Sinais de fraturas
Conturbações sociais e políticas dúbias são a marca da situação na América Latina, que esboça reação ao unilateralismo norte-americanoMaurice Lemoine
Conta-se que, tempos atrás, qualquer jornalista que chegasse a La Paz, capital da Bolívia, instalava-se no hotel que fica do outro lado da Praça Murillo, em frente ao Palácio do governo, e pedia um quarto “com vista para o golpe de Estado”. Uma nova versão, deste início do século XXI, contará, com certeza, que ao ser empossado – e por uma questão de prudência – o presidente exigirá um gabinete com “acesso direto ao helicóptero”. Após o argentino Fernando De la Rúa, em 2001, e o boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, foi graças a uma dessas aeronaves salvadoras que o chefe de Estado equatoriano, Lucio Gutiérrez, fugiu, no dia 20 de abril, da residência presidencial, o Palácio Carondelet.
Triste fim para um ex-homem providencial… Em janeiro de 2000, ainda coronel, Gutiérrez foi um dos líderes do efêmero golpe de Estado que, nascido do apoio a uma revolta popular de ampla maioria indígena, levou ao afastamento do presidente Jamil Mahuad. Comparado, de forma um pouco precipitada, a um “Chávez equatoriano”, o oficial passou seis meses preso, foi expulso do exército e… ganhou a eleição presidencial de novembro de 2002 aliando-se ao movimento Pachakutik, braço político da Confederação das Nações Indígenas do Equador (Conaie), a poderosa organização dos povos autóctones desfavorecidos1.
Bastaram apenas alguns meses para que o ex-coronel, traindo todos os que o haviam apoiado – a começar pelos ministros egressos do movimento Pachakutik -, se alinhasse às teses do Fundo Monetário Internacional (FMI) e definisse a si mesmo como “o melhor aliado de Bush” na região.
Barril de pólvora
Numa América Latina submetida ao fundamentalismo liberal por um longo período, os governos estão sentados num barril de pólvora
Das medidas impopulares aos conchavos e manobras políticas, no dia 8 de dezembro de 2004 Gutiérrez acabou por ir longe demais. Nesse dia, uma maioria parlamentar que obedecia a suas orientações reestruturou a Corte Suprema de Justiça, substituindo 27 de seus 31 juízes. No dia 31 de março de 2005, os recém-nomeados magistrados anularam os processos que tramitavam contra os ex-presidentes Gustavo Noboa – acusado de corrupção e destituído em fevereiro de 1997 – e Abdala Bucaram – obrigado a renunciar a seu mandato devido a um inquérito sobre malversação de verbas públicas. A volta ao país dos dois ex-chefes de Estado – exilados, respectivamente, no Panamá e na República Dominicana – provocou uma insurreição.
Abandonado pelo exército – no qual reina um clima tenso de mal-estar – Gutiérrez também foi abandonado pelo Congresso: 60 dos 100 parlamentares o destituíram… para não ir a pique com ele. Do ponto de vista jurídico, o motivo invocado – “abandono de suas funções” (o que significaria que Gutiérrez “não respeitara a Constituição”) – poderá parecer contestável. No entanto, e apesar de ter expressado um forte apoio a seu aliado até os últimos instantes, Washington se resignaria a “substituir o fusível”. A preservação das “instituições” e a “legitimidade do sistema político” tornaram-se a prioridade de todos.
Numa América Latina submetida ao fundamentalismo liberal por um período demasiado longo – 225 milhões de pobres, ou seja, 43,9% da população – os governos estão sentados num barril de pólvora. Apesar do afinco com que alguns “cães de guarda” tentam preservar o statu quo – “Aceita tua situação. Mesmo em período de crise econômica, o dinheiro não traz felicidade2” -, o tempo em que as populações pareciam se resignar – “Justiça social? Está cada dia mais próxima… como a linha do horizonte!” – ficou para trás.
A Alca interditada
O projeto Alca ficou parado por conta da resistência que encontrou por parte dos movimentos sociais
Pela primeira vez desde a década de 60, vários governos de esquerda – Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela – decidiram alterar o curso dessas “Repúblicas sem cidadãos” marcadas pelo desprezo social e pela exclusão, ainda que, com Fidel Castro, o presidente venezuelano Hugo Chávez seja o único que defende um modelo de desenvolvimento significativamente distante do Consenso de Washington. Diante do desafio colocado por essa contestação em diversos pontos do hemisfério, os Estados Unidos tentam reagir reforçando seu leque de aliados incondicionais – o México e a América Central e os países andinos onde, com a Colômbia, o Equador de Gutiérrez ocupava um lugar-chave (assim como a Bolívia de Sánchez de Lozada).
