 435 deputados também ganham um milhão ou mais a cada ano. Por sinal, geralmente os eleitos deixam o Capitólio mais ricos do que quando entraram. Um estudo estabelece mesmo que ninguém, nem mesmo os profissionais de Wall Street, mostra-se tão hábil quanto eles para fazer frutificar um investimento [13].
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).