Sob os bons cuidados da CIA…
A esquerda norte-americana encontra aliados inesperados em sua luta contra Donald Trump: os serviços de inteligência. Em guerra aberta contra o atual presidente, a quem acusam de conluio com a Rússia, estes não hesitam em se apresentar como a última trincheira da democracia. É preciso, contudo, ser acometido de amnésia para aceitar tal discurso…
Com a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, os norte-americanos poderiam se sentir menos propensos a cantar os louvores de seu sistema político. Não foi o caso. O discurso sobre a excepcionalidade dos Estados Unidos simplesmente mudou de forma: agora algumas pessoas gostam de repetir que os mecanismos de controle dos poderes previstos na Constituição (o sistema de “pesos e contrapesos”, ou checks and balances), juntamente com a poderosa burocracia da segurança nacional, oferecem uma resistência única à ameaça do autoritarismo. Para eles, a Agência Central de Inteligência (CIA), o Departamento Federal de Investigações (FBI) e a Agência Nacional de Segurança (NSA) são salvaguardas contra os potenciais desvios de Trump.
A burocracia não fazia parte do projeto dos Pais Fundadores. Quando Thomas Jefferson foi eleito presidente em 1801, o Poder Executivo era limitado a 132 funcionários e o gabinete do presidente tinha apenas um membro – seu secretário pessoal. Da mesma forma, antes dele, George Washington e seus colegas não previram o surgimento das formações políticas, e o Partido Democrata-Republicano só surgiu em 1792, ou seja, quatro anos após a ratificação da Constituição. Na ordem política que aos poucos foi se impondo, os membros do Congresso tinham interesse no sucesso de um candidato de seu próprio campo. Desde então, o único remédio constitucional para possíveis delitos do Executivo – o procedimento de impeachment, que permite ao Legislativo destituir um membro do governo – revelou-se pouco adequado para punir crimes e delitos menores cometidos por amigos e aliados do presidente.
“Estamos aqui desde 1908”
Para preencher essa lacuna, foi encontrada uma solução no final do século XIX: os “procuradores especiais” ou “independentes”, que substituíram o Departamento de Justiça quando suspeitas de conflito de interesses mancharam uma investigação sobre um dos braços do poder. O primeiro deles, John B. Henderson, foi nomeado em 1875 para conduzir as investigações sobre o escândalo do Whiskey Ring, um caso de apropriação indevida de fundos públicos envolvendo produtores de uísque, funcionários do Tesouro e líderes políticos. O mais recente se chama Robert Mueller e, desde maio de 2017, está interessado em um hipotético conluio entre a equipe de campanha de Trump e o governo russo. Seria possível mencionar também William Cook, encarregado de um caso de corrupção no serviço postal em 1881; Francis Heney, que em 1905 tentou esclarecer um escândalo de suborno na alocação de concessões de petróleo; ou ainda Archibald Cox. Nomeado em maio de 1973 no contexto do Watergate, um caso de espionagem política envolvendo a Casa Branca, ele foi demitido em outubro pelo presidente Richard Nixon. De fato, os promotores “independentes” continuam a ser uma solução insatisfatória: sua nomeação depende da boa vontade do Departamento de Justiça e nenhuma salvaguarda constitucional impede sua demissão.
De resto, a independência administrativa é uma faca de dois gumes. Necessária no caso de procuradores especiais, também é muito apreciada por burocratas da segurança nacional que, há alguns anos, não param de exigir mais autonomia. Anteriormente, quando uma decisão presidencial lhes desagradava, eles expressavam sua oposição de maneira passiva, redobrando a lentidão administrativa, por exemplo. De agora em diante, eles expressam abertamente sua oposição, multiplicando reprimendas públicas e vazamentos para a imprensa.
