Roosevelt e Biden: para além de um “touro de ouro”
O governo norte-americano mantém uma espécie de política industrial constante, que vincula o fortalecimento do seu mercado interno e a organização do processo econômico
O presidente dos EUA, Joe Biden, sancionou em novembro o plano de recuperação da economia norte-americana, o “Bipartisan Infrastructure Deal”, cuja base original é o “Infrastructure Investment and Jobs Act”. O objetivo estabelecido é desafiador e visa o fortalecimento do mercado interno estadunidense, com investimentos na ordem de US $550 bilhões. Com o projeto, pretende-se reconstruir estradas, pontes e ferrovias, ampliar o acesso à água potável, garantir acesso amplo à internet de alta velocidade, enfrentar a crise climática, promover a justiça ambiental e investir em comunidades abandonadas. Por outro ângulo, o plano mira aliviar as pressões inflacionárias e fortalecer as cadeias de abastecimento do país. Acredita-se que ele impulsionará a economia com a criação de empregos sindicais bem remunerados e promoverá o crescimento sustentável e equitativo. A expectativa é de que, nos próximos dez anos, sejam criadas até 1,5 milhão de vagas de emprego[1]. A reforma deve ser completada com o “American Families Plan”, que ainda aguarda aval do Congresso.
Um olhar atento ao movimento ilustra que ele não é novo. Ao menos desde Alexander Hamilton, os norte-americanos sabem que uma (jovem) república precisa investir em industrialização se quiser escapar da dependência econômica. Para os EUA, assim como para a Europa, China ou Rússia, a industrialização via proteção e incentivo do mercado interno é matéria de soberania econômica. Essas nações entenderam que a economia nacional não é apenas um mecanismo de aumento da riqueza individual ou coletiva, mas uma forma de poder. Para elas, o poder de criar riqueza é mais importante do que a riqueza em si.
A referida visão não está subentendida no novo projeto dos EUA. Ao tratar do plano, Biden a invoca explicitamente, fazendo referências ao ex-presidente Franklin Delano Roosevelt (FDR) e ao seu programa econômico New Deal (1933-1937). A despeito disso, é nas consequências dos esforços da 2.ª Guerra que a inspiração de Biden deve ser política e legalmente buscada. Se o New Deal com as suas reformas constitucionais já indicava alguma mudança, foi no período de guerra que a transformação da sociedade norte-americana definitivamente decolou. Os esforços bélicos espalharam-se para os padrões da vida civil, promovendo avanços tecnológicos e de organização empresarial nas décadas seguintes. Sobretudo, a experiência demonstrou, na prática, como o planejamento econômico pode ser útil para alcançar objetivos que o mercado, por si só, é incapaz de promover.
Roosevelt logo entendeu que era necessário mais do que a oferta e demanda smithiana para tornar uma economia eficiente. Ele não apenas alimentou esperanças de que o planejamento beligerante se tornasse um projeto permanente de melhorias sociais e de preservação de oferta de emprego, como colocou isso em exercício. Já em 1945, temendo um retorno à ainda recente Grande Depressão, o ex-presidente propôs o “Full Employament Act”. Paralelamente, o governo destacou o “Science, the Endless Frontier”, visando que o país continuasse os seus investimentos em ciência e tecnologia, projeto que acabou inspirando a criação do “National Sciences Fundation”.
Muito embora a ideia de planejamento idealizada Roosevelt tenha sido mitigada após a sua morte, ocorrida em abril de 1945, a preservação do mercado interno estadunidense nunca foi abandonada. Aqui, entre outras, podemos lembrar das seguintes legislações: (i) o “Defense Production Act”, de 1950, e a sua Seção 2, que posicionou o Estado norte-americano como o maior consumidor industrial da sua própria produção[2]; (ii) a criação do “Committee on Foreign Investment in the United States” (CFIUS), em 1975, cuja atuação se tornou visível a partir da década de 1980 e foi particularmente incrementada nos últimos anos, frente à ascensão econômica chinesa[3]; (iii) o Trade Expansion Act, de 1962 e o US Trade Act, que o substituiu em seguida. Esta última medida potencializou o poder extraterritorial dos EUA[4]. Com ela, o mercado interno passou a ser protegido por investidas para além das fronteiras. A legislação, por exemplo, foi utilizada na disputa que ocorreu em torno da política brasileira de informática, na década de 1980, contribuindo para a exclusão do art. 171 da Constituição Federal brasileira de 1988.