Desde a década de 90, a ofensiva desencadeada por Washington ganhou a forma de acordos de livre-comércio, a começar pelo Acordo de Livre-Comércio Norte-Americano (Nafta, na sigla inglesa3) e, já na espreita, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), da qual se espera que, a partir de janeiro de 2006, dissemine o vírus do ultraliberalismo por todo o continente. Este último projeto ficou parado por conta da resistência que encontrou por parte dos movimentos sociais da Campanha Continental contra a Alca, da rejeição por parte do mercado comum do Sul (Mercosul4) e da oposição por parte da Venezuela.
Para contornar a dificuldade, o Império assinou, às pressas, tratados bilaterais com a América Central e a República Dominicana (Central American Free Trade Agreement – Cafta), com o Equador, com a Colômbia e com o Peru5. Como no caso da Alca, estes tratados de livre comércio (TLC) não só dizem respeito aos aspectos estritamente econômicos, quanto à gestão estatal, à legislação trabalhista, à propriedade intelectual, ao meio ambiente, aos recursos naturais e energéticos, à saúde e à educação. Pseudo-negociações permitem apenas que os países “latinos” introduzam algumas emendas, sem qualquer concessão por parte de Washington quanto ao essencial e à defesa única e exclusiva de seus interesses.
Futuro incerto
A recente deposição dos chefes de Estado boliviano e equatoriano apenas conduz, por enquanto, a perspectivas incertas e ambíguas
Diante dessa neocolonização ligeiramente disfarçada, a população reclama. “Estou convencido de que eles vão acabar privatizando o Estado”, escuta-se aqui e ali. “Se as coisas continuarem desse jeito, um belo dia iremos acordar e o país pertencerá à Coca-Cola!” Na América Central, a contestação é forte. No Peru e no Equador, uma campanha recolhe assinaturas com o objetivo de obrigar os governos a convocarem um plebiscito sobre os tratados. Na Bolívia, a pressão das organizações sociais impediu o poder de progredir nas negociações do TLC, rebatizado “Total locura capitalista”.
A recente deposição dos chefes de Estado boliviano e equatoriano apenas conduz, por enquanto, a perspectivas incertas e ambíguas. Tal como na Argentina, em dezembro de 2000, foi com a palavra de ordem “Que se vayan todos!” que os equatorianos ocuparam as ruas. Sua insurreição multiclassista, autoconvocada (as rádios livres tiveram um papel fundamental), à margem de partidos e de líderes políticos – como em La Paz e em Buenos Aires – até deixou de fora a Conaie e o movimento Pachakutik, cujos dirigentes são criticados por sua (breve) responsabilidade governamental ao lado de Gutiérrez.
Assim como a Bolívia, que substituíra Sánchez de Lozada por seu vice-presidente, Carlos Mesa (que não pertence a partido algum), o Equador substituiu Gutiérrez por seu vice, Alfredo Palacio (um médico sem filiação política). Tanto um como o outro não gozam de muito apoio.
Boa surpresa argentina
Resistindo ao FMI, o governo argentino declarou uma moratória sobre a dívida privada
É verdade que em Buenos Aires, em circunstâncias semelhantes, o exercício do poder por Nestor Kirchner – um peronista com posições de centro-esquerda – constituiu uma agradável surpresa. Resistindo ao FMI, seu governo declarou uma moratória sobre a dívida privada. Essa medida entrou em vigor no final de março de 2005, quando os credores aceitaram a proposta de renunciar a 65,5% do que lhes era devido. No dia 10 de março, imediatamente retransmitido por centenas de manifestantes que ocuparam postos de gasolina, Kirchner convocou um boicote contra as empresas petrolíferas Shell e Esso, que haviam aumentado os preços de seus combustíveis em 3%. A partir de então, entretanto, a situação social, extremamente preocupante, quase não evoluiu.