Quando dirigiu o FBI, James Comey não hesitou em revelar uma conversa em que o presidente Trump, segundo ele, lhe teria pedido para abandonar as investigações sobre seu conselheiro, Michael Flynn, acusado de mentir sobre suas ligações com a Rússia. Tendo passado pelo FBI e pela CIA, Philip Mudd justificou o esforço de seu ex-chefe. “O pessoal do FBI subiu o tom”, alertou ele na CNN, em 3 de fevereiro de 2018, “e é isso que eles lhe dirão, presidente: ‘Se acha que pode nos fazer desistir do caso porque está tentando intimidar o diretor, é melhor pensar duas vezes. Você está aí há treze meses, estamos aqui desde 1908 [ano em que o FBI foi fundado]. Se quiser jogar esse joguinho, quem vai ganhar somos nós’.” Samantha Power, embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas durante a presidência de Barack Obama, considerou no Twitter (17 mar. 2018) que “não seria uma boa ideia contrariar John Brennan”, justificando as declarações hostis a Trump desse ex-diretor da CIA, de 2013 a 2017. De fato, como esclarece Chuck Schumer, líder da minoria democrata no Senado, “as pessoas que trabalham em serviços de inteligência têm mil e uma maneiras de se vingar”.1
Tais declarações causam estupefação. A Constituição, é verdade, prevê mecanismos de contrapoder para impedir os eleitos de sair dos trilhos, mas os funcionários da segurança nacional com certeza não fazem parte disso. Pelo contrário: se os cidadãos confiam nas agências de inteligência, é porque se espera que elas prestem contas aos representantes políticos eleitos. Uma vez quebrada essa conexão com o voto popular, a legitimidade constitucional das agências desaparece.
Muitos norte-americanos odeiam Trump. Mas, ao contrário do ditado popular, na política o inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo. É preciso ignorar a história recente dos Estados Unidos para considerar os serviços de inteligência como baluartes das liberdades civis e políticas. Mergulhar no relatório da comissão Church, nome dado em homenagem a um senador democrata de Idaho, ajuda a refrescar a memória.
Publicado em 1976,2 esse relatório detalha uma série de maquinações escondidas. Não se trata de malfeitos ocasionais cometidos por caubóis solitários, mas de operações meticulosamente pensadas, elaboradas por esses chefes de serviços de inteligência que agora inspiram tanta confiança a algumas pessoas. Durante décadas, esses serviços, nas palavras do cientista político Loch Johnson, “têm empregado suas artimanhas contra as pessoas que eles deveriam proteger”,3 mostrando como agentes zelosos atuando em segredo podem gradualmente reverter o equilíbrio entre liberdade e segurança.
Instaurado pelo FBI nas décadas de 1960 e 1970, o programa Cointelpro tinha como objetivo detectar grupos e indivíduos “subversivos” – isto é, opositores da Guerra do Vietnã, ativistas dos direitos civis… –, a fim de pôr fim às suas atividades. Para isso, o FBI solicitou e obteve a colaboração da Receita Federal. Ele se infiltrou em organizações religiosas, universidades e em muitos meios de comunicação, e se dedicou a incitar a violência dentro de grupos afro-americanos ou ainda a desacreditar seus líderes, sobretudo enviando centenas de cartas anônimas, uma delas para Martin Luther King, com a intenção de empurrá-lo para o suicídio. Todas essas iniciativas violavam a lei. Nada indica que o programa tenha sido aprovado fora do FBI e que até o vice-diretor do órgão ignorasse sua existência.
Com a operação Chaos, um vasto plano de espionagem levado a cabo entre 1967 e 1973, a CIA também teve como alvo o movimento pacifista. Ela fez uma lista de cem organizações e 7.200 pessoas que pretendia monitorar, apesar de as atividades delas nos Estados Unidos serem perfeitamente legais. Além disso, graças à operação Htlingual, ela abriu e leu dezenas de milhares de correspondências internacionais que tinham como destinatário ou remetente cidadãos dos Estados Unidos. Introduzido em 1952, esse programa durou mais de vinte anos. Nenhuma das subcomissões de controle estabelecidas pelo Congresso tinha ouvido falar dele. No início dos anos 1970, os diretores da CIA e do FBI mentiram para o presidente Nixon, dizendo-lhe que o programa havia sido interrompido.
