Sarkozy-Bonaparte
O conceito de bonapartismo por certo não se aplica ao atual regime político francês. Mas as semelhanças entre o novo presidente e o imperador Napoleão III vão além do gosto pelo falso brilhante, dos conchavos com amigos ricos e do liberalismo de tipo anglo-saxão.
Mais vale questionar a natureza de uma força política antes das eleições. Mas a maioria dos comentaristas esperou até os dias seguintes ao pleito presidencial de maio de 2007 para tratar do “sarkozismo”. A imprensa estrangeira acreditou ver nele um novo Napoleão e até lembrou o célebre quadro em que o general aparece na ponte de Arcole 1. Alguns, porém, se atreveram a sugerir uma comparação menos lisonjeira: “É Bonaparte, por certo, só que aquele de menor estatura. Com seu gosto pelo falso brilhante, os conchavos com amigos ricos e o liberalismo de tipo anglo-saxão, Nicolas Sarkozy se parece mais com Napoleão III do que com Napoleão I” 2.
A referência ao general republicano que se tornou primeiro-cônsul e, mais tarde, o imperador Napoleão I (1769-1821) é positiva: sugere o dinamismo de Sarkozy, aprova sua empreitada de restauração da ordem e seu modernismo conservador. Já quando se refere ao sobrinho, Luis Bonaparte (1808-1873), um presidente da Segunda República que se tornou o imperador Napoleão III, a menção é mais incerta. Ela não se revela necessariamente errada quando o personagem em questão se assemelha a um homem que demonstra atenção às classes populares, defende o livre comércio e garante a ordem contra o perigo revolucionário. Aliás, o rumor de um retorno das cinzas de Napoleão III, morto no exílio, sugere uma simpatia mais ou menos discreta do atual poder por essa figura. Mas, a referência diz respeito, acima de tudo, ao desastre, cuja marca foi deixada na memória francesa pelo fomentador do golpe de Estado de 1851 e que se transformaria no derrotado da Batalha de Sedan em 1870 3. É Napoleão III que permite associar o novo poder a um “bonapartismo”, que, como regime político, só nasceu com o advento do Segundo Império (1852-1870).
Em outros tempos, os adversários de Sarkozy teriam apelado para os valores republicanos contra a revolução conservadora e as posições autoritárias propagadas pelo candidato. Durante a campanha eleitoral, eles se refeririam, então, à memória do dia 2 de dezembro de 1851, quando Luis Bonaparte tomou o poder definitivamente. Eleito presidente pelo sufrágio universal em 10 de dezembro de 1848, com 74% dos votos válidos, o sobrinho do general não tinha direito a novo mandato. Após três anos de governo, porém, organizou um plebiscito para legitimar sua permanência indefinida no cargo. Venceu com 7,4 milhões de votos contra apenas 650 mil. O processo foi justificado com uma tirada célebre e imprudente do poeta e político Alphonse de Lamartine (1790-1869): “Se o povo estiver cometendo um erro; se desistir de sua soberania; se quiser abrir mão de sua segurança, dignidade e liberdade, deixando-as entre as mãos de uma reminiscência de império; se nos desaprovar e desaprovar a si mesmo, então, tanto pior para o povo!”. Para os republicanos, a ação de Luis Bonaparte foi a prova absoluta da perversidade da eleição para a Presidência da República por sufrágio universal. No poder por vinte anos, Bonaparte conferiu seu nome a um regime autoritário, apoiado sobre o uso da força e ratificado pelo povo 4.
Diferentemente de seu criador, o bonapartismo, como categoria política, sobreviveu ao desastre da Batalha de Sedan. Mas os herdeiros da esquerda não o evocaram por ocasião das eleições. A adesão ao presidencialismo, a amnésia dos cidadãos e a falta de cultura histórica dos socialistas atenuaram as alegações em torno desse tema. E, de fato, não houve golpe de Estado em maio de 2007, quando um dos candidatos venceu nos termos de uma eleição regular. O que houve foi um programa de revolução conservadora, anunciado e prestes a ser aplicado conforme as regras dos regimes representativos. A fórmula de modernização política por meio da aliança entre o liberalismo econômico e o autoritarismo tornou-se tão banal que o bonapartismo parece ter-se dissolvido na história.
Porém, muito além das aproximações superficiais de estilos, existem semelhanças reais que aproximam a “Sociedade de 10 de dezembro”, sustentáculo de Luis Bonaparte, e o eleitorado de Sarkozy. Algumas correlações estatísticas desmentem toda a complexidade da ciência política: quanto mais ricos e idosos, mais os eleitores votaram a favor de Sarkozy. Contudo, uma oligarquia não é o bastante para consagrar o sufrágio universal. Por isso, tanto ontem como hoje, faz-se necessário encontrar apoiadores que conformem uma maioria. Luis Bonaparte conquistou essa legitimação na classe camponesa, angustiada pela crise social da Segunda República (1848-1851). Essas massas eleitorais encontram equivalentes contemporâneos nas categorias populares e nos idosos. Antes de Sarkozy, sentindo-se ameaçadas pelo rebaixamento social, elas converteram sua revolta em um apelo à autoridade, sob a forma do voto na Frente Nacional, de extrema-direita. De fato, o desmantelamento das solidariedades sociais acentua a propensão à entrega nas mãos de um chefe carismático e generoso, que distribui certezas tranqüilizadoras sobre o futuro, por mais medíocres que sejam.
Sempre presente, a ameaça subversiva do comunismo também foi substituída, e com honras, pelas periferias. Contra o fantasma vermelho, o escritor Auguste Romieu conclamou a França a empunhar o sabre e a perpetrar um massacre em 1851. Contra os recentes conflitos urbanos de Villiers-le-Bels, quando grupos de jovens incendiaram carros em oposição ao assassinato de dois adolescentes, um internauta comentou: “É preciso enviar o exército”. É inegável que há um eco sempre recorrente do partido da ordem, mesmo que as forças armadas não cumpram mais tarefas como essas.
Na mídia voltada para o mundo dos socialites, o atual espetáculo oferecido pelo presidente em nada se parece com a festa imperial, que organizava solenemente os casamentos e os batismos dinásticos. Mas Sarkozy tampouco é inocente em sua busca pela simpatia popular. Contudo, a saga do Elysée inspira-se mais nas séries televisivas, tentando conciliar o narcisismo do príncipe com a adulação dos curiosos. Ela caracteriza uma nova inflexão das formas da dominação: de comum acordo com o seu expoente político, uma oligarquia está pondo fim a mais de um século de uma discrição burguesa que havia rejeitado os faustos de falso brilhante da corte imperial, substituído os uniformes agaloados por ternos cinza, e as crinolinas e os decotes por um comportado vestuário feminino. Ao menos nesse aspecto, a cultura narcisista tem a aparência de um retorno ao antigo regime.
*Alain Garrigou é professor de ciências políticas na universidade Paris X-Nanterre. Autor de Histoire sociale du suffrage universel en France [História social do sufrágio universal na França], Paris, Seuil, 2002.