No Equador, Alfredo Palacio, o novo presidente, assume o comando do país numa situação de extrema fragilidade. Por convicção ou para acalmar as pressões populares, o ministro da Economia, Rafael Correa, avaliou que “os acordos comerciais devem ser respeitados, mas os países não devem negociar em condições de escravatura6“. Manuel Gándara, ministro do Interior, fez saber que as negociações sobre o TLC estão interrompidas; que todos os contratos para exploração de minério e petróleo serão reexaminados; que o Equador assumirá uma posição de distância em relação ao Plano Colômbia; que será estudada a revogação de um acordo assinado em 1999, concedendo aos Estados Unidos uma base militar em Manta – 500 soldados norte-americanos estão alojados nessa instalação estratégica do Southern Command (Comando Sul do exército dos Estados Unidos), tendo por alvo os guerrilheiros colombianos7. Em relação a este último ponto, entretanto, após um almoço com a embaixadora norte-americana Kristie Kenney, o presidente Palacio já teve que fazer marcha à ré… Uma reprise do caso boliviano?
A convulsão boliviana
Espremido entre a pressão popular e a bigorna do FMI e das multinacionais, Mesa não conseguiu governar
Neste país, a “guerra da água” – travada contra o efeito das privatizações – e, em seguida, a “guerra do gás”, que explodiu pelos mesmos motivos (80 mortos, 500 feridos) puseram em fuga o ultraliberal Sánchez de Lozada8. No dia 18 de julho de 2004, seu sucessor Carlos Mesa, apoiado pelo Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo Morales, principal partido de oposição, organizou um “plebiscito do gás”, durante o qual a população se pronunciou maciçamente a favor de uma recuperação do petróleo e do gás. O movimento social unificou-se em torno de quatro reivindicações: convocação de uma Assembléia Constituinte – a exemplo do que foi o ato fundador da revolução bolivariana, na Venezuela; rejeição da Alca e do TLC; expulsão do país da empresa transnacional Aguas de Illimani (Suez Lyonnaise des Eaux); e votação de uma lei sobre hidrocarbonetos estabelecendo, entre outras medidas, um imposto de 50% (aprovado pelo plebiscito) sobre sua exploração por consórcios transnacionais.
Espremido entre o malho da convulsão social e a bigorna do FMI, do Banco Mundial e das multinacionais, o presidente Mesa tenta agora argumentar que é “impossível” fazer entrar em vigor tal lei – já aprovada pelo Congresso – pois a comunidade internacional não a aceita9. Violentamente contestado, ele não consegue mais governar10.
Usufruindo de uma espécie de poder de veto graças a uma desobediência civil generalizada, a oposição nem por isso sai necessariamente fortalecida. Desprovidos de ideologia e de uma base popular, os chamados partidos políticos tradicionais se limitam a desempenhar um papel menor nos acontecimentos. Mesmo dirigentes radicais, como Felipe Quispe (Movimento Indígena Pachacuti, MIP) e Evo Morales (MAS) – pessoalmente criticado por ter aceitado, num primeiro momento, um pacto com Mesa -, correm o risco de serem submetidos à “justiça comunitária” se traírem o Pacto Pela Dignidade e Soberania do Povo Boliviano, recentemente aprovado com a participação da central operária COB.
Confusões à vista
No Peru e na Nicarágua, a situação é marcada pela incerteza e pelo risco do caos, sem alternativas concretas à vista
A situação poderia se repetir, amanhã ou depois, no Peru, onde o desastre Alejandro Toledo se sucedeu à catástrofe Alberto Fujimori. Bloqueios de estradas, ocupação de edifícios públicos, tentativa de golpe abortada (dia 1º de janeiro de 2005, por um grupo de ex-militares ultranacionalistas), confrontos com a polícia e o exército… A corrupção, presente em toda a engrenagem do Estado, e o desastre social proporcionam um permanente debate: Toledo deve ser mantido no poder até 2006 ou deve ser “tirado” antes? Entretanto, também aqui, não existe qualquer perspectiva de mudança política, dada a enorme rejeição dos partidos políticos e seus líderes.
Mesmo na Nicarágua, agitada durante os meses de abril e maio por violentas manifestações contra o aumento dos preços dos combustíveis e onde mais de 80 prefeitos (de um total de 152 municípios) exigiram do presidente Enrique Bolanos que resolva os problemas de energia ou renuncie, não é certo que a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) esteja em condições de governar, caso… A Frente passa por uma grave crise – decorrente da falta de democracia interna – que levou ao afastamento de um número considerável de ex-militantes e filiados.
