Ruínas, mágoas e medo
Já não se ouvem os tiros e as lagartas dos tanques. Mas, sete anos após o fim da guerra, o país se debate com produção devastada, ódio aos políticos pró-Rússia e medo da oposição terroristaAnne Nivat
Quase sete anos depois do começo da segunda campanha militar russa na Tchetchnia, ainda é arriscado penetrar, como jornalista, no território onde se desenrola a “operação anti-terrorista” [1]. A partir da Ingúchia, para chegar a esta república “normalizada”, onde as conseqüências da guerra fazem com que os horrores quotidianos pareçam “normais”, será preciso tomar o caminho pelo leste — não pela estrada principal, onde fica o famoso posto de controle Kavkaz, mas por outros atalhos, sempre tão tristes e lamacentos.
Antes, no avião que partiu de Moscou, Aza, uma bela inguche de 50 anos, cabelos castanhos bem cortados, cuidadosamente maquiada, conta que vai se encontrar com a família em Sleptsovski (na fronteira com a Tchetchnia), para o casamento de sua sobrinha de 18 anos. Em 1994, às vésperas da primeira campanha militar, Aza havia trocado Grozny por Moscou. Ela não voltou mais: “Não quero ver a cidade esburacada, esfarrapada, deprimida, e manchar as minhas lembranças da infância e da vida de estudante.” Ela enxuga uma lágrima. “Como puderam deixar que esta guerra envenenasse tudo, até as nossas relações com um “povo irmão”? Quando eu vejo esse Ramzan Kadyrov [2] se pavoneando, vestido de jogging no Kremlin ao lado de Putin, quase morro de vergonha! Porque o escolheram? É um incompetente, a estupidez está estampada na sua cara!”
Assim como muitos inguches, Aza sempre teve uma queda por Ruslan Aushev, presidente da Ingúchia até ser exonerado em 2003. Este antigo militar havia tentado conservar boas relações com Aslan Maskhadov, o presidente independentista tchecheno assassinado pelas forças russas, em março de 2005. “Todas essas pessoas agora pertencem ao passado. Quanta sujeira!”, lamenta-se. “Mas o mais importante: nenhuma das questões colocadas pelos independentistas foi resolvida com essa guerra. O que vai acontecer agora?” Em suspenso, esta questão persegue todos os que ficaram no território exangue, onde ainda é difícil, quase sete anos mais tarde, encontrar eletricidade ou água corrente.
Na mão dos pró-russos, os melhores empregos
Em Sleptsovski, Muslim, 28 anos, quarto de uma família de sete filhos [3], ainda mora com seus pais, depois de uma “escapadela” ao Cazaquistão, onde trabalhou em canteiros de obra. Depois que sua mãe suplicou-lhe para voltar, ele tenta ganhar um pouco de dinheiro, mas está contrariado. Muslim comprou em segunda mão, de um antigo campeão de boxe checheno exilado em Moscou, cinco máquinas caça-níqueis. Elas foram parar na Ingúchia, depois que Kadyrov proibiu as salas de jogos no território “tchetchno”. Muslim esforça-se para rentabilizar sua “sala de jogos”, mas se queixa da concorrência. Em idade de constituir família, ele ainda não encontrou sua “alma gêmea”, para grande descontentamento de seus pais, que condicionam a este casamento a sua eventual partida para a Polônia, para juntar-se ao irmão.
