Síria, campo de uma batalha midiática
Como reportar uma revolta que já dura dezoito meses, considerando que o acesso por terra é perigoso? Se não restam dúvidas quanto à brutalidade do regime, a maneira como certas mídias reproduzem os Comunicados dos grupos de oposição e ocultam o jogo de potências redunda mais em propaganda do que em informaçãoMarc de Miramon e Antoin Amado
(Membros do Exército Sírio Livre durante combate na cidade de Alepo)
A Síria, “as armas químicas estão sob vigilância”, informou o Le Figaro (22 jul. 2012); “forças especiais americanas foram empregadas para prevenir sua dispersão”. E um diplomata alocado na Jordânia advertiu: “É a ameaça das armas químicas que pode dar início a uma intervenção norte-americana”. E mais uma vez nos encontramos, em Damasco, com algumas pequenas diferenças, muito perto da mesma história escrita em Bagdá dez anos atrás. Bashar al-Assad vai soltar armas de destruição em massa em sua oposição? A acusação já é, no entanto, datada de alguns meses: “Assassinos de Al-Assad lançaram na região de Al-Rastan, não muito longe da cidade rebelde de Homs, operações aéreas com utilização de gases tóxicos”, contava em setembro de 2011 o site de Bernard-Henry Lévy.1
“A AFP [Agence France Presse] ouviu esta afirmação de dezenas de interlocutores na província de Hama”, escreveu a agência de imprensa, com prudência excepcional, no dia 27 de julho de 2012. “Mas, a despeito de uma semana de pesquisas, nenhum chefe rebelde, chefe de tribo, médico, simples combatente ou civil pôde produzir uma prova irrefutável.” A guerra na Síria, conclui a matéria, “é também a da informação e da desinformação”.
Vinte e nove de janeiro de 2012. A informação saiu de uma conta do Twitter (@Damascustweet) pertencente a “militantes próximos da oposição”:2 Al-Assad teria fugido da Síria. O palácio presidencial estaria cercado pelo Exército Sírio Livre (ESL) e o ditador acuado teria tentado chegar ao aeroporto internacional da capital com esposa, filhos e bagagens para se refugiar em Moscou. Inverificável, o “rumor”, no entanto, não é “sem fundamento”, garante o site do Nouvel Observateur: “Segundo o correspondente da BBC no Oriente Médio, Jeremy Bowen, o ESL está a apenas trinta minutos do palácio presidencial de Bashar al-Assad, uma situação militar que poderia levar o ditador à fuga…”.3
Dezoito de julho de 2012. Enquanto uma nova ofensiva dos rebeldes provoca enfrentamentos de uma intensidade inédita em Damasco, uma bomba explode no quartel general do Conselho Nacional de Segurança Sírio, matando principalmente o ministro da Defesa, assim como Assef Shawkat, cunhado de Al-Assad. Nos grupos de informação franceses, os representantes da oposição, essencialmente oriundos do Conselho Nacional Sírio (CNS), comentam o acontecimento ao vivo. O regime, acredita-se, vive seus últimos dias, quem sabe suas últimas horas. “Sim, podemos dizer que é o início do fim”, estima Randa Kassis, presidente da Coalizão Leiga e Democrática Síria, membro do CNS. Fontes anônimas, citadas pelo jornal britânico The Guardian, afirmam que Al-Assad em pessoa foi ferido durante o ataque. Sua esposa novamente tomou o avião para Moscou. O ESL e um minúsculo grupo islamita reivindicam o atentado, enquanto o regime vê nele a mão das “potências estrangeiras” apoiando a oposição armada (Turquia, Catar, Arábia Saudita…).
