Salafistas contra a Irmandade Muçulmana
O termo “islâmicos” reúne, sob o mesmo nome, Al-Qaeda, Hamas, Irmandade Muçulmana e Hezbollah, escondendo profundas divergências entre esses movimentos, ilustradas pelo reforço das correntes salafistas, adeptas da leitura literal da religião e do apoio ao poder
Três posturas religiosas estruturam a cena política árabe desde os anos 1970: os sufistas eram conhecidos por votar pelo regime no poder; a Irmandade Muçulmana pronunciava-se contra; e os salafistas, considerando que as eleições constituíam um fator de divisão da comunidade, mantinham-se longe das urnas.
Mas essas linhas evoluíram: enquanto alguns salafistas tomaram o caminho das cabines de votação (em particular na Arábia Saudita, nas eleições municipais de 2005), sufistas, no Iraque ou no Paquistão, (re)tomaram o da oposição, inclusive armada. Já a Irmandade Muçulmana, movimento fundado em 1928 por Hassan al-Banna, no Egito, conseguiu formar e mobilizar tropas eleitorais que, pouco a pouco, foram convencidas a inscrever sua abordagem no quadro do parlamentarismo, tornando-se capazes de mobilizar maiorias.
A Irmandade Muçulmana, que encarnou na política o primeiro ciclo reativo dos “islâmicos” contemporâneos, e continua, especialmente na Palestina, Egito e no Magreb, a ocupar um lugar central no espectro das oposições, deve contar cada vez mais com a concorrência dita “salafista”.1 E o menos contestável dos traços compartilhados por aqueles que reúnem seu “salafismo” é a necessidade de se distanciar do legado dos Ikhwan Muflisin (“irmandade falida”).
O credo desses “novos” da mobilização islamita não tem nada de propriamente… novo, embora sua expressão, no coração do mundo árabe ou nas sociedades ocidentais nas quais se implantou, possa diferir. Seria impreciso representar os salafistas como a geração que sucedeu à da Irmandade Muçulmana, da Frente Islâmica de Salvação (FIS) argelina, ou do Al Adl wal Ihsan (Justiça e Caridade) marroquino. Os salafistas, na verdade, já existiam antes da Irmandade Muçulmana, principalmente no Egito e na Arábia Saudita.2E foi, sem dúvida, a mobilização desta que, destacando-se nos anos 1930 do “tronco” islamita, conseguiu ofuscar até a década de 1990 seus concorrentes salafistas, em termos de popularidade e visibilidade política.
Evoluções doutrinárias
Para alcançar as portas do poder, a Irmandade Muçulmana lançou e assumiu profundas evoluções doutrinárias – utilizando referências estrangeiras em uma leitura literal do pensamento islâmico clássico, como a Constituição e, progressivamente, a democracia. Como era de esperar, essas reformas provocaram tensões e divisões internas, deixando assim o campo livre para outros registros de contestação. E quanto mais a geração da Irmandade ganha importância no campo legalista, mais enfrenta a reação salafista, que denuncia essas “modernizações” como “concessões”.
Do ponto de vista dos salafistas, a geração da Irmandade Muçulmana, que envelhece, pode na melhor das hipóteses levar o crédito por ter imposto aos regimes considerados laicos, os quais contestava (Egito, Síria etc.), o respeito às exigências de certa reislamização simbólica. E ter permitido medir a profundidade da ancoragem social das mobilizações “religiosas” nessa região do mundo: quase todos os regimes retomaram exigências desses movimentos – quando cessou sua escalada, sobretudo em termos de censura.
Os salafistas agarram-se mais facilmente ao monopólio contestatório da Irmandade Muçulmana na medida que, diante da coalizão do autoritarismo árabe e da “comunidade internacional”, a estratégia dos “irmãos”, por enquanto, trouxe poucos frutos políticos. Mas, denunciando suas concessões à laicidade ou à “democracia”, o egípcio Ayman al-Zawahiri, ideólogo da Al-Qaeda, demonstra paradoxalmente melhor que ninguém que a Irmandade foi o vetor de uma forma de “modernização” do pensamento político de sua sociedade – uma transformação mais bem aceita social e culturalmente que a das elites laicas. Portanto, parte da ruptura salafista com a tradição da Irmandade Muçulmana consiste em rejeitar algumas concepções políticas ocidentais, islamizadas por ela: formação de partidos ou estruturas organizacionais, participação em eleições, acesso das mulheres ao espaço político ou profissional.3
Os salafistas enfatizam a importância das fontes primárias – o Corão e a Suna4 do profeta Maomé. Mas querem “romper com o conhecimento e experiência das escolas de jurisprudência sunitas (hanafismo, malequismo, hanbalismo, chafeísmo) em matéria teológica” – portanto, mais que proibir a interpretação que dá à norma religiosa expressão social e política concreta, reivindicar o direito de defini-la, até mesmo garantir seu monopólio.5
Insistindo no princípio da unicidade divina, os salafistas denunciam qualquer sacralização de mediadores humanos entre os crentes e seu criador, ridícula “concorrência” humana com Deus. O constante recurso ao detalhadíssimo corpus dos hadith (palavras) do Profeta, que deve conter tudo aquilo que o crente precisa para esclarecer sua leitura da revelação, tem por objetivo justamente protegê-lo contra qualquer interferência entre ele e seu Deus. Assim, o culto de santos, a veneração de sheiks sufistas ou imãs xiitas considerados infalíveis, e mesmo o respeito a sábios exegetas “misturando sua voz à de Deus”, tudo isso é denunciado como atentado ao princípio essencial da unicidade de Deus.