Como parte do projeto Shamrock, lançado logo após a Segunda Guerra Mundial, a NSA coletou ilegalmente milhões de telegramas internacionais recebidos ou enviados por cidadãos norte-americanos. Tratou-se então, de acordo com a comissão Church, “do maior programa de interceptação de comunicações”. Estas não foram autorizadas por nenhuma autoridade judicial e não se tem certeza de que um presidente lhe tenha dado sua aprovação ou mesmo que tenha tido ciência disso. Nixon, aliás, parecia ter apenas um conhecimento muito vago da própria NSA. Em 16 de maio de 1973, durante uma conversa no Salão Oval, o advogado dele, preocupado, avisou-lhe que, ao autorizar o plano Huston (realizado conjuntamente pela CIA, o FBI e a NSA contra ativistas da esquerda radical), ele ilegalmente levava a NSA a mirar os cidadãos norte-americanos. E Nixon respondeu: “O que é a NSA? Que tipo de ação ela desenvolve?”.
É certo que esses abusos remontam a várias décadas. Daí a ideia de que eles não poderiam voltar a acontecer, porque o controle judiciário e a vigilância exercidos pelo Congresso teriam se tornado mais rigorosos. Tal otimismo não é justificado.
Um cão de guarda pouco feroz
Embora existam exceções – em maio de 2015, por exemplo, um tribunal federal de apelação julgou ilegal um dos programas de escuta telefônica da NSA revelado por Edward Snowden –, os tribunais rejeitam com frequência reclamações contra programas de segurança nacional, por se declararem incompetentes para tanto e sem jamais abordar profundamente a questão. Khalid el-Masri pode testemunhar isso. Confundido com um suposto integrante da Al-Qaeda, esse cidadão alemão foi preso pela CIA na Macedônia em 2004. Transferido para o Afeganistão por meio dos “voos secretos” da agência, ele foi preso e torturado durante vários meses. Uma vez libertado, ele entrou com uma ação legal nos Estados Unidos, mas o tribunal rejeitou sua queixa. Motivo apresentado? Uma investigação poderia revelar segredos de Estado.
Será que a nova firmeza do Congresso realmente se manifestou por ocasião da investigação do programa de detenção e interrogatório da CIA, o maior já realizado sobre esse assunto? O alentado relatório de 6 mil páginas, divulgado em 2014 pelo Comitê de Inteligência da Câmara dos Representantes, afirma que a CIA mentiu sistematicamente para o Congresso e para a Casa Branca sobre a gravidade e a eficácia das “técnicas de interrogatório aprimoradas” infligidas aos detidos.4 Mas o documento não discute a legalidade dessas técnicas nem defende nenhuma reforma projetada para evitar a reincidência. Além disso, uma nota de rodapé discreta afirma que a comissão não teve acesso a 9.400 documentos que considerava relevantes para suas investigações. Ela, no entanto, solicitou a consulta deles em três cartas sucessivas ao presidente Barack Obama, que nunca respondeu. A comissão reagiu abandonando seu pedido. E ela é o cão de guarda mais ameaçador do Congresso…
É com isso que se parecem as agências de segurança, agora elogiadas como baluartes da democracia. Como ter certeza de que um dia, argumentando uma situação de “emergência” para a segurança do Estado, elas não vão retomar seus velhos hábitos? Os serviços de inteligência não são destinados a controlar as decisões dos líderes eleitos. Pelo contrário. Assim, quando Trump acusa o FBI de não ter impedido a matança de Parkland, que causou a morte de dezessete pessoas em uma escola na Flórida em fevereiro, temos o direito de nos perguntar por que o próprio presidente não fez nada. Afinal, o FBI se reporta ao Departamento de Justiça e, portanto, trabalha para ele. Como o próprio Comey reconheceu, “como membros do Poder Executivo, estamos todos sob a autoridade direta do presidente”. Quando ela intervém para substituir a arbitragem do eleitor, o alto serviço público corrói a democracia que deveria proteger.
*Michael J. Glennon é professor da Fletcher School of Law and Diplomacy, da Universidade Tufts, em Medford, Estados Unidos. Autor de National Security and Double Government [Segurança nacional e governo duplo], Oxford University Press, 2014.