O governo norte-americano mantém uma espécie de política industrial constante, que vincula o fortalecimento do seu mercado interno e a organização do processo econômico. Adota-se um modelo de planejamento de defesa, cujo enfoque é expandir a comercialização em setores estratégicos, tais como indústria aeroespacial, biotecnologia e internet, custe o que custar. Biden sabe dos benefícios desse medicamento e está aumentando a dose. A pandemia, a indicação da alta inflacionária, a disrupção tecnológica e os desafios ambientais, todos esses fatores vêm a calhar para a legitimação da “nova economia”, porém, não devem ser vistos como a sua causa principal. Aumentar o dirigismo econômico e proteger as indústrias vitais já apareciam como medidas inevitáveis mesmo antes do contexto pandêmico. Agora, tais medidas apenas passaram a ser vistas como propostas não tão indecorosas para a nação do “livre mercado”.
Para melhor entender o recente programa norte-americano é preciso dar um passo atrás e olhar para a Executive Order 14017, de fevereiro de 2021. A Casa Branca endereçou o documento ao National Security Council e ao National Economy Council, solicitando que as duas repartições realizassem, em 100 dias, um estudo a respeito das vulnerabilidades de abastecimento do país. Os resultados da pesquisa foram publicados em junho de 2021, sob o título: “Building Resilient Supply Chains, Revitalizing American Manufacturing, and Forestering Broad-Based Growth: 100-Day Reviews Under Executive Order 14017”.
O relatório elege quatro setores industriais como estratégicos em termos de abastecimento interno: de semicondutores, de baterias avançadas de larga-capacidade (como aquelas usadas em carros elétricos), o farmacêutico e o de minérios estratégicos – tais como os usados em tecnologia para a produção de celulares, LED e câmeras eletrônicas. Para combater o avanço chinês e coreano, que lideram o processamento de alguns dos insumos estratégicos desses setores, os autores do relatório indicam um caminho só: restaurar a liderança americana em tecnologia e produção geral.
Segundo a pesquisa, quando a industrialização vai para fora do país, a inovação segue o mesmo rumo. A partir disso, o estudo sugere que o governo atue nesses setores, promovendo-os diretamente. O relatório propõe auxílios de US$ 50 bilhões para a indústria nacional de semicondutores, US$ 20 bilhões para o setor de fabricação de bateria para veículos – considerando o abastecimento da frota federal e de ônibus –; bem como um impulso extra para o setor farmacêutico, devendo ser utilizado o Defense Production Act, caso necessário.
O “Bipartisan Infrastructure Deal” é, sem dúvida, uma providência nacionalista e que coloca um desafio gigantesco em acordos internacionais, notadamente naqueles em que os EUA assumiram obrigações de renúncia de subsídios governamentais e de condenação de ações que tencionem a proteção do seu mercado interno – como, por exemplo, os realizados junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). Está também muito claro que a mudança de rumo definitivamente escancara uma nova forma de globalização e (por que não?) de capitalismo, mais preocupada com a crescente competição econômica extraterritorial em termos tecnológicos.
O plano norte-americano, evidentemente, não está sozinho nesse jogo. Há uma dança das cadeiras na economia global e os países têm se esforçado para fortalecer a sua posição. Cada vez mais a China adota uma versão arrojada do mercantilismo que impulsionou Taiwan, Coréia do Sul e Japão, demonstrando que controlar a mão invisível do mercado e mostrar o dedo do meio para o liberalismo é mais do que uma alternativa. Em 2015, o Governo chinês colocou em prática o plano “Made in China 2025” ou “China Manufactured 2025”, que tem como objetivo gastar tudo o que for necessário para, em 2025, o país se tornar o maior produtor industrial do mundo. O projeto envolve extensivos subsídios estatais, barreiras de importação e (muita) coordenação econômica. Além disso, o país avança a passos largos no campo energético, redefinindo o balanço entre oferta e demanda nesse setor.
