Romper ou dialogar, eis o dilema antibolsonarista
Esquerdas e oposição ao fenômeno bolsonarista e seu produto – o presidente da República – precisam decidir se vão para alguma confrontação ou se conversam com quem está do outro lado
Quando Vladimir Lênin escreveu “O Estado e a Revolução”, em 1917, um dos seus principais alvos eram os sociais-democratas alemães que, ao contrário dos bolcheviques – adeptos de uma revolta armada –, atuavam para reorientar o Estado por dentro da democracia. “A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem revolução violenta”, escreveu o líder da Revolução Russa daquele mesmo ano. A obra, hoje um clássico do pensamento comunista, é também uma das grandes expressões de um debate secular entre “reformistas” e “revolucionários”, isto é, entre que defendia a revolução dos trabalhadores descrita por Marx e reelaborada por Lênin, e quem acreditava ser possível chegar ao poder e modificá-lo por meio de processos democráticos.
Guardadas as devidas proporções e contextos, essa discussão nunca se encerrou: no final da década de 1960, durante uma conferência da Organização Latino-americana de Solidariedade (OLAS), o líder cubano Fidel Castro lançou duras críticas àquelas esquerdas da região que afirmavam ser possível alçar os governos em seus países por vias pacíficas. “Vocês estão enganando as massas”, vociferou. Alguns anos depois, diante da iminência da eleição de Salvador Allende, ele ponderou que o que acontecia no Chile era resultado da “excepcionalidade” do país e, em novembro de 1971, durante uma visita oficial ao já presidente chileno, chegou a tensionar o debate com o colega.
“A lição é que cada povo tem sua própria realidade. Não há receitas. O nosso caso, por exemplo, abre perspectivas, abre caminhos. Chegamos ao poder pelo caminho eleitoral. Aparentemente, pode-se dizer que somos reformistas, mas temos tomado medidas que implicam que queremos fazer a revolução, vale dizer, transformar nossa sociedade, vale dizer, construir o socialismo”, argumentou Allende em uma entrevista ao jornalista francês Regis Debray – aliás, um fervoroso “revolucionário”. Ele morreu dois anos depois, dentro do palácio, no golpe de Estado que colocou Augusto Pinochet no comando do país, e hoje dá nome a uma grande avenida em Havana, capital cubana.
Polarização no Brasil
Essa discussão permanece de alguma forma, no Brasil de hoje, em outros termos: tanto entre as esquerdas quanto entre os antibolsonaristas há quem defenda alguma ruptura com os apoiadores do governo de Jair Bolsonaro – isto é, quem está ativo no fenômeno social bolsonarismo – e, por outro lado, quem afirme a necessidade de dialogar com eles, seja para lhes convencer do equívoco seja para desinflar o atual estado de polarização.
Esse ambiente cinzento se manifesta de muitas maneiras na vida social: no desejo de romper amizades ou contatos antigos por conta da posição política ou em iniciativas ainda modestas de colocar antagonistas frente a frente para discutir o momento.
Mas há também argumentos mais concretos dos dois pontos de vista, como expresso no debate implícito entre os filósofos Pablo Ortellado e Vladimir Safatle, que tento organizar aqui, vale dizer, sem a “permissão” deles. A base desse trabalho são artigos publicados e entrevistas que eles concederam nos últimos meses.
Ruptura
Safatle está do lado de uma ruptura. “A partir de um certo ponto, dialogar é não apenas inútil. É espúrio”, determina ele em um texto publicado em setembro no jornal “El País”. O argumento central é que, do fim da ditadura (1964-1985) para cá, todos os processos políticos e sociais no Brasil foram efetivados por meio da busca de um consenso – e todos fracassaram. Com isso, torturadores e apoiadores do período militar passaram incólumes à justiça, para evitar o “revanchismo”, da mesma forma que os partidos políticos da Nova República percorreram as últimas décadas dialogando com parlamentares da estirpe de Bolsonaro, apesar dos arroubos antidemocráticos e dos interesses pessoais. Logo, ao contrário de ser a solução, “o diálogo é a nossa pior maldição”, acredita o filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP).
E se não há argumento “moral” que favoreça qualquer conversa com os bolsonaristas (“Quem dialoga com pessoas que louvam torturadores e assassinos como ‘heróis nacionais’ não sabe qual o valor das palavras”), também não há mais ilusão com as elites, objeto por excelência desse tipo de tentativa e que, no governo Bolsonaro, parecem dispostas a arriscar as liberdades conquistadas no pós-ditadura em troca de reformas econômicas que desejavam há tempos. Para Safatle, que chama esses grupos de “Partido do Dinheiro”, existe algo de razoável nessa postura: mostra contra quem se deve combater.
