Sob uma cortina de fumaça
O cenário criado pelos oligopólios da imprensa não impõe divisões ao mundo e diz aceitar todas as opiniões, camuflando sua ação política. No lugar da denúncia à ideologia, há categorização do planeta em democracias e ditaduras, regimes de liberdade ou de opressão. No maniqueísmo torto a Venezuela de Chávez é alvo fácilMaximilién Arvelaiz
No auge da Guerra Fria, quando a democracia capitalista estadunidense e o socialismo soviético eram os principais modelos a competir pela hegemonia política e econômica mundial, a metáfora da Cortina de Ferro foi utilizada para descrever a divisão do planeta a partir do coração da Europa. De um lado e de outro, a Cortina de Ferro mantinha as pessoas para dentro e a informação para fora – embora o clima fosse de iminência permanente de guerra, a população de um lado pouco ou nada sabia sobre a realidade econômica e social do outro lado, baseando-se em preconceitos genéricos e informações fragmentadas para formar uma imagem da vida no outro bloco de nações.
Esse fenômeno de radicalização generalizada, ou a percepção dele, foi declarado morto pelo “vitorioso” consenso de Washington. Mas, assim como a própria história, não deixou de existir, como prova a rica dinâmica política dos primeiros anos do século XXI. Houve, porém, mudança dos agentes do confronto ideológico. Os padrões de manipulação da informação, comuns aos informes e campanhas oficiais das potências do século passado, foram “privatizados”: a omissão, inversão e descontextualização tornaram-se as grandes armas dos conglomerados midiáticos em seu fervoroso combate contra quem ousa opor-se à perversa ordem mundial que sustenta uma potência única – e todas as vantagens que ela proporciona a uma parcela ávida e inescrupulosa do grande empresariado, que inclui os monopólios de comunicação – por meio da exploração dos povos ditos subdesenvolvidos.
São campanhas mais ou menos descentralizadas, nas quais não está claro se órgãos patronais internacionais como a SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa, cujo campo de atuação é o nosso continente) apenas concentram e distribuem as opiniões dos conglomerados de mídia que a integram ou se ditam uma linha editorial hegemônica para determinados assuntos macroeconômicos e políticos.
Trata-se, no entanto, de um novo campo de combate. A Cortina de Fumaça criada pelos oligopólios da imprensa não impõe divisões ao mundo e proclama aceitar todos os matizes de opinião, porque camufla sua ação política. No lugar da denúncia à ideologia, há categorização do planeta em democracias e ditaduras, regimes de liberdade ou de opressão, paisagens de progresso ou retrocesso: os alinhados ao Império, na primeira categoria; seus adversários, invariavelmente, na segunda. Nesse maniqueísmo torto, a Venezuela Bolivariana do presidente Hugo Chávez é alvo fácil: o alerta vermelho soou no minuto em que o Estado tomou posição contra os latifúndios, a exploração da miséria e as elites que se penduraram em cargos públicos na PDVSA (companhia petrolífera da Venezuela) para enriquecer ilimitadamente, sem se preocupar em desenvolver uma economia nacional sustentável. A favor, portanto, do país e de sua população, sem privilégios individuais.
Uma nova cultura política
A vitória do presidente Chávez nas eleições de 1998, por si só, teve grande significado para o povo venezuelano: pela primeira vez na história da democracia representativa em nosso país, um legítimo integrante do povo, de origem pobre e com pleno conhecimento das agruras da segregação social na Venezuela, chegou ao poder pelo voto – movimento que, nos anos seguintes, se reproduziu por grande parte da América Latina, de Argentina, Uruguai e Paraguai ao Equador, passando por Brasil e Bolívia. Cronologicamente, situamo-nos na vanguarda do movimento político que levou quase todo o subcontinente a uma “guinada à esquerda”. Para além de uma vitória com significado eminentemente simbólico e em busca da vanguarda política, o governo tem buscado institucionalizar a participação popular de forma que a administração do país seja, cada vez mais, movida pela autodeterminação do povo.
