EDITORIAL

Riscos a administrar

Pela leitura dos acontecimentos, aqui levanto uma hipótese: a caracterização de um momento de ameaça às instituições, de violência aberta, poderia ser uma justificativa para levar o Congresso a adiar as eleições até que o país entre em normalidade institucional. Suspender as eleições é um risco, pois a população pode reagir, mas para os que se apossaram do poder é um risco calculado, que vale a pena correr para impedir o PT de ganhar as eleições.

O cenário político brasileiro está cada vez mais conturbado e explosivo. O assassinato de Marielle abre as comportas para a direita mais radical. Embora não seja novidade, outros líderes de movimentos sociais estão sendo assassinados neste mesmo tempo, como é o caso de Paulo Sérgio Nascimento, diretor da Cainquiama (Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia) que levou quatro tiros na madrugada de 12 de março quando se dirigia para o banheiro, na área externa de sua casa, em Barcarena (PA).1

No dia 19 de março assistimos o bloqueio da caravana do Lula em Bagé, no Rio Grande do Sul, pelo agronegócio, por civis apontando armas para os integrantes da caravana. Isso sem que o poder público tome qualquer iniciativa para coibir e controlar essas manifestações de uma direita radical que, aproveitando o clima de violência institucional, saiu do armário.

A militarização da segurança pública no Rio de Janeiro colocou o Exército em oposição a setores da Polícia Militar associados ao crime. O assassinato de Marielle desafia a intervenção militar e é um recado de quem controla o território. Essa disputa deve continuar e ter desdobramentos…

Nesse cenário de violência crescente, a ocupação militar no Rio de Janeiro abre um novo momento da escalada autoritária, desta vez envolvendo os militares, que até agora se mantinham em seu papel constitucional. Foram chamados não para pacificar o Rio de Janeiro, o que muitos analistas consideram impossível sem um conjunto de políticas sociais efetivas, mas para dar respaldo a uma iniciativa de Temer, que levanta novas suspeitas.

A ocupação militar do Rio de Janeiro, ou melhor, a gestão militarizada da segurança pública, se estendeu para Niterói, Angra dos Reis, Paraty e Baixada Fluminense, buscando caracterizar que a situação de crise institucional é mais geral, abrange todo o estado e saiu de controle. Como o Rio de Janeiro não tem os indicadores de violência mais graves, seria de prever outras intervenções, em outros estados. Alagoas, Sergipe e Ceará, por exemplo, têm indicadores piores.

Com a ajuda da TV e da grande imprensa, as intervenções poderiam caracterizar um clima de instabilidade institucional no país, destacando novos casos de violência, que disseminariam o medo e a insegurança, e – na perspectiva dos golpistas – levariam a população a aceitar iniciativas extremas em nome da segurança pública. Isso de fato já acontece, como é a tolerância das instituições com o genocídio de jovens negros das periferias. A ocupação militar do Rio de Janeiro é aprovada por 76% dos cariocas.2

Pela leitura dos acontecimentos, aqui levanto uma hipótese: a caracterização de um momento de ameaça às instituições, de violência aberta, poderia ser uma justificativa para levar o Congresso a adiar as eleições até que o país entre em normalidade institucional. Suspender as eleições é um risco, pois a população pode reagir, mas para os que se apossaram do poder é um risco calculado, que vale a pena correr para impedir o PT de ganhar as eleições.

Há várias manifestações recentes, de militares importantes, que declaram que se as instituições não funcionarem o Exército deve assumir o controle até que tudo se normalize.  O general do Exército Antonio Hamilton Martins Mourão defendeu publicamente uma intervenção militar diante da crise enfrentada pelo Brasil. Não só o general não foi punido por este pronunciamento político, mas, uma vez aposentado em 31 de março, é candidato à presidência do Clube Militar, com apoio do atual presidente, general Gilberto Rodrigues Pimentel.

Quem ganha com isso? Temer poderia estar armando um acordo com os militares para que continuasse presidente e o Congresso permanecesse o mesmo, e ninguém perderia imunidades que impedem que muitos parlamentares e membros do Executivo que estão sendo processados possam ir para a cadeia. Os militares ocupariam postos-chave no governo.

É uma hipótese; não há evidências – ainda – de que isso possa acontecer. Mas a proximidade das eleições sem que a direita apresente um candidato viável, somada à extemporânea intervenção militar no Rio de Janeiro, dá margem a estas especulações.

Mesmo que Lula seja preso, ele ainda é um grande eleitor e poderá levar ao segundo turno seu indicado, com grandes chances de este vencer ao caracterizar sua candidatura como oposição a toda a arbitrariedade e espoliação que o atual governo impõe às maiorias.

Os golpistas não vão querer entregar o governo ao PT, hoje com 20% de preferência partidária, de longe o mais bem avaliado partido político, se este vier a ganhar as eleições. Já deram o golpe para depor Dilma, logo o arbítrio e a violência contra a democracia podem continuar para garantir sua proteção perante as leis, sua permanência no poder e o desmonte do Brasil e de sua soberania.

E o que farão os defensores da democracia e dos direitos humanos nessa situação?  Até agora não parece que nossa sociedade contemple essas possibilidades. As discussões todas se orientam para as eleições, políticas de alianças, projetos de governo. Se não houver eleições, não há plano B.

O que se torna cada vez mais evidente é que hoje os partidos de esquerda priorizam a disputa institucional, mas deixaram de atuar no trabalho de formação política, no fortalecimento das frentes, redes e fóruns da cidadania, que são a fonte de todo poder. Deixam o campo aberto para as mais de cem organizações militantes de direita que se organizaram a partir de 2010, inclusive com financiamento internacional.

Mas algo está mudando. Vale observar que os cursos que analisam o golpe de 2016, que se disseminaram pelas universidades públicas como ato de resistência democrática (hoje são 34 universidades que oferecem a matéria), estão sendo demandados por entidades e associações da periferia de São Paulo, que assim se abrem para ouvir o discurso contra-hegemônico e conhecer o que a mídia não publica.

Numa sociedade em que a democracia e a cidadania estão sob ataque, a disputa de narrativas, a denúncia das violações e a defesa de direitos são fundamentais para armar a população com argumentos e propostas para enfrentar este novo momento, que pode ser longo.

 

Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

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