“Sérgio nunca estaria conformado. Por isso, identifico-me com ele”
Miguel Coyula, diretor de um dos dois filmes que estão surgindo a partir de Memórias do Desenvolvimento, explica como a obra dialoga com romance de Desnoes. Para cineasta, personagem principal expressa o sentimento — entre anárquico e apático — de sua geração diante da revolução cubanaIana Cossoy Paro
O jovem diretor cubano Miguel Coyula (31) produz, há três anos, Memórias do Desenvolvimento, um dos dois filmes que estão surgindo a partir da obra homônima, de Edmundo Desnoes. A obra, cujo lançamento está previsto para 2009, terá como foco um Sérgio existencialista e desconforme. Coyula, que estudou cinema na EICTV (Escuela Internacional de Cine y Televisón de San Antonio de los Baños), vive hoje em Nova York. Seus trabalhos anteriores caracterizam-se pelo experimentalismo e pelo fato de que, além de escrever e dirigir, o autor edita, fotografa, anima e compõe a música para a maioria de seus filmes. Leia, abaixo, entrevista concedida por ele a Le Monde Diplomatique, por internet:
De onde surge a idéia de adaptar Memórias do desenvolvimento? Qual foi o caminho do papel até a produção do filme? Em que etapa do processo está?
Acho que a idéia está no subconsciente de cada cineasta cubano, sobretudo se vive nos Estados Unidos. Conheci Edmundo em Nova York, através dos meus pais, que se encontraram com ele durante sua viagem a Cuba em 2003 [1]. Edmundo me contou que estava terminando o romance, pedi a ele uma sinopse e ele aceitou que eu adaptasse o roteiro. Na primeira versão, tentei resumir o romance ao máximo, para que tivesse 90 minutos, extraindo as cenas principais. Foi uma escritura relativamente rápida. Em um par de semanas ficou pronta a primeira versão e comecei a filmar sem orçamento cenas menores, sem diálogo. Depois entraram alguns investidores. Estivemos filmando durante três anos e falta menos de um quarto de filme para filmar e editar (pois edito as cenas quase sempre logo depois que as filmo).
Ao longo de três anos, o filme foi ganhando vida própria. O romance está centrado no processo de envelhecer no exílio. Com o filme, tentei plasmar também a alienação existencial do personagem dentro da sociedade
No caso do filme Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutierrez Alea, houve uma relação muito próxima entre escritor e realizador, no momento de adaptar o romance ao cinema. Como ocorreu a colaboração no caso de “Memórias do Desenvolvimento”?
Trabalho de maneira mais isolada. Enquanto adaptava o roteiro, mandava cenas a Edmundo. Algumas vezes, pedi que criasse diálogos para algumas cenas novas, que não estavam no romance. Outras cenas, escrevi de minhas próprias experiências. De vez em quando, improviso durante a filmagem, mesmo — e muitos outros elementos me surgem na sala de edição. Ao montar umas cenas com outras, saíam oportunidades para terceiras cenas ou seqüências documentais, ou de animação. Foi interessante porque a filmagem já durou três anos devido ao baixo orçamento, mas ao longo desse tempo o filme foi ganhando vida própria. Para mim, foi toda uma descoberta, pois Edmundo e eu somos de duas gerações muito distantes. O romance está centrado no processo de envelhecer no exílio, enquanto que, com o filme, tentei plasmar ainda mais também a alienação existencial do personagem dentro da sociedade, neste caso utilizando o contexto sócio-político dos Estados Unidos, tendo o transfundo de Cuba, pois ao fim e ao cabo é Memórias do Desenvolvimento. O híbrido que está nascendo me parece um experimento muito interessante. Hoje, é impossível, no meu caso, separar a produção da pós-produção, pois ao ter um green screen [chroma key] na sala de edição, e uma câmera portátil, é muito fácil que uma idéia nova passe pela tua cabeça e você possa realizá-la quase que imediatamente.
O personagem Sérgio do novo filme é o mesmo Sérgio de Memórias do Subdesenvolvimento? O que os dois personagens têm em comum?