Essa ruptura à esquerda, para Safatle, passa por três níveis: o social, o político e o econômico – e destes, só a primeira está sendo efetivada. “É lá onde ela consegue mostrar de fato a sua diferença por causa das políticas de direitos humanos, por causa das políticas de solidariedade com grupos violentados e vulneráveis e isso faz uma diferença fundamental”, disse em entrevista recente ao site Marco Zero. Portanto, a ruptura que ele propõe parece ser, de modo sucinto, uma recusa em sentar-se para dialogar sobre questões da vida social, porque essa iniciativa significaria abrir mão de princípios inegociáveis, tais como os direitos humanos.
Sentimento
Ortellado, por sua vez, é um crítico dessa espécie de polarização atual, cujo caminho é a ruptura. Seu ponto é que os lados opostos do “eixo” estão intensamente conectados pelo “sentimento”, isto é, enquanto um indivíduo de um polo vive sua repulsa ao que está do outro lado de modo intenso, esse outro a recebe como uma agressão injusta, e reage com a mesma emoção. “Isso faz com que o ciclo de intolerância se retroalimente em um moto-contínuo”, afirma ele em um texto publicado na sua coluna do jornal Folha de S. Paulo.
Isso expressa a natureza relacional da polarização, em que uma pessoa só se define a partir da projeção contrária (e imaginária) que enxerga no outro – e então define sua própria identidade. O famigerado “cidadão de bem” só consegue se afirmar como tal quando todos aqueles que falam coisas diferentes dele se concentram no rótulo de “vagabundo”, e o mesmo acontece com o “antifascista”, que só pode sê-lo se, do outro lado do espectro, ver em todo “cidadão de bem” justamente um “fascista” em potencial.
“Para que essa projeção seja crível e possa sustentar minha autoimagem, eu preciso caricaturar o adversário, isto é, pegar alguma característica deletéria dele e fazer ela valer pelo todo, como numa metonímia”, escreve Ortellado.
Diálogo
E por que é importante dialogar? Porque, para o filósofo e também professor da USP, os traços dessa projeção contrária não são necessariamente recebidos como ofensas, mas como troféus. Ou seja: quando o “antifascista” chama o “cidadão de bem” de “fascista”, faz com que este adquira capital social entre os demais “cidadãos de bem”, realçando exatamente esses traços apontados pelos “antifascistas”. O mesmo acontece do outro lado: ao chamar um “antifascista” de “vagabundo”, os “cidadãos de bem” reforçam a identidade do “antifascista” à mesma medida que aumenta a distância em relação a ele.
No limite, cada um encontra seu grupo na polarização, porque há uma legitimação na deslegitimação, em que o que é visto como ofensa pelo lado oposto se transforma em prêmio para quem a recebe. Assim, o eixo vai se alargando à medida em que o fio que os une se torna mais rígido. Dialogar, assim, passa pela desconstrução desse outro imaginário – que só se dá quando postos frente a frente. Não se trata de um consenso institucional, mas, antes de tudo, de uma ação social com relação a fins.
Ortellado e Safatle, claro, não são as únicas expressões desse debate: a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, por exemplo, tem criticado as esquerdas por seu comportamento agressivo nas redes sociais que, termina, em muitos casos, reproduzindo justamente a violência das direitas que detestam – além de não ser uma postura inteligente levando em conta o atual momento do país. Já Maíra Machado, do Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT), critica a “passividade” de entidades como a UNE e a CUT, e também advoga por uma ruptura institucional, cuja postura é alguma resistência.
Narrativas conjuntas
Marcos Nobre, filósofo e professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), parece oferecer uma alternativa que combina as duas possibilidades: em seu artigo publicado na última edição da revista Piauí, ele faz um chamado para que as forças antibolsonaristas (esquerda, centro, centro-direita), hoje reclusas em suas bases eleitorais, dialoguem entre si, construam narrativas conjuntas e, enfim, se preparem para as eleições de 2022 com uma candidatura capaz de fazer frente à pretensão do presidente em se reeleger.
“Há uma montanha de desconfianças acumuladas de lado a lado. Mas, se a convergência em torno de um acordo mínimo em defesa da democracia não começar a ser construída desde já, a democracia já perdeu. Porque a construção de um acordo desse tipo tem de elaborar anos de golpes duríssimos, de mágoas e de acusações graves. E isso leva tempo”, argumenta. Trata-se, portanto, de dialogar para romper, em que o consenso se dá dentro da divisão entre forças comuns de oposição ao bolsonarismo – o fenômeno social e seu produto, o presidente da República – para que, juntas, possam ser vigorosas o suficiente para se recusarem a dialogar com quem não tem diálogo. Por essa lógica, a rixa Lula-Ciro se torna, de fato, patética.
A questão crucial desse debate ainda abstrato – e que Nobre aponta em seu texto – é o tempo. Se parece ser um consenso que há algo a ser defendido – a democracia –, também é unânime que, se ela já não existia nas periferias do país, agora pode desaparecer também de relações sociais mais amplas (como as trabalhistas e judiciárias) e da política institucional (como a forma de governar o país).
Se o debate está posto, é hora de aprofundá-lo – mas também de agir.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do Departamento de Sociologia da USP.