Em compensação Ahmed, um de seus amigos, vai se casar no começo de maio. E tem intenção de se mudar para Grozny com a esposa, que tem 22 anos. Ouvindo-o parece até que a capital tchetchna recuperou seu status de “grande cidade”… Ele espera encontrar trabalho graças a um tio, empregado da administração pró-russa, e tem a intenção de trocar seu Lada último modelo, comprado novo por 10 mil dólares, por um apartamento de dois cômodos no centro da cidade. Muslin sabe: apenas aqueles que possuem este tipo de “contatos” podem encontrar trabalho em Grozny. Ele poderia também trabalhar para os kadyrovtsy, “grandes braços” que formam a sociedade em torno do primeiro ministro Kadyrov, mas não tem nenhuma vontade. Anzor, seu irmão mais velho, sobrevive graças a trambiques ? ele paga, por exemplo, para que um médico lhe dê um “certificado de invalidez”, que lhe dá direito a receber uma pequena pensão. “Custa 800 dólares, mas depois dá pra conseguir 30 dólares por mês pelo resto da vida…”
Uma vez passada a fronteira tchetchna, parte-sede microônibus para Grozny. Neva. No rádio, os habituais hits russos. Em todos os carros ouve-se música, como que para esquecer e se alienar. Depois do surgimento dos telefones celulares, há mais ou menos dois anos, todo mundo tem um. Mas todos preferem ser chamados do que fazer chamadas, já que estas custam muito caro, pois a Tchetchnia é considerada “zona de bloqueio”. Suspeita-se que a Megafon, única companhia que tem direitos de transmissão na república, tenha ligações com os serviços secretos. Às vezes, sua sede em Grozny é palco de manifestações de consumidores descontentes, que gritam “Megafon nos rouba!” De tempos em tempos, da noite para o dia, os créditos de alguns clientes desaparecem…
O vermelho acende, os motoristas temem parar
Ao longo da estrada, vê-se postos de gasolina novinhos em folha da marca Leader, pertencente à família Kadyrov. Casas elegantes de alvenaria disputam espaço com construções crivadas de balas, paredes destruídas e telhado despedaçado. Faixas, placas de indicação ou outdoors aparecem nos grandes cruzamentos. Na entrada da capital, o imenso letreiro escrito “Grozny” foi refeito e recolocado. Na cidade, os semáforos funcionam, apesar de os motoristas ainda hesitarem em parar.
A praça da Minutka oferece ainda o mesmo espetáculo de gigantescas ruínas de concreto. Aqui, nada foi reconstruído. Depois do túnel, entramos na avenida da Vitória (antes avenida Lenin). À direita, uma estátua em tamanho natural sobre um gigantesco pedestal de mármore vermelho: é Ahmed Kadyrov de papakha (a tradicional touca de pele), com um terço na mão direita. Dois militares armados vigiam o monumento vinte e quatro horas por dia. Depois de passar a igreja ortodoxa à direita (um dos primeiros edifícios religiosos a ser reconstruídos), chegamos ao centro de Grozny. Alí encontra-se o bazar, em plena atividade ao meio-dia. Ainda desaprumado, como os imóveis atingidos, sua parte coberta foi parcialmente recontruída em madeira compensada, mas os comerciantes continuam a estender suas bancas para fora, ao redor. Depois de Sleptsovski, passamos por onze postos de controle, três vezes menos do que há dois anos.
Nas ruas, muitos jovens, quase todos com menos de vinte anos. Boa parte deles havia deixado o país no auge da guerra, sob os bombardeios russos do inverno de 1999-2000. Com o fim do toque de recolher, pode-se agora circular à noite, mas ainda é arriscado. Entrevistados nas pequenas cafeterias onde se pode comer um prato de laghman (macarrão com legumes e carne) por 30 rublos (menos de 1 euro), os estudantes dizem apreciar Kadyrov, com o qual alguns deles se gabam de ter tido uma conversa, filmada pela televisão local. “Ele é franco, direto e pronto de verdade para nos ajudar”, afirma um deles. “Nós precisávamos de um ônibus para ir das nossas vilas até a universidade. Ramzan imediatamente deu as ordens e no dia seguinte nosso problema estava resolvido”.
A maior parte destes jovens não tem vontade de deixar a república devastada, mesmo sentindo que “a guerra não terminou” e que “os boievikis (combatentes chechenos) podem voltar”. Aslan, 17 anos, acaba de confessar seu sonho: trabalhar para o MVD, o ministério do interior, “para poder portar armas legalmente e ter um documento que me permita andar livremente por todo o território”. Sua irmã Madina, dez anos mais velha, vira os olhos para cima, mas Aslan continua: “Eu não tenho escolha… Ou então, eu gostaria de ser um negociante e enriquecer. Uma coisa é certa: estudar não serve pra nada. É muito mais caro, o nível é péssimo e não há nenhum mercado”.