Não é o mesmo Sérgio, mas sim uma continuação de certa maneira de ver o mundo. Acho que o personagem de Sérgio é uma pessoa que não se encaixaria em nenhuma sociedade do mundo, seja comunista ou capitalista, ou o que venha: nunca estaria conforme. Isso foi o que sempre me chamou a atenção no personagem, e por isso sempre me identifiquei com ele. Este novo Sérgio é um produto da revolução cubana, em sua juventude acreditou no projeto de uma sociedade melhor.
O que representa Memórias do Subdesenvolvimento para a tua geração, em Cuba?
É o primeiro filme verdadeiramente inteligente do cinema cubano. O cinismo de Sérgio e sua solidão são indícios prematuros da apatia política que existe em grande parte da minha geração. Apatia não é a palavra exata, pois existe certa raiva impotente, e isso se vê agora em Memórias do Desenvolvimento, onde estou “contra todas as bandeiras”, porém (e contraditoriamente) de maneira passiva.
Uma revolução não pode durar muito, pois teria que reinventar-se constantemente, com idéias radicais avançadas. Uma revolução que dure 50 anos é uma idéia bonita, mas também um conto de fadas
Este Sérgio de Memórias do Desenvolvimento é uma pessoa que se formou intelectualmente dentro da revolução cubana, e por isso já não pode deixar de questionar tudo de maneira negativa, a priori. No entanto, foi educado em um marco estrito (ironicamente dentro de uma “revolução”), pensando que defender participativamente qualquer tipo de mudança real na sociedade não é inútil e daí seu cinismo. Ia utilizar a palavra anarquia, mas um anarquista verdadeiro entra em ação, e até agora tudo o que nossa geração fez foi falar, ou às vezes apenas pensar. Não existiu uma verdadeira ação — uma revolução, para ser mais claro. A revolução cubana deixou de existir há muito tempo. Uma revolução não pode durar muito, pois teria que reinventar-se constantemente, com idéias radicais avançadas. Uma revolução que dure 50 anos é uma idéia bonita, mas também um conto de fadas. Mesmo assim, não acho que exista no mundo nenhum sistema político que me convença. Porém, me vem à mente a palavra anarquia porque ao fim e ao cabo os anarquistas são idealistas desiludidos. Sentimentos de anarquia e apatia coexistem em vários cubanos. Lamentavelmente, quase sempre prevalece o segundo. Isso é o que representa Sérgio para mim.
Em termos de linguagem cinematográfica, qual o diálogo que se estabelece entre teu filme e o de Tomás Gutierrez Alea?
Seria a estrutura aberta, a narrativa onde se pode falar um pouco de tudo. Em tudo o mais, são filmes bastante diferentes. Titón [Tomás Gutierrez] buscava sempre um naturalismo que provém de sua escola neo-realista. Meu estilo é completamente oposto, apesar de haver um par de homenagens a Memórias do Subdesenvolvimento. Curiosamente, até as cenas documentais estão altamente estilizadas no meu filme. Titón pretendia chegar a um publico mais amplo, pois sempre teve como meta desenvolver a consciência do espectador. Certamente Memórias do Subdesenvolvimento nunca foi cinema para as massas, é seu melhor filme, mas não o mais popular em Cuba. É para um público seleto e isso não há quem mude. Eu simplesmente faço o cinema que gostaria de ver, é a única maneira de ser sincero comigo mesmo. Alguém disse que se o filme é sincero sempre encontrará seu público, por pequeno que seja.
Você diz ter uma “bronca” com o realismo. Poderia falar um pouco mais sobre isso?
Não me interessa o realismo em absoluto, se não estaria fazendo documentários. Vejo-me obrigado a construir o mundo da forma em que quero vê-lo. Ou seja, nunca me interessou o mundo real. Eu o tolero porque não há outro remédio, pudera eu viver na minha mente. Por isso faço cinema, para plasmar um pouco o que de outra forma ficaria na minha cabeça. Claro, tudo são impressões deformadas do mundo real, mas tentar recriá-lo com verossimilhança me entedia ao máximo. Quase sempre minhas histórias têm elementos fantásticos, de ficção científica, ou simplesmente uma realidade estilizada, como é o caso de Memórias. Isso não quer dizer que me interesse um cinema escapista. Ao contrário: sempre me atraem histórias e personagens que são de certa forma extraterrestres na sociedade. De qualquer forma, Memórias é o único filme que faço no qual a história está ancorada em um contexto histórico determinado.