O “Socialismo do Século 21” que norteia o governo do presidente Hugo Chávez é chamado dessa maneira não apenas para se situar na linha histórica, mas porque se diferencia das experiências anteriores pelo incentivo radical à democracia participativa. A população participa ativamente na elaboração e execução de políticas públicas, além de eleger representantes.
Em 2006 foram instituídos os Conselhos Comunais, nos quais participam cidadãos de origens e preferências políticas diversas e que traçam o diagnóstico das necessidades comunitárias, elaboram e gerem políticas públicas – como, por exemplo, as Missões Sociais, responsáveis por ampliar significativamente o acesso da população a serviços de saúde e educação. Tanto que a Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, considera a Venezuela um país livre do analfabetismo.
Em 2010, a possibilidade de participação foi ampliada com a criação das Comunas, conselhos deliberativos formados a partir de um Conselho Comunal ou da união de vários deles. As Comunas elaboram projetos com financiamento direto do governo federal e têm como incentivo à criação de cooperativas a preferência na participação de licitações e a isenção de impostos. Têm poder até sobre a criação de novas moedas, desde que em consonância com o Banco Central. As comunas são talvez a mais progressista das reformas feitas pela Revolução Bolivariana na distribuição de poderes administrativos.
Não foi uma invenção de teóricos encastelados no Palácio de Miraflores: o modelo das Comunas é muito próximo da realidade em barrios como o 23 de Enero, comunidade no centro de Caracas no qual há autogestão de infraestrutura e uma moeda paralela baseada no trabalho comunal, com a qual se pode fazer compras em mercados socialistas, onde carne e leite são vendidos por até metade do preço convencional. Lá, o objetivo da autossuficiência se torna cada vez mais uma realidade. No passado, seria inimaginável que o Estado desse apoio a iniciativas dessa natureza. Hoje, o que existe é o incentivo à “exportação” desse modelo para o restante da Venezuela.
O relacionamento intenso entre população e governo é uma constante na trajetória do governo Chávez: a pressão por uma nova Constituição, mais justa e abrangente, partiu principalmente dos movimentos sociais, assim como as primeiras discussões sobre reformas essenciais na estrutura do Estado e em sua legislação. Quando a elite investiu contra o presidente e aplicou um golpe contra o governo, a movimentação da sociedade organizada foi massiva e trouxe Chávez de volta ao poder em poucos dias.
Muitas críticas feitas ao modelo de governo venezuelano, erroneamente classificado como “autoritário” por oposicionistas, acontecem porque a antiga elite política vê o poder escapar por entre seus dedos: as reformas no Estado e a operação dos principais programas sociais do governo são discutidos com a população e operacionalizados por ela, em um relacionamento simbiótico.
A determinação do presidente Chávez em fortalecer esse processo representa um salto gigantesco em relação ao relacionamento do Estado com o povo nas décadas anteriores. Por 40 anos, dois partidos conservadores ligados às elites alternaram-se na presidência, oferecendo pouca ou nenhuma perspectiva de melhora à população carente da Venezuela. A exclusão instituiu-se política, econômica (em 1999, 17% da população estava abaixo da linha da pobreza extrema, contra menos de 8% em 2007) e até geograficamente – empilhada nos morros, a miséria circundava uma cidade rica em prazeres inacessíveis, uma paisagem muito próxima à do Rio de Janeiro – enquanto as elites passavam os fins de semana em Miami, onde faziam as compras do mês.
Desafios para o desenvolvimento econômico
O modelo econômico da Venezuela atual é sintomático da postura da sociedade e dos governos anteriores à Revolução Bolivariana: décadas de exploração do petróleo como fonte única de uma riqueza que raramente foi convertida em investimento no desenvolvimento de outras economias, nem mesmo na produção interna de alimentos, deixaram a Venezuela em posição de dependência extrema do preço do barril do petróleo e da importação de bens básicos de consumo. Um dos maiores desafios do presidente Hugo Chávez é mudar essa realidade.