Atenta ao contexto, a Europa também vem dando os seus sinais. No início de 2019, a União Europeia (UE) publicou o “Manifeste franco-allemand pour une politique industrielle européenne adaptée au XXIe siècle”. O documento é uma reação ao veto da Comissão Europeia (CE) acerca da fusão entre Siemens e Alstom[5]. Após o manifesto e, ouvidos os Estados-Membros, em março de 2019, a CE, por meio do Centro de Estratégia Política, lançou o “EU Industrial Policy after Siemens-Alstom: Finding a new balance between openness and protection”. No material, a Comissão propõe adotar diferentes dimensões para uma política industrial no século XXI, com o aumento da proteção de tecnologia e outros ativos estratégicos[6].
Em 2020, a União Europeia adotou o “Foreign Investment Screening Mechanism” (EU FDI). A medida deu seguimento ao Regulamento (EU) 2019/452, de março de 2019, que estabeleceu um regime de análise dos investimentos estrangeiros diretos no mercado comum[7]. A base do FDI instituiu que a CE e os Estados-Membros podem coordenar suas ações sobre investimentos estrangeiros. O objetivo da medida é proteger os “interesses estratégicos da União Europeia” e garantir a sua “autonomia”[8]. Entre outras finalidades, a medida permite que a CE emita pareceres a respeito de investimentos que sejam considerados “ameaças” para a segurança ou à ordem pública, ou, ainda, quando um investimento tiver o potencial de comprometer algum projeto de interesse (econômico) para a Comunidade[9].
Em 2020 também foi publicado o “White paper on levelling the Playing Field as Regards Foreign Subsidies”. O material apresenta uma estratégia a ser aprofundada sobre “distorções no mercado interno” europeu. Propõe-se a criação de um órgão semelhante ao CFIUS norte-americano[10]. No mesmo ano de 2020, a UE divulgou um pacote de medidas endereçado à “nova política industrial”. A proposta busca garantir a “soberania tecnológica” do mercado europeu. Entre outras práticas, o pacote sugere alterações no âmbito da concorrência e dos investimentos estrangeiros[11].
A esta altura, ainda que rapidamente, uma comparação com o Brasil é inevitável. Há décadas o país não tem uma política industrial adequada às suas particularidades socioeconômicas. Em realidade, enfrenta uma desindustrialização aguda desde 1980[12]. Nesse processo, setores estratégicos foram colocados à deriva e/ou alienados, impactando diretamente no abastecimento do mercado interno. A pesquisa científica, fundamental para qualquer perspectiva de desenvolvimento, está sucateada. Como se não bastasse, no plano legislativo, em nome de uma suposta liberdade econômica (por ingenuidade ou pura perversidade), importantes mecanismos legais que serviam para a tutela do mercado interno foram solapados, com o apoio dos próprios setores industriais[13]. Considerando o atual contexto global, não é difícil a conclusão de que o Brasil não detém instrumentos que possibilitem a sua inserção qualificada na economia internacional.
Ao que tudo indica, as nossas “referências” importadas poderiam ser bem melhores do que apenas um touro de ouro (que, na verdade, era de isopor).
José Augusto Medeiros é doutor em Direito Econômico e Economia Política pela USP e pesquisador visitante no Institut d’études politiques de Paris, Sciences Po Law School
[1] Estas informações podem ser verificadas aqui: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/11/06/fact-sheet-the-bipartisan-infrastructure-deal/
[2] MCCRAW, Thomas K. Government, big business, and the wealth of nations. In: TAKASHI, Hikino et al. Big business and the wealth of nations. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 522-545.
[3] Verificar: CFIUS Reports and Tables. U. S. Department of the Treasury. Disponível em: <https://home.treasury.gov/policy-issues/international/the-committee-on-foreign-investment-in-the-united-states-cfius/cfius-reports-and-tables>.
