Sequestro e violência sexual contra migrantes na fronteira dos Estados Unidos
“No cativeiro, nossas pacientes são maltratadas, não recebem alimentos suficientes ou de qualidade, e a maioria das mulheres é vítima de estupro e violência”, diz o coordenador do Médicos Sem Fronteiras, Pooja Iyer
“Eles nos estupraram continuamente, um após o outro. Não tiveram piedade.” Esse relato é de Camila*, que narra sua história com lágrimas enquanto espera em um abrigo para migrantes em Matamoros, no México. Em 2023, ela fugiu do seu país, a Nicarágua, por causa de perseguições políticas contra a sua família. Mesmo com algumas exigências ilegais de pagamento de propina nos postos de controle ao longo da rota, ela chegou até a cidade de Monterrey e se deslocou de ônibus para Reynosa, município de fronteira com os Estados Unidos. “Durante a viagem fomos sequestradas e o pior aconteceu. Levaram-nos para uma casa onde nos separaram dos homens. E nos estupraram”, conta. Camila, vítima de um abuso cruel, nunca mais foi a mesma.
Já Rosaura, mulher venezuelana, ficou sequestrada por uma semana e foi abusada sexualmente. Incapaz de pagar aos sequestradores pela sua libertação, ela não conseguiu se apresentar às autoridades de imigração dos Estados Unidos e ficou com graves problemas de saúde mental. Ela foi encontrada pela equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) durante uma ação que distribuía kits de inverno para lidar com o frio. O sequestro sucedido de estupro também fez com que Rosaura nunca mais fosse a mesma.
As histórias de Camila e Rosaura não são isoladas e possuem pontos em comum. Em ambas, evidencia-se graves problemas que são enfrentados cotidianamente por milhares de mulheres que procuram segurança e proteção econômica ao cruzarem a fronteira do México com os Estados Unidos: os sequestros e os estupros, cujas consequências graves podem levar a sofrimentos e transtornos mentais, ansiedade, depressão, estresse, pensamentos intrusivos ou paranoicos, medo, pânico, alucinações, lesões físicas, complicações obstétricas, disfunções sexuais, gestações indesejadas, abortos inseguros e infecções sexualmente transmissíveis.
Infelizmente, histórias como essas são ouvidas frequentemente pelas equipes de MSF em Reynosa e Matamoros, cidades do nordeste do México. “Nos últimos meses, temos visto o aumento nos casos de sequestros e violência sexual contra migrantes. No cativeiro, nossas pacientes são maltratadas, não recebem alimentos suficientes ou de qualidade, e a maioria das mulheres é vítima de estupro e violência”, diz o coordenador do projeto, Pooja Iyer.
Todos os dias, nos locais onde as equipes de MSF prestam atendimento aos migrantes, são ouvidos testemunhos de pessoas que foram vítimas de vários tipos de violência. Em Reynosa e Matamoros, nos últimos três meses de 2023, foi registrado aumento de 70% nas consultas por violência sexual em comparação com os três meses anteriores. Só em janeiro de 2024, MSF ajudou 28 sobreviventes de estupro – mais do que em qualquer mês do ano anterior. De outubro de 2023 a janeiro de 2024, as equipes de saúde mental e assistência social de MSF ajudaram 395 vítimas de violência e 129 pessoas que foram sequestradas e posteriormente libertadas.
Durante 2023, em Piedras Negras, cidade mexicana que faz fronteira com Eagle Pass, no Texas, Estados Unidos, as equipes de MSF ajudaram 95 sobreviventes de violência sexual e 177 pessoas que sofreram outros tipos de violência, incluindo sequestros, espancamentos, ameaças e desaparecimento forçado de familiares em razão de atos de violência durante suas viagens migratórias ou no local da fronteira.
