"Revoluções" à moda do Leste
Uma radiografia das revoltas populares que derrubaram governos autoritários na Europa Oriental e Ásia Central – mas colocaram no poder outros setores das elites e não asseguraram a liberdadeVicken Cheterian
Viktor Yushchenko não é um revolucionário comum. Ele não usa traje militar e nenhuma fotografia o mostra barbado ou com uma kalachnikov **. Este homem de físico avantajado – antes de ser desfigurado por um envenenamento criminoso – ocupou os postos de diretor do Banco Central e primeiro ministro de Ucrânia1. Candidatou-se à eleição presidencial de 2004, mas o presidente de saída, Leonid Kutchma, havia previsto ceder o seu lugar ao primeiro ministro de então, Victor Yanukovich, que mal fala a língua nacional.
Quando, no final do segundo turno, a comissão eleitoral anunciou a vitória do candidato oficial, a oposição escandalizou-se e convocou as manifestações de massa. Milhares de pessoas mobilizaram-se durante os meses gelados do inverno de 2004/5 – o que foi chamado de “Revolução Laranja2“. Assim funcionam as “revoluções coloridas”: após uma fraude eleitoral, o protesto popular se organiza, dirigido por uma parte da elite que se ergue contra a outra; e provoca uma mudança pacífica de governo, sem derramamento de sangue.
Como um dominó
Depois da Sérvia (2000), da Geórgia e sua “Revolução Rosa” (2003) e a Ucrânia (2004), a Revolução das Tulipas no Quirguistão, na primavera de 2005, depôs o primeiro chefe de Estado da Ásia Central chegado ao poder desde o fim da era soviética. Manifestantes que contestaram os resultados das eleições legislativas tomaram os comissariados de polícia e as construções administrativas nas cidades de Djala-Abad e de Och, no sul do país. No dia seguinte aos distúrbios que estouraram na capital Bichkek, os escritórios da presidência foram saqueados e o presidente Askar Akaevitch Akaïev foi obrigado a fugir para o exterior. Nos países pós-soviéticos, os dirigentes têm a tendência de se pendurar no poder. Sentem-se livres para recorrer maciçamente à fraude eleitoral. Os habitantes querem a mudança e quando não a obtêm pelas urnas, não hesitam em sair à rua.
Nos países onde estouraram as revoltas, os chefes de Estado tinham perdido apoio do povo; contra eles, surgiam movimentos de oposição que dispunham de vastos recursos
Uma década depois da queda do muro de Berlim (1989) e do desmoronamento da União Soviética (1991), um vento revolucionário de um tipo novo soprou sobre o Leste europeu. As semelhanças entre essas revoluções (cronologia, símbolos utilizados), parecem indicar que são parte de um mesmo processo. Outra “surpresa” desse gênero poderá, aliás, se produzir, por exemplo, no momento das eleições legislativas de novembro, no Azerbaijão, ou na presidencial de dezembro, no Cazaquistão. Esses movimentos não puseram apenas abaixo os regimes corrompidos e impopulares na Sérvia e na Geórgia. Eles também fizeram nascer uma realidade política nova, cujo impacto não se limita aos últimos regimes autoritários dos países da Europa do Leste e da Ásia Central.
O perfil das revoltas
Tais “revoluções” não-violentas não podem se produzir em estados fracos. Nos países onde elas estouraram, o chefe de Estado tinha perdido o apoio do povo e de vários setores da administração; estava fragilizado pela repetição de escândalos devido à corrupção. Os dirigentes não estavam mais em condições de assegurar a ordem ou garantir a estabilidade do regime. Contra eles, surgiam de oposição que dispunham de vastos recursos. Na Sérvia e na Geórgia, por exemplo, os partidos contestadores beneficiavam-se de um largo apoio de opinião e uma experiência em mobilização de massa. Meios de comunicação que escaparam do controle do governo difundiam informações alternativas. Associações estavam em condições de mobilizar a população e de se vincular às redes no exterior. Até agora, Bielorússia e Turcomenistão, onde o Estado é mais repressivo e a oposição mais fraca e atomizada, não foram palco de “revoluções coloridas”.
Eduard Chevarnadze, Kutchma, Yanukovich e Akaevitch Akaïev foram todos confrontados com o mesmo problema: como fazer quando os índices de popularidade caíram ao patamar mais baixo, o aparelho de Estado está enfraquecido e desmoralizado, os aliados principais o abandonaram e os manifestantes reúnem-se às portas do palácio presidencial? Nenhum desses líderes deu ordem à polícia ou ao exército para abrir o fogo sobre a multidão. Todos renunciaram a um poder ilegítimo após negociações com a oposição.