Avenidas e instituições de fachada
À noite, Grozny não ecoa mais os habituais ruídos de guerra; onipresentes entre 2000 e 2004, as fileiras de carros blindados do cortejo militar, frequentemente de muitos quilômetros, são agora mais raras. Não se fala mais tanto das zatchistki, as terríveis operações de “limpeza”. Mas a medalha tem seu reverso: a república vive o momento dos acertos de contas — desta vez entre os tchetchnos, mas calorosamente orquestrado por Moscou. E se a capital parece novamente atarefada, isso não passa de fachada, assim como a “reconstrução” da avenida da Vitória e a classe política novamente eleita, obcecada pela obrigação de fidelidade ao chefe pro-russo, desconfiada como “Stalin e seu tempo”, sublinham os tchetchnos.
Diretora da ONG Eco da Guerra, Zaïnap Gasheva divide seu tempo entre Grozny e Moscou. Em abril ela terminou a construção de um orfanato, graças a um apoio vindo da Alemanha. Está muito impressionada por causa de Rachid, 33 anos, um jovem ao qual ela pediu que pintasse as duas escadas de passagem do edifício: “Eu queria alguma coisa alegre. Mas ele pintou uma coisa muito triste e me explicou que não poderia fazer diferente, pois este era o reflexo de sua alma. Insistindo, consegui fazer com que refizesse o trabalho. Ele me confessou ter esperanças no fim deste caos, mas disse duvidar que outros políticos, menos corruptos, cheguem ao poder”.
No pátio do orfanato, onde chegou de bicicleta, depois de algumas horas de discussão, Rachid se entrega parcialmente, ilustrando a profundidade da depressão na qual estão mergulhadas as pessoas de sua idade: “Estou deprimido com tudo o que se passa no meu país. Nada está limpo, todo mundo sofre. A religião é meu refúgio. Mas não na mesquita da esquina, onde cada um vai para se queixar de seus problemas: de sua criação, de sua aposentadoria ou de suas doenças. Vamos na casa uns dos outros….” Rachid e seus amigos se viram como podem para arranjar suas sessões de reza. “Nós não temos mais respeito pelos mais velhos, por que eles não o tem para consigo mesmos: eles estão envolvidos demais na política. Militarmente, a guerra sem dúvida acabou — mas ela se prolonga com uma pressão psicológica constante.” Ele também pensou em trabalhar para os kadyrovtsy, mas recuou com medo de ser mandado “para fora”. Também não quer deixar sua pátria: “Se todo mundo sair, quem vai sobrar?”
Certamente o que chama atenção são alguns sinais de mudança: retomada de uma certa atividade econômica (bazar, transporte público, administrações, canteiros de obras na cidade, cafés e restaurantes) e normalização política (referendo sobre a Constituição, eleições presidenciais, eleições parlamentares). Mas, por detrás dessas aparências, o espectro da guerra permanece presente no ânimo de todos. Inclusive forjou um novo tipo de relação entre os indivíduos, baseada na desconfiança. “Antes contávamos um pouco uns com os outros. Hoje, isso acabou”, lamenta Gasheva. “As pessoas denunciam-se mutuamente para serem bem vistas por personagens influentes no governo, ou para obter uma bobagem qualquer. Mas vivem com medo, dormindo e acordando envergonhadas por este sentimento. O que acontecerá a amanhã? Ninguém sabe ao certo. O primeiro ministro Kadyrov terá poder por muito tempo? Será assassinado como seu pai [4]? Em que momento os boïevikis contra-atacarão e, neste caso, retomarão o poder? Todos relutam em se envolver demais politicamente, para não correr o risco de sofrer represálias no caso de um revertério. Na verdade”, conclui Gasheva, “ninguém acredita na estabilidade deste regime apadrinhado por Moscou”.
As questões colocadas pela guerra não foram resolvidas. Pior ainda: elas se tornaram tabus. Quem, por exemplo, ousa relembrar que o primeiro chefe de estado tchetchno chamava-se Djokhar Dudaev [