Trata-se de situações mais marcadas pela incerteza e pelo risco do caos do que pelo surgimento de alternativas concretas. Não é, pois, de estranhar que, perdendo seus “peões” um por um, Washington passe à defensiva. Na opinião do general Bantz Craddock, comandante-em-chefe do Southern Command, “na Bolívia, no Equador e no Peru, a desconfiança e a falta de credibilidade nas instituições estimulam a emergência de demagogos antiamericanos, antiglobalização e antilivre-comércio11“. Pior ainda! O eixo Brasil-Argentina-Uruguai-Venezuela (e, neste caso, com Cuba nos bastidores) mina todas as iniciativas do Departamento de Estado no sentido de retomar o controle.
Reação aos EUA
Em mais de uma situação, os Estados Unidos tiveram negadas suas pretensões na América Latina
Quando os Estados Unidos propuseram, perante a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), reunida em Fort Lauderdale, na Flórida, em julho de 2004, a idéia de uma modificação na Carta de princípios interamericana de modo a permitir que fossem isolados os países que “se afastassem gradualmente da democracia”, e até fosse permitida a intervenção (objetivo: a Venezuela), tudo o que receberam foram sorrisos cordiais. Por ocasião da reunião dos ministros da Defesa (em Quito, de 16 a 18 de novembro de 2004), a Venezuela, o Brasil e a Bolívia recusaram, sob o argumento da não-ingerência, a pretensão do secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, apoiado por dirigentes colombianos e centro-americanos, de elaborar uma nova concepção da “segurança preventiva” e de constituir uma força multinacional latino-americana – sob o comando do Pentágono, evidentemente.
Ora, mesmo na Colômbia de Alvaro Uribe Vélez, seu vassalo mais fiel, a política norte-americana não consegue progredir. Apesar de 3,3 bilhões de dólares de ajuda militar a Bogotá durante os últimos seis anos, da entrega de 65 helicópteros “Blackhawk” e “Huey”, da formação de três novos batalhões de elite, o exército colombiano não consegue sair do atoleiro do conflito interno.
Na mais ambiciosa ofensiva já lançada contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o “Plano Patriota” – operação que envolve 17 mil soldados na região sul do país – não conseguiu superar a mobilidade dos guerrilheiros que, alternando rapidez e surpresa, na montanha e na selva, derrotam os pesados batalhões. No momento em que a secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, em visita a Bogotá, no dia 27 de abril de 2005, anunciava para setembro deste ano o fim oficial do “Plano Colômbia” (mas não o da ajuda norte-americana), as tropas governamentais sofriam um duro revés na região sudoeste do país e uma violenta crise eclodia dentro do exército. A destituição de quatro generais de alta patente12 evidenciou as profundas fraturas existentes numa instituição traumatizada pelas mudanças de doutrina impostas pelo Pentágono e por seu fracasso militar.
A pedra no caminho de Washington
A Venezuela é a pedra no sapato de Washington, que acusa o país de exercer “papel desestabilizador” na região
Uma outra pedrinha, e grande, no sapato de Washington… “A Venezuela exerce uma influência desestabilizadora na América Latina”, advertiu Rice em fevereiro. No entanto, as fortes pressões diplomáticas para que seus vizinhos tentem “lulalizar13” o presidente venezuelano não dão em nada – o homem não é do tipo que se deixa manipular. No dia 26 de abril, quando deu início, em Brasília, a uma turnê por quatro países do continente (Chile, Brasil, Colômbia e El Salvador), a secretária de Estado norte-americana não conseguiu obter a mínima declaração crítica em relação à revolução bolivariana – uma recusa que também ocorreu, cordialmente, em Santiago.
Não que a política de ruptura de Chávez faça seus vizinhos darem saltos, entusiasmados. Do modelo de integração do Mercosul – que ele define como “submisso às exigências do capital e da lógica mercantil” -, ele não tem, com certeza, a mesma opinião que a do Brasil, convertido ao “realismo” e parabenizado pelo FMI. Chávez defende, de maneira incansável, a criação da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba14), uma organização de conotação fortemente social, e, no dia 4 de março, chegou a declarar: “Devemos inventar o novo socialismo para o século XXI. O capitalismo não é um modelo de desenvolvimento durável.”