Os “novos” líderes
O enterro das reformas e a corrupção maciça, devido às não menos maciças privatizações, empurraram antigos dirigentes, e a antiga ala “jovem” da elite, a se juntar à oposição
Mas quem são os novos “revolucionários”? Também aqui um mesmo esquema se repete. Na Geórgia, Mikhaïl Saakachvili, antigo ministro da Justiça de Chevarnadze, apoiado pelo Zurab Zhvania3, antigo presidente do Parlamento georgiano, e Nino Burdjanadze, então presidente do Parlamento, conduziram o movimento. Antigos adeptos da ala reformista do Fórum Cívico de Chevarnadze, tinham, em certo momento, tomado distância da política de um presidente cada vez mais desligado da realidade.
Na Ucrânia, Yushchenko tinha exercido as funções de primeiro ministro de Kutchma e Ioulia Timochenko tinha sido vice-primeiro ministro e responsável pelo lucrativo setor de energia. No Quirguistão, Kurmankiev Bakiev também havia ocupado o posto de primeiro-ministro, sob Akaïev. O enterro das reformas e a corrupção maciça, devido às não menos maciças privatizações, empurraram antigos dirigentes, bem como a antiga ala “jovem” da elite, a se juntar à oposição.
Outros foram afastados por manobras políticas, como Kurmankiev Bakiev, sacrificado depois de as tropas governamentais terem aberto fogo sobre os manifestantes. Uma vez na oposição, esses dirigentes compreendem que a via legal é impraticável, uma vez que os resultados das eleições são falsificados. Não lhes resta mais nada além de recorrer à rua.
O caráter não-violento das mudanças é primordial, porque permitiu aos países referidos evitar a guerra civil e lhes poupar uma eventual secessão. A Geórgia conheceu, duas vezes, as angústias da guerra civil nos primeiros meses da sua independência. Primeiro, quando uma coalizão derrubou o primeiro presidente livremente eleito, Zviad Gamsakhurdia, em janeiro de 1992; depois quando os partidários deste último tentaram marchar sobre a capital Tbilissi. Na Ucrânia, as forças anti-Yushchenko, procedentes das províncias orientais, poderiam ter provocado o despedaçamento deste imenso mas frágil Estado. Do mesmo modo, o levante no Quirguistão, que opõe um presidente originário do Norte a um líder vindo do Sul, poderia provocar novas divisões tribais e comprometer a existência desta república da Ásia Central.
A “segunda onda”?
Uma aliança entre quatro forças: os partidos em favor da democracia, os setores reformistas do aparelho do Estado, os empresários respeitosos da legalidade e os movimentos de jovens
“Todos os países do antigo espaço soviético atravessam uma segunda onda de mudanças revolucionárias”, avalia Vazgen Manukian, antigo líder do Movimento Nacional Armênio, um dos primeiros movimentos de massa na URSS. Não há dúvida da vontade de mudança da população, nem do seu desejo de remover uma geração de líderes que fechou os olhos para a corrupção que manchou as privatizações. Manukian sabe do que fala: primeiro-ministro da nova Armênia independente, ele acabou juntando-se à oposição. Na seqüência da eleição presidencial contestada de 1996, tentou invadir o parlamento, à frente de milhares de manifestantes. A intervenção do exército interrompeu esta operação pacífica. Manukian prevê uma aliança entre quatro forças: os partidos em favor da democracia, os setores reformistas do aparelho do Estado, os empresários respeitosos da legalidade e os movimentos de jovens.
Em que medida as “revoluções coloridas” podem ser comparadas aos modelos que representam a Revolução Francesa ou a Revolução Russa? De acordo com André Liebich, professor de História e Política Internacional do Graduate Institute for Internacional Estudos de Genebra, esses movimentos aproximam-se mais dos surtos revolucionários que varreram a França, a Bélgica, a Polônia e a Itália em 1830, do que seus grandes primogênitos de 1789 ou 1917. Eles constituem uma contestação das revoluções de 1989-1991. “Se se comparar os anos 1830 e os anos 2000, constata-se que, quinze anos após o choque principal, vem um abalo secundário. Não se trata de uma perturbação fundamental, mas de um reajuste da ordem política.” As revoluções de agora “não trouxeram idéias novas”, afirma André Liebich: “elas tiraram da caixa ferramentas ideológicas de que todos dispõem.” Não se trata de substituir a ordem existente por uma ordem radicalmente nova, mas de fazer de modo que “os regimes conformem-se à sua própria retórica”.
