“Selvageria” na Guatemala vem da política externa dos EUA e não da civilização Maia
O discurso “não venha” de Kamala Harris comunicou ao povo guatemalteco a não sair correndo de um prédio que o governo dos EUA tem incendiado. Se o governo Biden realmente deseja ajudar o povo guatemalteco em sua luta contra a corrupção e por melhores padrões de vida, ele se comprometerá a fazer mudanças em sua própria casa
A crueldade sempre fez parte da experiência humana. Ela se manifesta de maneiras diferentes, em graus diferentes, mas é uma constante há milênios. Antes da colonização europeia, os povos indígenas não viviam num paraíso na terra – havia conflitos, guerra, morte e dor. No entanto, devemos ser cautelosos quanto a sua representação como selvagens sedentos de sangue que evoluíram por meio de seu contato com o Ocidente. A Guatemala, o país com a maior população descendente da civilização maia, luta contra essa deturpação até hoje. Os Estados Unidos, em particular, muitas vezes refletem esse sentimento – quando Kamala Harris disse aos guatemaltecos para não irem à fronteira dos EUA; quando Mel Gibson gastou 40 milhões de dólares para fazer um filme historicamente impreciso sobre uma civilização pré-colombiana; enquanto a história do genocídio maia é persistentemente apagada.
No mainstream, as civilizações indígenas da antiguidade das Américas são frequentemente descritas como amorais, cujas superstições levaram ao canibalismo e ao sacrifício humano. No entanto, muitas dessas representações são baseadas em especulações, ao invés de evidências arqueológicas. ‘Apocalypto’, de Mel Gibson, é um exemplo flagrante disso – um filme visualmente deslumbrante com intenções insidiosas e um retrato falso da história maia. Não apenas a representação dos maias no filme era simplesmente errada, mas é também desonesta por omissão. Ele optou pela violência visceral gratuita e não fez menção às brilhantes contribuições científicas que aquela civilização fez ao mundo.
Certamente não devemos tomar um filme de Hollywood como uma lição de história, muito menos vindo de uma figura como o Mel Gibson, mas as imprecisões do filme revelam motivações políticas indesculpáveis. Sua citação inicial de W. Durand, “Uma grande civilização não é conquistada de fora até que se destrua por dentro”, implica que a civilização nativa já estava se destruindo antes da chegada dos europeus. Realmente, o ‘colapso clássico dos maias’ aconteceu, mas meio milênio antes da chegada dos espanhóis. Esta fusão dos séculos 9 e 15, ao lado da violência visceral gratuita, é, na melhor das hipóteses, uma perspectiva equivocada sobre os nativos e, na pior, uma propaganda supremacista eficaz.
Enquanto isso, a selvageria sanguinária da qual temos evidências na história muito mais recente é suspeitamente apagada do discurso público. A ditadura militar apoiada pelos Estados Unidos e a guerra civil na Guatemala, que durou de 1962 a 1996, causaram mais de 150 mil mortes – um genocídio da população maia que consistia principalmente de crianças. De acordo com Jill Marie Gerschutz Bell da Casa Alianza – uma ONG que oferece abrigo a jovens pobres na América Central – o fato de que o tempo que as crianças indígenas passam na escola é a metade da média nacional mostra como “a discriminação contra a população indígena continua”. Em um país onde 42% da população é maia, esses dados significam que milhões de crianças não têm acesso à educação e vivem em extrema pobreza.
[Alerta de gatilho: violência e tortura] Nos anos 1990, a negligência do governo com as crianças maias se transformou em tortura e assassinato. Esses chamados “jovens delinquentes” eram culpados de viver nas ruas e cheirar cola para lidar com a fome. Policiais os matavam rotineiramente – crianças e jovens entre 12 e 20 anos foram espancadas, tiveram cola de sapato derramada sobre eles, tiveram suas orelhas cortadas e olhos arrancados. Num caso, uma criança de 12 anos recebeu comida apenas para descobrir que o que estava dentro do pacote era uma bomba.
O caso da Comissão Interamericana contra o Estado da Guatemala foi o primeiro na história do tribunal a envolver “crianças como vítimas de violações de direitos humanos”. Esta citação é de “Os Jovens Mártires… A Condenação do Estado da Guatemala pela Execução Extrajudicial de Meninos de Rua”, um livro de 2004 que reúne artigos de pessoas diretamente envolvidas no processo judicial que conseguiu responsabilizar o governo da Guatemala por esta violência indesculpável contra maias menores de idade.
[Aviso de gatilho: conduta sexual imprópria] Infelizmente, até mesmo algumas das pessoas que se propuseram a ajudar essas crianças também as exploraram. O diretor de longa data da Casa Alianza – um escocês chamado Bruce Harris que ganhou medalhas, prêmios e muitas vezes foi chamado de herói por seu trabalho com crianças carentes na América Central – foi demitido por exploração sexual de jovens sob seus cuidados.
A realidade comovente é que a situação ainda está terrível. Muitos jovens guatemaltecos ainda recorrem à prostituição para pagar pela sua jornada em direção à fronteira com os Estados Unidos, um conjunto de circunstâncias que se mostra menos terrível do que viver nas ruas à mercê do Estado. Numa recente viagem à Guatemala, Kamala Harris expressou o desejo de compreender e resolver as causas que levam os guatemaltecos a cruzarem a fronteira ilegalmente. Ela não precisa viajar muito longe para encontrar essas causas – se os Estados Unidos querem que guatemaltecos indocumentados fiquem longe de sua fronteira, não deveriam ter financiado sua guerra civil.
“Enquanto a Guerra Fria se intensificava nas décadas de 1960 e 70, os Estados Unidos deram aos militares guatemaltecos US$33 milhões em ajuda, embora as autoridades americanas estivessem cientes do histórico sombrio do exército em relação aos direitos humanos, mostram os documentos.” (Arquivos do Washington Post)
“$33.000.000 em 1960 é equivalente em poder de compra a cerca de $300.116.047,30 hoje”. (Calculadora de inflação CPI)
Essas centenas de milhões de dólares não promoveram o desenvolvimento econômico nem impediram a corrupção, mas exacerbaram um conjunto precário de circunstâncias. O discurso “Não venha” da Harris no início do mês passado essencialmente comunicou ao povo guatemalteco a não sair correndo de um figurativo prédio que o governo dos EUA tem incendiado. Se o governo Biden realmente deseja ajudar o povo guatemalteco em sua luta contra a corrupção e por melhores padrões de vida, ele se comprometerá a fazer mudanças em sua própria casa.
A “selvageria sanguinária”, que muitas vezes é atribuída ao povo maia, descreve muito melhor a política externa dos EUA do que qualquer civilização pré-colombiana nas Américas. Devemos lembrar que o povo maia ainda existe hoje, e eles foram e ainda estão longe do estereótipo retrógrado e subdesenvolvido propagado na mídia tradicional. Enquanto suas contribuições culturais e científicas para a humanidade sejam amplamente subestimadas, seus descendentes continuam a ser brutalizados por instituições governamentais. O ‘desenvolvimento econômico’ é fugaz em contraste com um verdadeiro respeito e apreciação por um povo com história, língua e cultura magníficas.
Mirna Wabi-sabi é escritora, teórica política, professora e tradutora. Ela é editora-chefe da Plataform9 e editora do site da Gods and Radicals.