No entanto, os objetivos voltam a ser os mesmos quando se trata de reforçar a Comunidade Sul-Americana das Nações (CSN15), fundada em 8 de dezembro de 2004, assim como uma ordem internacional rejeitando o unilateralismo e baseada na igualdade dos Estados. Os acordos econômicos (energéticos, industriais) encarregam-se do resto. A título de exemplo: a Venezuela importa anualmente dos Estados Unidos, para sua indústria petroleira, 5 bilhões de dólares em equipamentos e serviços. Hugo Chávez deseja que, a partir de agora, 25% dessas compras sejam feitas à Argentina e ao Brasil. Por outro lado, e independentemente do que pensem, esses chefes de Estado devem cuidar de seus setores populares. É público e notório que os piqueteros argentinos ou os camponeses sem-terra brasileiros se sentem mais representados por Chávez do que por seus próprios presidentes.
Derrota na OEA
Pela primeira vez nos 60 anos de existência da OEA, foi eleito um presidente não apoiado pelos americanos
Mas o pior para Washington ainda estava por vir. Desde outubro de 2004, a Organização dos Estados Americanos (OEA) se encontrava acéfala devido à renúncia de seu efêmero secretário-geral (17 dias!), Miguel Ángel Rodríguez. Ex-presidente da Costa Rica, ele foi envolvido num caso de corrupção e está sendo julgado em seu país, acusado de ter recebido suborno, da ordem de 2,4 milhões de dólares, da empresa francesa Alcatel. São três os candidatos que aspiram a substituí-lo: o mexicano Luis Ernesto Derbez, conservador, ministro das Relações Exteriores e ex-consultor do Banco Mundial; o ministro do Interior chileno, José Miguel Insulza, ex-assessor de Salvador Allende e que exerce sua função no Ministério desde sua nomeação para a pasta de Relações Exteriores, em 1994; e, finalmente, o candidato da Casa Branca, o ex-presidente salvadorenho Francisco Flores. Quando ainda estava no poder, ele enviou um contingente militar simbólico para o Iraque (onde está até hoje).
Nos 60 anos de existência dessa organização de 34 países da América e do Caribe (com exceção de Cuba), jamais foi eleito um candidato não apoiado pela Casa Branca. Antes mesmo da primeira votação, no dia 11 de abril – e apesar das enormes pressões -, Flores parecia de tal forma isolado que, para evitar uma humilhação, Washington lhe pediu que retirasse a candidatura.
Em princípio, os Estados Unidos não têm mais divergências com o Chile – que não rompeu com a economia de mercado ortodoxa e assinou um TLC em 2004 – do que com o México, seu parceiro do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, sigla inglesa). Porém, num caso de enfrentamento, a margem de manobra de Santiago é muito maior do que a da Cidade do México. Washington pode pressionar seu vizinho do sul optando por reprimir ou regularizar os 4 milhões (ou mais) de mexicanos sem documentos, cuja remessa de dinheiro ao país – 38 bilhões de dólares em 2003 – supera as divisas arrecadadas com o turismo e representa a metade do valor das exportações mexicanas.
Recuo forçado
Para não ser humilhado, o governo norte-americano aceitou deixar passagem livre para o chileno Insulza, apoiado por Chávez
Por outro lado, Hugo Chávez apóia, com entusiasmo… o chileno Insulza. E tem suas razões: à solidariedade “sul-americana”, acrescenta-se o fato de que o presidente mexicano, Vicente Fox, tem vínculos de amizade pessoal com George W. Bush; que uma operação de desestabilização foi lançada pelo governo mexicano contra o prefeito, de esquerda, da Cidade do México, Andrés Manuel Lopez Obrador, candidato pelo Partido da Revolução Democrática (PRD) às eleições presidenciais de 200616; e que o México votou contra Cuba na Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas17. Obedecendo a orientações recebidas do Departamento de Estado, os países que apoiaram Flores fazem campanha para o mexicano Derbez.