[4] ARSLANIAN, Regis Percy. O recurso à seção 301 da legislação de comércio norte-americana e a aplicação dos seus dispositivos contra o Brasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 1994. (Coleção Relações Internacionais; 23).
[5] MANIFESTE franco-allemand pour une politique industrielle adaptée au XXIe siècle. Représentation Permanente de la France Auprès de L’Union Européenne. Disponível em: <https://www.ue.delegfrance.org/manifeste-franco-allemand-pour-une>.
[6] EU INDUSTRIAL policy after Siemens-Alstom. Publications Office of the European Union. Disponível em: <https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/03fb102b-10e2-11ea-8c1f-01aa75ed71a1>.
[7] REGULAMENTO (UE) 2019/452 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de março de 2019. Jornal Oficial da União Europeia. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32019R0452&from=EN>.
[8] Sobre o lançamento da medida, o vice-presidente executivo da Comissão Europeia do Comércio, afirmou que a “The EU is and will remain open to foreign investment. But this openness is not unconditional. To respond to today’s economic challenges, safeguard key European assets and protect collective security, EU Member States and the Commission need to be working closely together. If we want to achieve an open strategic autonomy, having an efficient EU-wide investment screening cooperation is essential. We are now well equipped for that”. Conforme consta no site: EU FOREIGN investment screening mechanism becomes fully operational. European Union. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_1867>.
[9] Ibid. As pressões dos Estados membros para a adoção de medidas para o controle de investimento estrangeiro teriam aumentado em 2016, com a tentativa de aquisição da empresa alemã Kuka, que opera no desenvolvimento de tecnologia 4.0 para o setor fabril. A impossibilidade de uma atuação mais forte do governo alemão teria decorrido da ausência de mecanismos jurídicos. O movimento de proteção derivou de uma consciência “techno-nacionalista”. Para uma contextualização das discussões da época, conferir: https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/wirtschaftspolitik/zu-merkel-besuch-in-china-glaubt-midea-an-kuka-uebernahme-14283962.html; https://www.sueddeutsche.de/wirtschaft/kuka-aussenwirtschaftsgesetz-china-1.4256394 e https://www.faz.net/aktuell/wirtschaft/china-warnt-vor-politisierung-von-kuka-uebernahme-14265619.html.
[10] O material está disponível no seguinte site: Comissão adota Livro Branco sobre subvenções estrangeiras no mercado único. Comissão Europeia. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_20_1070>.
[11] Conforme consta em: Preparar as empresas europeias para o futuro: Uma nova estratégia industrial para uma Europa competitiva a nível mundial, ecológica e digital. Comissão Europeia. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_416>.
[12] Segundo os dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial Unido, entre 2005 e 2020, o Brasil passou do 9.º para o 14.º lugar no ranking da industrialização global. Um recente levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), para o jornal O Estado de São Paulo, indica que, entre 2015 e 2020, o país perdeu 36,6 mil indústrias, incluindo a Ford e a Mercedes-Benz.
[13] O Brasil contava com medidas semelhantes às presentes no Defense Production Act, de 1950, que possibilitavam ao Governo lidar com as situações de crise. Neste sentido, pode ser citada a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, elaborada no Governo João Goulart. O objetivo da legislação era regular a atuação governamental para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo. Conforme observa Gilberto Bercovici, em 2019, a lei de 1962 foi revogada pela chamada “Lei da Liberdade Econômica”, a Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Isso teria ocorrido por motivos puramente ideológicos. Com a revogação, perderam-se os parâmetros legais para a atuação do Estado em momentos de graves crises econômicas e sociais. Sobre o assunto, conferir.: BERCOVICI, Gilberto. COVID-19, o Direito Econômico e o Complexo Industrial da Saúde. In: Walfrido Warde; Rafael Valim. (Org.). As Consequências da COVID-19 no Direito Brasileiro. 1ed. São Paulo: Contracorrente, 2020, v., p. 239-262. A pretensa modernização da reforma trabalhista de 2019 é outro exemplo.