No fim das contas, Al-Assad aceitaria “partir” dois dias depois, “mas de maneira civilizada”. Foi a nota que a AFP anunciou, no dia 20 de julho, pouco antes das 9 horas. Confirmada uns trinta minutos depois pela concorrente britânica Reuters, a informação retomou na verdade uma entrevista concedida pelo embaixador da Rússia na França à Radio France Internationale (RFI). Ele não anunciava de forma alguma a partida de Al-Assad, mas se contentava em lembrar o compromisso feito pela Síria em 30 de junho, em Genebra, de rumar “para um regime mais democrático”…
A democracia, eis pelo que lutam os sírios desde março de 2011 na revolta popular reprimida com uma brutalidade e uma crueldade amplamente documentadas.4 Mas o conflito também acontece no terreno midiático; uma guerra sobre a qual a maior parte dos órgãos de imprensa ocidentais não fala. Claro, a realidade do terreno é particularmente difícil de perceber. O regime dá vistos a conta-gotas. Os que conseguem, arriscando a vida, juntar-se aos rebeldes utilizam todos, ou quase, os mesmos canais que o ESL; suas histórias se unem logo ao storytellingdesenvolvido por esse mesmo ESL, assim como por seus padrinhos turcos, sauditas e catarenses: um regime bárbaro esmaga até sangrar as manifestações pacíficas, defendidas pelos militantes pró-democracia ricos em coragem, mas pobres em todos os outros aspectos: armas, munições, remédios…
Os poucos jornalistas que aceitaram o convite do regime5 de Al-Assad contam sem surpresa histórias radicalmente diferentes: cadáveres de soldados horrivelmente mutilados que se amontoam nos necrotérios dos hospitais, minorias (cristãs, alauitas etc.) aterrorizadas pelos grupos armados que não conduzem uma guerra de libertação, mas uma guerrilha confessional apoiada pelas petromonarquias do Golfo.
Complicadora para a oposição armada, a presença na Síria de grupos jihadistas, dos quais alguns se clamam pertencentes à Al-Qaeda, foi agora revelada. Uma razão a mais, insistiu o Libération (6 ago. 2012), para “ajudar politicamente e militarmente” os rebeldes, “nem que seja para não deixar o campo livre e a vitória final para os islamitas”.
Separar o trigo revolucionário do joio jihadista se revela por vezes uma tarefa delicada. Abou Hajjar, “mujahid que deixou a região parisiense há quatro meses para participar das revoltas contra o regime de Bashar al-Assad”, se define como um “ativista islamita, e não como um jihadista próximo da Al-Qaeda”. Testemunhando nas colunas do Figaro, ele jura que as “minorias cristãs ou alauitas”, que apoiam majoritariamente o regime, “serão representadas no Parlamento” da Síria do futuro.6 Apesar disso, ele indica ter aberto um “escritório da pregação” no vilarejo de Sarieh para difundir os “livros proibidos” de Ibn Taymiyya, um “grande teórico da jihad”, lembra o Le Figaro, sem precisar que ele é também o autor de uma fatwa chamando à guerra santa contra os alauitas.
Mas esses poucos testemunhos não tecem a trama da dramaturgia síria: pilhagem em Homs, massacre em Houla, morte dos jornalistas Marie Colvin, Rémi Ochlik e Gilles Jacquier – este último parece agora ter sido morto por tiros que vinham de posições rebeldes. Um punhado de agentes domina a narração do conflito. Entre eles, os principais canais por satélite do Oriente Médio, entre os quais a Al-Arabiya e a Al-Jazira, propriedades de dois pesos-pesados da Liga Árabe, novo porta-voz da diplomacia do Golfo: a Arábia Saudita e o Catar. Essas monarquias absolutistas, que não se apoiam em nenhuma legitimidade democrática, ao mesmo tempo que promovem a “liberdade” em seus vizinhos, conduzem uma “guerra fria regional” à Síria, último regime árabe a participar, segundo elas, do “arco xiita” que se estende agora de Beirute a Bagdá, fazendo vacilar o Bahrein.
Esses canais se beneficiam de uma benevolência a prioriquanto à confiabilidade das informações que difundem, por mais fantasiosas que sejam. Assim, a ensaísta Caroline Fourest escreveu no Le Monde(25 fev. 2012): “Segundo a Al-Arabiya, opositores do regime iraniano afirmam que seu governo forneceu um forno crematório a seu aliado sírio. Instalado na zona industrial de Alepo, ele funcionaria a todo vapor… Para queimar cadáveres de oponentes?”.
A ditadura do instantâneo
Com relação ao resto, as mídias se apoiam no Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), órgão que fornece, por meio das agências de imprensa AFP, AP e Reuters, os balanços dos confrontos e as narrativas da oposição armada. Seu fundador, Rami Abdel Rahman, conta ter emigrado em 2000 para o Reino Unido, onde é proprietário de uma loja de roupas. De seu apartamento em Coventry, ele afirma ser o “único membro de sua organização baseado na Inglaterra. Mas tenho duzentos correspondentes voluntários na Síria, no Egito, na Turquia e no Líbano. São militares, médicos, militantes da oposição”. Ele reivindica uma completa neutralidade: “Não sou patrocinado por ninguém. Eu criei o OSDH em 2006 porque queria fazer alguma coisa por meu país”. Como, ajudado por um simples secretário, ele consegue obter e verificar quase em tempo real os números (de mortos e feridos) dos confrontos militares nos quatro cantos do país?