Apesar de cinco votações, os dois candidatos permaneceram com os mesmos 17 votos cada um (são necessários 18 para ser eleito) – Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Equador, Venezuela, República Dominicana e mais dez países do Caribe votaram no chileno. Na véspera do dia 2 de maio, quando estava prevista uma nova votação – e apesar dos esforços desmesurados de Washington – parece que a tendência se acentua em favor de Insulza. O final só viria no dia 29 de abril, por ocasião de uma reunião de Condoleezza Rice com vários ministros das Relações Exteriores (El Salvador, Paraguai, Colômbia, Chile e Canadá), entre os quais Derbez e Insulza. Para surpresa geral, quando a reunião terminou, o mexicano Derbez anunciou que retirava sua candidatura.
Seria um erro pensar que a vitória do chileno significaria a chegada de um progressista ao comando da organização continental
“Condoleezza Rice compreendeu que continuar apoiando Derbez significava buscar a derrota”, analisa Peter Hakim, diretor da organização “Diálogo Interamericano”, com sede em Washington. “Se ele ganhasse por um ou dois votos, pareceria que o continente estava dividido por culpa dos Estados Unidos; e se ele perdesse, o que era mais provável, seria uma enorme derrota para… os Estados Unidos18.” Foi em tais condições que, para não ser humilhado, o governo norte-americano aceitou deixar passagem livre a Insulza, “candidato do consenso”, que finalmente foi eleito no dia 2 de maio com 31 votos (duas abstenções e um voto em branco).
Sob controle
Com certeza, e apesar dessa manobra de última hora, Washington terá sido o grande derrotado nessa votação. Mas seria um erro pensar que a vitória do ex-ministro do Interior chileno significaria a chegada de um progressista ao comando da organização continental. Segundo um diplomata que acompanhou de perto as últimas negociações, “vários elementos sugerem que, antes de lhe deixar campo livre, os Estados Unidos conseguiram compromissos – da parte de Insulza, assim como do governo chileno – particularmente no que se refere à política que a OEA adotará em relação à Venezuela e a Cuba”.
Nos bastidores de um cenário politicamente mais fragmentado do que nunca, nada indica, portanto, que o novo secretário-geral tenha as mãos inteiramente livres para se aventurar a querer impor um rumo que não seja aquele desejado pelos Estados Unidos.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Laurent Tranier, “Les indigènes équatoriens face au défi évangélique”, Le Monde diplomatique, abril de 2005.
2 – Cromos, Bogotá, 20 de dezembro de 1999.
3 – Criado em 1994, o Acordo reúne o México, os Estados Unidos e o Canadá.
4 – Fundadores do Mercosul em 1994, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai obtiveram a adesão da Bolívia e Chile (1996), do Peru (2003) e da Colômbia, Equador e Venezuela (2004).
5 – O parlamento chileno, que foi precursor, aprovou em outubro de 2003 um Tratado de Livre Comércio que entrou em vigor em janeiro de 2004. El Salvador, Honduras e a Guatemala ratificaram o Cafta, que ainda não foi aprovado pelo Congresso norte-americano.
6 – Ler, de Sally Burch, “Ecuador, cambio de rumbo?”, Alai, Quito, 22 de abril de 2005.
7 – Ler, de Hernando Calvo Ospina, “Aux frontières du plan Colombie”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2005.
8 – Ler, de Ignacio Ramonet, “Bolivie”, Le Monde diplomatique, novembro de 2003.
9 – A Argentina enfrenta 34 denúncias no Centro Internacional de Acerto de Discussões relativas aos Investimentos (Ciadi) do Banco Mundial. Ler artigo de Raúl Zibechi, La Jornada, México, 1º de abril de 2005.
10 – Nota do editor: a edição francesa foi encerrada antes da renúncia do presidente Carlos Mesa, em 06 de junho de 2005.
11 – Depoimento perante o Congresso dos Estados Unidos, 9 de março de 2005.
12 – General Roberto Pizarro, segundo homem no comando e chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; Fabio García, chefe das operações; Hernán Cadavid, chefe de planejamento; e Jairo Piñeda, inspetor-geral do exército.
13 – Alusão à política moderada do presidente brasileiro, Luiz Inácio “Lula” da Silva.
14 – Uma primeira reunião, entre Cuba e Venezuela, para avaliar a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), foi realizada em Havana, no dia 28 de abril, e aprofundou a colaboração econômica entre os dois países.
15 – A CSN reúne os países do Mercosul, os países da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela) e ainda o Suriname e a Guiana.
16 – López Obrador foi perseguido pela justiça mexicana devido à construção de uma via de acesso
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.