De resto, o movimento salafista aumenta esmagadoramente as fileiras das tropas conhecidas como “pietistas” ou “quietistas”,6que pregam obediência a qualquer governante, mesmo “corrupto e autocrático”, desde que ele não recuse dizer-se muçulmano. Trata-se de evitar o pior dos danos: fitna,isto é, atentar contra a unidade da comunidade de crentes. Atendendo ao pedido dos ulemás próximos ao regime saudita, um bom número de salafistas destaca-se, assim, da Irmandade Muçulmana, despindo sua religiosidade de qualquer expressão contestatória. Desse modo, do Iêmen ao Egito ou ao Marrocos, os salafistas, que em muitos aspectos são menos modernistas que a Irmandade, paradoxalmente conseguiram os favores de regimes considerados modernizadores, os quais viram nessa abstinência eleitoral uma ferramenta de enfraquecimento de sua oposição.
A cota de jihadistas
Quando submetidos a repressão, em alguns Estados do mundo árabe, ou estigmatização social e religiosa, no Ocidente, os salafistas também fornecem sua cota de jihadistas candidatos à ação direta contra as elites nacionais ou os senhores da ordem mundial – a exemplo do teórico egípcio Sayyid Qutb,7 que radicalizou as teses da Irmandade Muçulmana na década de 1960. Na Arábia Saudita, no Egito e nas comunidades instaladas na Europa, o ramo pietista reúne correntes como a de Juhaimanal-Utaibi, autor do ataque de 1979 à Grande Mesquita de Meca,8 ou a escola jihadista de Qutb e do Dr. Al-Zawahiri.
Apesar da proclamada recusa a qualquer exegese “nova”, os salafistas não estão, de modo algum, imunes às dinâmicas de mudança. Seu campo é tanto mais naturalmente plural em sua relação com a política (e sua visão do papel das mulheres, que voltou à recusa absoluta da mistura dos dois gêneros em espaços sociais) na medida em que, ao contrário da Irmandade Muçulmana, eles quase não têm homogeneidade organizacional. Sua vibrante reafirmação da necessidade de um retorno a fontes purificadas de qualquer mediação humana não produz, mais que seus antecessores, respostas doutrinais unívocas. A leitura salafista do Alcorão não está, mais que suas antecessoras, protegida das diferenças de interpretação. E a partir do momento que se coloca em prática a necessária mecânica de produção dessas interpretações do texto divino, ela não passa a proteger mais o crente das influências dos poderes temporais.
Assim, grupos claramente distintos da Irmandade Muçulmana endossam evoluções comparáveis às que os seguidores de Al-Banna operaram em sua época, principalmente a participação nas eleições. No Iêmen, na Arábia Saudita e no Kuwait, salafistas aceitaram apresentar candidatos.9 E essa “modernização”, denunciada como o mal que justificava a condenação da Irmandade Muçulmana, pode agora caracterizar a atitude dos membros dessa corrente. No avanço salafista da década de 2000, os “irmãos modernizadores” acabaram assumindo o papel de elemento de contraste no qual eles próprios haviam colocado outrora as elites “ocidentalizadas” que combatiam. Enquanto, no espaço público, a Irmandade reclama o direito a mais inclusão, os salafistas respondem com o fracasso que atribuem aos discípulos de Al-Banna, e a persistente rejeição da qual eles próprios se sentem objeto, através de discursos e práticas de contraexclusão. A onda salafista espalha-se bem mais na continuidade que na mudança.
Essa constância transparece até mesmo no estatuto simbólico concedido aos salafistas pelo olhar da mídia ocidental: o espectro salafista permite reiniciar o mecanismo de estigmatização, tal como na década de 1970, quando se deu a primeira erupção islâmica, protegendo-o de qualquer investigação midiática e de qualquer gestão política racional.