Na escola, você pode aprender a utilizar os equipamentos. Mas na hora de aprender cinema e linguagem, é simplesmente ser um bom cinéfilo e assimilar técnicas. Ou seja, aprende-se a fazer cine olhando e depois fazendo
Você estudou em duas escolas de cinema, em Cuba e nos Estados Unidos. O que se pode aprender em uma escola de cinema?
Bom, a segunda escola, aqui nos Estados Unidos, foi de atuação: The Lee Strasberg Theater Institute. Sei que outros tiveram experiências diversas. Acredito que na escola você pode aprender a utilizar os equipamentos, mas na hora de aprender cinema e linguagem, é simplesmente ser um bom cinéfilo e assimilar técnicas. Ou seja, aprende-se a fazer cine olhando e depois fazendo. Por exemplo, desde pequeno foram os desenhos animados japoneses os que me ensinaram a pensar cinematograficamente. A animação japonesa é visualmente muito atrevida e revolucionou muitas técnicas. Mas acho que isso é somente uma base. Se você quer aprender um ofício e ser um artesão, então talvez uma escola possa ser útil; mas para experimentar, acredito que não. Para experimentar é preciso descobrir e se alguém impõe, explica, e desconstrói modelos que já existem — mesmo que tenham sido em algum momento experimentais — te deforma um pouco a formação. É como quando cineastas passam a trabalhar na televisão por um tempo: acostumam-se a pensar de uma maneira mais estruturada e desaparece um pouco a intuição. Enquanto que, ao aprender simplesmente como espectador, assimila-se muito mais sensorialmente e se mantém certa aura de mistério e inocência com relação ao meio, que depois é importante transmitir em sua própria obra.
Até certo ponto, a escola de atuação me foi mais útil porque me colocou na pele do ator pela primeira vez e me mostrou como se percebem as coisas desde seu ponto de vista.
Quais são tuas influências, inspirações e referências mais importantes?
Meu estilo é uma quimera, como vi tanto cinema, sempre tomo o que mais gosto de cada estilo para conseguir a atmosfera desejada. É algo que faço de maneira inconsciente e os híbridos são de tantas fontes que às vezes tenho que racionalizar de onde vem cada elemento: Para mencionar alguns e por diferentes motivos: Einsenstein, Tarkovsky, Antonioni, Orson Welles, Bertolucci, Godard, David Lynch etc.
Mais
Há dois teasers de Memórias do Desenvolvimento disponíveis na net. Para vê-los, clique aqui: 1 2
Esta é a sexta de uma série de matérias sobre os latino-americanos e seu cinema a partir do 3º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, redigidas em colaboração por Iana Cossoy Paro, Javier Cencig, Thiago Mendonça e Moara Passoni. Veja os outros textos:
1.
Imagens de um continente em busca de si mesmo
Filmes, debates e oficinas expõem, em São Paulo, estado da produção cinematográfica na América Latina. Festival reflete momento em que tanto o continente quanto seu cinema buscam novos rumos ? mas já não o fazem com as lentes e projetos que marcaram o século 20
2.
O universal e o latino-americano: diálogos entrecruzados
Jornalismo-cinema: numa mesa imaginária, colagem de falas reais, personagens presentes ao 3º Festival, em São Paulo, debatem tanto as condições de produção e distribuição do cinema latino-americano quanto a possibilidade de um projeto estético que expresse a identidade da região
3.
Fernando Solanas: entre a Terra e as Nuvens, o Sonho
Em entrevista especial para Le Monde Diplomatique Brasil, um dos grandes cineastas latino-americanos contemporâneos descreve sua formação política, explica como ela influenciou sua obra e defende uma estética que articule investigação profunda da realidade com invenção formal incessante
4.
Memórias do Subdesenvolvimento, arte e revoluções
Edmundo Desnoes, romancista e inspirador de um filme que marcou o cinema cubano, conversa sobre seu processo criativo, as encruzilhadas da Ilha, política e literatura na América Latina, a banalidade do consumo e a importância do ato de narrar, como sentido da própria existência humana
5.
Memórias do Desenvol