A situação das mulheres migrantes na América Central é assustadora, e estima-se que 70% das refugiadas em albergues de cinco localidades no México já foram vítimas de violência sexual. Destas, a maioria é de El Salvador, Honduras e Guatemala, países conhecidos como o Triângulo Norte da América Central.[1]
Sequestros e violências sexuais não são os únicos problemas enfrentados por mulheres, pois a travessia do México para os Estados Unidos envolve cruzar o Rio Bravo, com risco de serem arrastadas pela correnteza. Muitas migrantes têm medo por causa das chances de afogamento, enquanto outras são impedidas pelos guardas de fronteira de seguirem. Isso acontece mesmo com aquelas que têm agendamentos marcados com as autoridades de migração nos Estados Unidos e são frequentemente rejeitadas pelas autoridades mexicanas.
Mulheres migrantes no México enfrentam, ainda, condições climáticas extremas, tanto no inverno como no verão, além de desafios para encontrar lugares seguros para dormir, dificuldades em obter alimentos, água e artigos de higiene, e limitação no acesso a cuidados médicos e psicológicos. Nesse ambiente hostil, muitas migrantes veem-se obrigadas a esperar indefinidamente para obter uma entrevista com as autoridades de migração dos Estados Unidos através de um processo de candidatura online conhecida como CBP One.
O CBP One é uma das poucas vias legais disponíveis para as migrantes acederem ao direito de asilo e proteção nos Estados Unidos, e expõe-lhes a incertezas. No México, muitas relatam ter de esperar vários meses por uma consulta para iniciar o processo de imigração, enquanto outras nem sequer conseguem candidatar-se. Algumas não possuem acesso a smartphones para realizar o procedimento, ou não podem pagar conexão à internet, enquanto outras não falam inglês ou têm dificuldades para ler e escrever. Embora o processo CBP One represente um pequeno avanço no objetivo de organizar os fluxos migratórios, esta ferramenta revelou-se inadequada para gerir os processos de entrada legal de pessoas que procuram bem-estar e segurança nos Estados Unidos.
Renata Viana, representante de Advocacy e Assuntos Humanitários de MSF no México e na América Central, relata que a situação de violência à qual a população migrante está exposta na região é uma grande preocupação. Inclusive, as equipes testemunham alarmadas as consequências de todos os tipos de violência sofridas ao longo da rota migratória pelas Américas, principalmente na América Central e no México. Os casos vão desde discriminação, extorsão e roubos até violência física, incluindo eventos de sequestro e violência sexual, particularmente nas cidades de Reynosa e Matamoros. “Vemos com muita preocupação a degradação da situação de segurança nos últimos meses. Nossos pacientes relatam múltiplas violências quando em situação de sequestro. Nos contam que durante o cativeiro sofrem maus tratos, não recebem alimentação suficiente e a maioria das mulheres é vítima de violência física e abusos sexuais”, afirma Renata.
Estupros e outras violências perpetradas contra mulheres refugiadas nas diferentes regiões do mundo e da América Central expõem a face mais cruel de sociedades historicamente marcadas por desigualdades de gênero, em que os homens exercem poder e controle sobre os corpos e as vidas das mulheres. O patriarcado, nesse sentido, intersecciona-se com a xenofobia, o racismo e o capitalismo para corrigir, punir e disciplinar mulheres que ousam buscar, por conta própria, condições para uma vida digna. E essa rota é permeada por violações de todos os tipos, em que os Estados e organismos internacionais não garantem direitos femininos de proteção e liberdade. É a dura face de uma humanidade que considera as mulheres passíveis a abusos, principalmente sexual. A sociedade não pode continuar complacente às tantas denúncias de estupro nas diferentes partes do mundo.
É preciso prevenir violências, cuidar das mulheres e punir abusadores, além de desmantelar a estrutura de gênero que ainda rege o tecido social. Imediatamente.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
*Os nomes são fictícios para a proteção das vítimas.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
[1] Médicos Sem Fronteiras. Forçados a fugir do triângulo norte da América Central: uma crise humanitária negligenciada. Relatório. 2017.