Ronaldo Correia de Brito: ‘O povo brasileiro é múltiplo, não apenas dual’
Autor acaba de publicar ‘Rio sangue’, romance que aborda violência presente nas raízes do Brasil
Foi com Retratos imorais (2010) o meu primeiro contato com a literatura de Ronaldo Correia de Brito. Li aqueles contos sobre pessoas despedaçadas como se conhecesse cada uma das personagens. De lá pra cá, devo ter voltada à obra por diversas vezes e me aventurado por outros grandes livros do autor, como Galileia (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura) e Dora sem véu. Cada leitura proporcionou uma experiência diferente, mas todas igualmente marcantes. Não por acaso, Alberto Mussa se referiu a Ronaldo Correia de Brito como “uma presença indispensável na biblioteca brasileira”.
Em 2024, seu novo romance, Rio sangue (Alfaguara), tem chamado a atenção de leitores e da crítica especializada, ao apresentar um enredo em que lendas e acontecimentos históricos dividem o mesmo espaço.
A obra é protagonizada por uma família portuguesa que desembarca no Recife (PE) e foi o tema central da entrevista concedida pelo escritor ao Le Monde Diplomatique. “Em Rio sangue, desenvolvo o enredo de maneira a que o leitor conclua que na colonização brasileira está a causa de nossa violência atual. Que as sementes de desigualdade social, racismo, patriarcalismo, misoginia, etc. foram todas plantadas na conquista e desde então vicejam e não têm fim”, disse.
Confira a entrevista na íntegra:
Seu novo livro, Rio sangue, aborda as raízes violentas do Brasil e traz um enredo em que os acontecimentos históricos desempenham um papel importante. Como foi o processo de pesquisa para escrever a obra?
Nasci e vivi num sertão que permaneceu imutável até cerca dos anos de 1950. A marca dessa civilização do couro, como ficaram conhecidos os criadores de rebanhos de gado, era a oralidade. Ouvi histórias acontecidas durante esse período de formação do mundo sertanejo, em que se misturavam relatos indígenas, africanos e ibéricos. Guardava muitos relatos na memória e só precisei buscar nos livros e arquivos mais dados sobre eles. Um feminicídio inaugural desse tempo, cheio de nuances violentas e mistérios, marcou-me. Sempre retorno ao crime nos meus livros. Em Rio sangue, esse é o fio narrativo que atravessa o romance e, em volta dessa história, muitas outras surgem, nas vozes de diversos narradores.
Acredita que, de certa forma, a violência sempre marcou a história do país?
Em Rio sangue, desenvolvo o enredo de maneira a que o leitor conclua que na colonização brasileira está a causa de nossa violência atual. Que as sementes de desigualdade social, racismo, patriarcalismo, misoginia, etc. foram todas plantadas na conquista e desde então vicejam e não têm fim.
Embora o enredo do novo livro gire em torno das ribeiras do Jaguaribe, no Ceará, há passagens por outros lugares do Brasil, de Portugal e da África. Você é um escritor que define todas as ambientações de uma história antes de escrevê-la ou essas escolhas aparecem ao longo do processo de escrita?
Costumo definir geografias, estudá-las, explorá-las, mas os personagens terminam, eles mesmos, cobrando novos espaços. A África é muito presente no livro. Como se trata de um enredo com variados personagens e polifonia de vozes, os lugares vão surgindo da memória de quem narra. Ter muitos narradores e vozes desiguais, quebras de ritmo e distanciamento da narrativa principal é linguagem e técnica. Pode ser que alguém se queixe, mas desejei criar uma certa desordem de Babel, deixar o leitor atônito como no Mahabharata, nas Mil e uma noites e na Bíblia.
Os irmãos José e João são bem diferentes entre si. Enquanto o primeiro é silencioso e contido, o segundo é atrevido e violento. Em que medida essas contraposições também simbolizam o povo brasileiro?
Na verdade, são dois irmãos e uma irmã, Ana Maria, que embora seja silenciosa, marca uma atitude nova, um comportamento diferente no mundo que está sendo conquistado. O povo brasileiro é múltiplo, não apenas dual. Vivemos um momento em que essa dualidade extrema se manifestou na política e nas relações humanas. É lamentável porque nos encaminhamos ao caos. Divididos em facções, lulistas e bolsonaristas, extrema direita e esquerda, evangélicos e católicos perdemos o melhor da nossa cultura e do nosso caráter social, a multiplicidade.
Rio sangue traz diferentes vozes e perspectivas. Muitas dessas personagens recorrem ao tom confessional, o que aproxima leitores e leitoras, às vezes como cúmplices, às vezes como testemunhas. Sua atuação na medicina, com contato direto com os mais diversos tipos de pessoas, contribui para encontrar a voz de cada personagem em suas obras ficcionais?
Vivi escutando pessoas, tentando de alguma maneira ordenar histórias e encontrar soluções para elas. Com dez anos de idade substituí minha mãe no ofício de escrever cartas para mulheres e homens que não sabiam escrever. Ouvia longos relatos e depois punha no papel, da forma mais fiel e eficaz. Como médico, durante cinquenta anos me ocupei escrevendo histórias e queixas de pacientes, tentando ordená-las até chegar a um diagnóstico e assim poder ajudar aos que me procuravam. Quando me aposentei da medicina, disse: nunca mais escreverei porque não disponho mais de um mar de histórias. Mas ele se guardou, as vozes permaneceram vivas dentro de mim. Bastava acioná-las. Aprendi que todas as pessoas desejam falar e ser ouvidas. Os muitos personagens de Rio sangue queriam falar qualquer coisa, por mais confusa e insignificante que fosse a sua fala. Deixei que falassem.
Um feminicídio que ocorreu no sertão dos Inhamuns está entre os acontecimentos reais que influenciaram o surgimento de Rio sangue. Como essa história chegou a você? Acredita que abordá-la na literatura é uma forma de se fazer justiça?
Em parte já respondi essa pergunta. Jurei que me vingaria desse feminicídio que ouvi relatado tantas vezes. Minha vingança foi narrar exaustivamente em quase tudo o que escrevi. Em Rio sangue, poderia ter me vingado do crime cometido, as pessoas que leram o romance antes de sair publicado me pediram que eu matasse o criminoso da forma mais cruel. Mas preferi fazer justiça e senti-me sereno com isso.
O escritor Marcelino Freire costuma dizer que escrever é se vingar. Também acredita nisso?
Mas também pode ser uma forma de se aplacar, de fazer justiça.
Assim como Rio sangue, a literatura brasileira tem narradores bem diversos na atualidade. Acredita que ela passa por um bom momento? Quais novos escritores ou novas escritoras têm chamado a sua atenção?
Há muita gente escrevendo, sobretudo jovens. Leio alguns lançamentos, mas não disponho de tempo para ler todos que desejo. Li Daniela Sawitzki, Carol Rodrigues e Luciany Aparecida. Gosto de duas cearenses, Socorro Acioli e Tercia Montenegro. Leio com gosto Wellington de Melo, Sidney Rocha, Nivaldo Tenório, José Luis Passos e Cristhiano Aguiar. Leio a poesia de Cida Pedrosa e de José Inácio Vieira de Melo. E leio tudo que Marcelo Ferroni e Rodrigo Lacerda publicam.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá), Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e De repente nenhum som (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.