A AFP concedeu ao OSDH o status de fonte obrigatória, como detalha Ezzedine Said: “A primeira utilização do OSDH data de novembro de 2006. Essa organização se mostrou confiável e crível no passado, razão pela qual continuamos a utilizá-la”. O redator-chefe da antena de Nicosie, no Chipre, onde são centralizadas as notas sobre o Oriente Médio, reconhece, no entanto, que “nossos jornalistas não têm praticamente nenhum contato com os correspondentes dessa organização que estão no campo. Os que estão em Damasco não podem trabalhar livremente. Não estão em condições de dar uma visão global da situação do país. O OSDH, que nunca se compromete politicamente em seus comunicados, não é uma fonte perfeita. Mas é a que apresenta os dados menos fantasiosos sobre o número de mortos”. Na AFP, alguns não escondem o mal-estar: “Sabemos perfeitamente que o OSDH não é confiável”, lamenta um grande repórter do serviço internacional. “Mas continuamos ainda assim a difundir seus números. Quando questionamos a direção, a resposta é sempre a mesma: ‘Vocês provavelmente têm razão, mas as outras agências fazem a mesma coisa. E nosso setor é muito competitivo’.”
A maneira como o OSDH, por exemplo, cobriu o massacre de Houla levanta a questão sobre sua imparcialidade reivindicada, assim como sobre a confiabilidade de seus correspondentes. No dia 25 de maio de 2012, em Houla, 108 pessoas foram massacradas. Corpos de 49 crianças e 34 mulheres jazeram nessa região que agrupa diversos vilarejos e se situa ao norte da cidade de Homs. Em um comunicado datado de 26 de maio e retransmitido pela AFP, o OSDH reportou num primeiro momento a morte de 90 pessoas, causada por um bombardeio. Os observadores mandatários da ONU e da Liga Árabe afirmaram, no dia 29 de maio, que a maioria das vítimas foi executada por armas brancas. As Nações Unidas revelaram no mesmo dia que o setor do massacre era ocupado por forças da rebelião.
Nenhuma fonte independente e digna de fé pode dizer hoje o que realmente aconteceu em Houla, o que não impediu que o relatório inicial do OSDH fosse amplamente divulgado e explorado pela diplomacia francesa para dobrar a Rússia no Conselho de Segurança da ONU: “O massacre de Houla pode fazer evoluir as mentes”, esperava o ministro das Relações Exteriores, Laurent Fabius, numa entrevista ao Le Monde (29 maio 2012).
Donatella Rovera, que trabalha para a Anistia Internacional, esteve clandestinamente na Síria durante três semanas, entre abril e maio, para tentar estabelecer um balanço humano do conflito. Ela aponta a dificuldade de tal empreitada: “Os hospitais ainda não são fontes confiáveis, pois os feridos não podem ir para lá sem serem presos pelas forças de segurança. Eu me encontrava em Alepo durante uma operação maciça do Exército. Vi as pequenas unidades médicas que custaram uma fortuna instaladas nos apartamentos onde os médicos subequipados tentavam aliviar o sofrimento dos feridos. Nessas condições, os balanços são mais simples de ser estabelecidos. Quando chegamos depois dos fatos, é preciso recolher os testemunhos dos sobreviventes, dos vizinhos, encontrar os indícios deixados no campo, como estilhaços de mísseis ou traços de balas nas paredes”. E ressalta que é “possível trabalhar no exterior do país, mas, assim, dificuldades suplementares aparecem, principalmente com relação à confiabilidade das fontes que mal conhecemos e que podem ser tentadas a nos manipular”. No fim de julho, a Anistia Internacional anunciou 12 mil mortos, contra 19 mil pelo OSDH. O rigor que a ONG pretende ter contrasta com os dados levantados por Abdel Rahman. E, principalmente, não é compatível com a ditadura do imediatismo que condiciona hoje em dia a economia midiática, em particular suas redes numéricas.
Marc de Miramon e Antoin Amado são jornalistas.