Até agora, a imprensa russa, européia ou norte-americana atribuiu menos importância à natureza dessas revoluções e às forças que lhes subjazem do que às intervenções externas e as mudanças geopolíticas ocorridas in fine. Primeiro fator sublinhado, sobretudo nos meios de comunicação russo e francês: o papel desempenhado pelos Estados Unidos, freqüentemente apresentado como “desencadeador” das revoluções. Diversos jornalistas em Washington têm sustentado essa idéia, dando crédito à tese de que a política do presidente George W. Bush favorece a democracia do Oriente Médio à Europa do Leste4. Entretanto, essas duas regiões são tão diferentes política e socialmente que estabelecer uma relação entre elas é uma simplificação.
O papel das ONGs
Para o chefe dos serviços de informação russos (FSB), as ONGs protegeriam espiões e preparariam uma revolução na Bielorússia e em outros países da CEI
As “revoluções coloridas” também aumentaram o prestígio das organizações não-governamentais (ONGs) que intervêm nos “países em transição”. Desde o desmoronamento do sistema soviético, as ONGs do Leste são, freqüentemente, mandatárias dos capitalistas internacionais para construir a economia de mercado e a democracia. Entretanto, seus objetivos estratégicos, ligados ao apadrinhamento do Ocidente, são criticados, assim como sua tendência em criticar o modo de funcionamento dos meios de produção5. Os acontecimentos políticos na Geórgia e na Ucrânia fizeram calar essas críticas crescentes e transformaram a imagem das ONGs: de subcultura dependente do estrangeiro, isoladas no seio de suas próprias sociedades, elas se tornaram instrumento de uma mudança revolucionária.
Um jornalista as qualificou de “brigadas democráticas internacionais”, elogiando o seu “know-how único, sutil mistura de não-violência, marketing e capacidade de coletar fundos6“. Elas se situariam na confluência de duas culturas, a da dissidência nos países do Leste e a da sociedade de consumo ocidental. A admiração, assim como o medo que suscitam são desmedidos. Para o chefe dos serviços de informação russos (FSB), Nikolaï Patruchev, as ONGs estrangeiras protegeriam espiões e preparariam uma revolução na Bielorússia e em outros países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) 7. Suas atividades são cada vez mais supervisionadas pelos governos locais.
É fato que movimentos de jovens como Kmara na Geórgia e Pora na Ucrânia8 recebem fundos de organizações estadunidenses como o Open Society Institute (igualmente conhecido sob o nome de Fundos Soros) ou o National Democratic Institute. Seu papel nas mudanças políticas, contudo, foi secundário. É a ação dos partidos de oposição principalmente, bem organizados e apoiados por uma parte do aparelho de Estado, que foi decisiva, para o sucesso da via pacífica.
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Embora feitas sob a bandeira da “democracia”, as “revoluções coloridas” não desembocam necessariamente numa democratização, nem em mais liberdade para os cidadãos
Enfim, as conseqüências geopolíticas das “revoluções coloridas”, suscitaram também um vasto debate. Para os partidários da tese segundo a qual elas são sobretudo parte de uma estratégia de Washington, o objetivo dos movimentos é aumentar a influência norte-americana na Eurásia, em detrimento da Rússia. De fato, os Estados Unidos estão mais presentes na Geórgia e na Ucrânia, enquanto Moscou não controla mais seu “vizinho próximo”. As recentes tentativas do Kremlin de orientar as eleições na Geórgia ou na Ucrânia compõem também essa visão.
Não é necessário, contudo, exagerar esta “revolução geopolítica”. A Geórgia, por exemplo, recebe ajuda militar americana desde 1997; 200 peritos empreenderam a reestruturação do exército nacional em 2001, enquanto Chevarnadze continuava no poder. Soldados ucranianos foram enviados ao Iraque sob Kutchma, depois reconvocados por Yushchenko. A recente decisão ucraniana de construir um gasoduto para importar gás natural do Irã – certamente não para agradar Moscou ou Washington – recorda os constrangimentos geoestratégicos que marcam a política do país.
Que democracia?
