Sigilo fiscal?
Silvio Caccia Bava
Quem ficou sabendo que o governo federal abriu mão de cobrar R$ 1 trilhão de impostos lançados na dívida ativa da União, devidos principalmente por grandes empresas, públicas e privadas?
Segundo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), a provisão, em 2013, para perdas lançada na dívida ativa da União é de R$ 966.413.275.095,20, quase R$ 1 trilhão. E a dívida ativa da União, em setembro deste ano, totalizava R$ 1,35 trilhão. Considerar mais de 70% da dívida impagável é uma mudança radical de postura que vem de 2012. As provisões para perdas em 2008 não ultrapassavam 10% do total da dívida ativa.1
Mesmo reconhecendo falhas no sistema, apontadas por auditoria da Controladoria Geral da União, o que ressalta no relatório da CGU é que todos os órgãos envolvidos – Receita Federal, Ministério do Trabalho, Secretaria do Patrimônio da União – também são responsáveis pelas falhas identificadas e, mais grave, deixam o sistema vulnerável a fraudes.2
Quem decidiu que há devedores que não podem pagar? Que devedores se beneficiam dessa nova política? Isso foi decidido nos meandros burocráticos do governo, longe do debate público. Em nome de uma legislação que defende o sigilo fiscal das empresas, os
principais devedores da União são mantidos no anonimato, protegidos por uma atitude do governo que ultrapassa em muito o que a legislação define. O centro da questão é a democracia. Por mais bem-intencionado que seja, não pode ser um grupo de técnicos
que decida abrir mão da cobrança de R$ 1 trilhão.
Um trilhão de reais é muita coisa. Dá para transformar a vida dos brasileiros. Dá para melhorar muito a infraestrutura urbana para uma boa vida nas cidades. O jornal Valor Econômico estima que as demandas das ruas exijam investimentos de R$ 115 bilhões
por ano.3
Essa mesma postura de assegurar o sigilo fiscal para preservar a imagem das empresas que são devedoras de impostos é assumida também pela Prefeitura Municipal de São Paulo, que se recusa a informar quais são as vinte empresas com os maiores débitos de impostos municipais. A dívida ativa do município é de R$ 55 bilhões.
Como conselheiro da cidade, solicitei essas informações e a resposta da Secretaria de Finanças foi de que os dados das empresas não são passados porque são protegidos pelo sigilo fiscal. E isso é mantido mesmo com a nova lei de acesso à informação. Os nomes das empresas são protegidos.
Consultei escritórios renomados de advocacia, que me esclareceram: depois da condenação da dívida, não há mais sigilo fiscal. A Secretaria de Finanças do município de São Paulo, assim como os órgãos federais responsáveis pela dívida ativa da União exorbitam ao negar essas informações. As execuções fiscais são públicas. Por isso, ainda que exista sigilo na fase administrativa, na fase judicial já não se fala em sigilo.
Durante décadas foi construída uma institucionalidade feita para separar a economia da política. A autonomia do Banco Central é a joia da coroa. A economia é dirigida para alavancar a acumulação e beneficiar especialmente os grandes bancos. A política serve para administrar as pressões sociais e garantir o status quo.
Nos últimos anos, a sonegação de impostos só vem crescendo. E a impunidade favorece esse comportamento. Hoje temos uma carga tributária de 35% do PIB, e especialistas dizem que, se não houvesse sonegação, poderíamos baixá-la para 20% e ainda haveria superávit.
Inverter essa lógica é o grande desafio. Para priorizar o interesse público sobre os interesses do mercado, a economia deve se submeter ao planejamento e ao controle democrático. E o governo deve cobrar das empresas os impostos devidos. Eles são
creches, escolas, salários melhores para os professores, melhores transportes coletivos e muito mais.
A disputa é para revigorar as instituições democráticas. É para ampliá-las, acolher novos atores e criar novas instâncias de participação cidadã e controle social, inclusive sobre as finanças públicas. Os nomes das empresas sonegadoras, assim como a natureza e o montante de seus débitos com o poder público, devem ser de conhecimento de todos. Os governos eleitos são responsáveis por assegurar essa postura de transparência.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.