Embora “revoluções coloridas” sejam feitas sob a bandeira da “democracia”, elas não desembocam necessariamente numa democratização, nem em mais liberdade para os cidadãos. Na Geórgia, dois anos após a troca de poder, o balanço não é positivo. Primeiro, a “Revolução Rosa” começou pela contestação dos resultados das eleições parlamentares mas acabou com a troca do presidente9. A eleição presidencial organizada dois meses mais tarde deu esmagadora vitória a Saakachvili (96% dos sufrágios), seguida de uma não menos esmagadora vitória do seu partido no legislativo (135 cadeiras, entre 150). Esses resultados fazem da Geórgia pós-revolucionária uma república de partido único…
“Está claro que não se trata de revoluções sociais, mas mudança política”. A esperança de transformações radicais, portanto, será provavelmente perdida
Além disso, as organizações de defesa dos direitos humanos lamentam que a tortura sempre seja praticada pela polícia durante as batidas10; os jornalistas acusam o novo governo de ter reduzido particularmente a independência e o pluralismo da imprensa. Diversos líderes e homens de negócios, freqüentemente próximos do antigo poder, foram acusados de desvio de fundos, detidos, depois liberados após ter desembolsado de importantes somas em dinheiro — que foram vertidas ao orçamento do Estado. Os observadores críticos consideram que essas práticas, nas quais o sistema judiciário não interveio, estão mais próximas das tradições caucasianas de prisão de reféns do que da prática moderna do Estado de direito.
Mas a “Revolução Rosa” também realizou algumas mudanças positivas. A polícia, minada pela corrupção, foi reformada radicalmente após destituições maciças. O emprego dos impostos melhorou. Tbilissi obteve de Moscou um calendário de evacuação das duas últimas bases militares da era soviética, que serão restituídas ao país em 2008. O sucesso mais espetacular do novo regime foi restabelecer seu controle sobre a República Autônoma da Adjaria e o seu próspero porto, Batoumi, e de provocar a fuga do líder separatista adjar Aslan Abachidze. Em contrapartida, Tbilissi fracassou na tentativa militar de reintegrar sob sua corte outra região em ruptura com o poder central, a Ossétia do Sul. Essa aventura fez dezenas de vítimas e ameaçou mergulhar outra vez a Geórgia num ciclo de violência “étnico”. No cômputo geral, a “Revolução Rosa” mais se preocupou em reforçar o Estado do que fazer avançar a causa da democracia.
Na Ucrânia, a “Revolução Laranja” fez de triunfar a escolha do povo perante um regime corrompido. Ela também alterou a imagem do país no exterior e o fez entrar no jogo político europeu. Contudo, é difícil encontrar outros méritos. Os escândalos que recentemente têm comprometido a família do presidente ucraniano esfriaram o entusiasmo da população antes mesmo que os novos líderes pudessem se vangloriar de ter alterado a vida dos cidadãos. Segundo Ronald Suny, professor de História e especialista em URSS na Universidade de Chicago, “está claro que não se trata de revoluções sociais, mas mudança política”. A esperança de transformações radicais, portanto, será provavelmente perdida.
(Trad.: Marcelo de Valécio)
**N do T: Kalachnikov, também conhecido como AK-47 (Avtomat Kalashnikova modelo 1947), é um fuzil de assalto criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov. Usado pelo exército soviético, tornou-se popular durante a Guerra Fria.
1 – Ler Jean-Marie Chauvier, “Les multiples pièces de l?échiquier ukrainien”, Le monde diplomatique, janeiro de 2005.
2 – Ler Régis Genté e Laurent Rouy, “Dans l?ombre des révolutions spontanées”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2005.
3 – Após a revolução, Zourab Zhvania chegou ao posto de primeiro ministro e à fila de segundo personagem da Geórgia. Morreu em fevereiro de 2005 por um envenenamento acidental de gás, segundo as informações oficiais.
4 – A propósito da Revolução do Cedro no Líbano, ler Alain Gresh, “Lês vieux parrains du nouveau Liban”, Le Mondo Diplomatique, junho de 2005. Sobre as dificuldades de democratização nos países árabes, ver Gilbert Achcar, “Chances et aléas du printemps arabe”, Le Monde Diplomatique, Julho de 2005
5 – Thomas Carothers, “The End of the Transition Paradigm”, Journal of Democracy, Johon Hopkins University Press, Baltimore, janeiro de 2002. Alexander Cooley e James Ron, “The NGO Scramble”, International Security, The MIT Press, Cambridge, verão de 2002.
6 – Vincent Jauvret, “Les faiseurs de
Vicken Cheterian é jornalista, autor de War and peace in the caucasus, Russia´s trouble 3d frontier, Nova York, Hurst/Columbia University Press, 2008.