A Lei de Terras, uma das primeiras medidas polêmicas adotadas pelo presidente Chávez e uma das principais motivadoras do golpe das elites contra o governo em 2002, promove o combate ao latifúndio por meio da distribuição de campos produtivos para os camponeses venezuelanos (antes sob controle, sobretudo, de multinacionais que não revertiam sua produção para o mercado interno). Foi um passo importante para tornar a Venezuela autossuficiente em alimentos no futuro, combinado a outros programas do governo.
Ao mesmo tempo que importamos toneladas de carne bovina e frango congelado do Brasil e da Colômbia para abastecer o consumo interno, temos parceria com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) para desenvolver na Venezuela a agricultura familiar e qualificar a produção doméstica, uma vez que chegamos a um ponto em que é rara até mesmo a mão de obra qualificada em práticas modernas de cultivo e criação de animais.
Para citar a parceria com o Brasil mais uma vez, um dos principais produtos importados pela Venezuela de seu vizinho, hoje, são máquinas agrícolas e fertilizantes, com os quais o Estado busca incentivar o setor para permitir sua consolidação e expansão em pequenas propriedades privadas ou coletivas. Enfrentamos, nesse processo, a oposição furiosa de grandes fazendeiros e distribuidores de alimentos, que tentaram desestabilizar a sociedade por meio de cortes programados no fornecimento de gêneros alimentícios aos mercados e levaram à criação de uma rede de mercados controlados pela estatal do petróleo da Venezuela, a PDVAL – um dos inúmeros exemplos da conversão do lucro do petróleo em incentivo a outras formas de economia para diversificar a produção de riqueza.
Em muitos sentidos, e apesar das turbulências no mercado internacional que fizeram o valor do barril de petróleo oscilar consideravelmente nos últimos anos, o investimento tem sido bem-sucedido: enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) como um todo crescia a taxas próximas de 10% ao ano no período anterior à crise econômica mundial de 2008/2009, setores como a construção civil (crescimento de 30% ao ano), comércio interno (20% ao ano) e manufaturas (9,5% anuais) experimentaram um crescimento muito acima dessa média, estabelecendo indústrias e serviços, que eram menos que incipientes na história anterior da Venezuela.
Ainda vivemos um período de forte impacto da crise, mas esse processo não se encerrou: com a perspectiva de recuperação do crescimento a partir de 2011, essa característica de diversificação da economia se mantém e nos permite traçar um cenário positivo para um futuro próximo.
Um caminho a ser trilhado junto
Diversas vezes, quando da descrição de iniciativas do governo e de movimentos políticos em curso na Venezuela, nossos vizinhos são citados. Isso se dá em razão da emergência das forças progressistas à frente dos países da América Latina. Não se trata apenas de um paralelismo de momentos políticos: nunca, na história do continente, houve articulação regional de tamanha intensidade para elaborar políticas integradas de desenvolvimento econômico e social.
Recentemente, em pesquisa nos arquivos da Embaixada, constatei que não há registro de visita de um chefe de Estado brasileiro à Venezuela antes de 1979, embora sejam países tão próximos, que compartilham uma fronteira tão extensa. É um exemplo do isolamento absurdo a que nos submetemos por décadas.
A Revolução Bolivariana tem como uma de suas prioridades restabelecer o ideal cunhado por Simón Bolívar à época da emancipação da Gran Colômbia: um continente unido em um processo solidário de construção das estruturas que fariam deste território, abundante em riquezas naturais, uma potência mundial, e não um punhado de colônias.
Com esse objetivo em mente, a Venezuela estabeleceu uma agenda de implantação de diversos projetos de cooperação com os países vizinhos. Um exemplo magnífico é a refinaria de petróleo de Abreu e Lima, em Pernambuco, onde PDVSA e Petrobras terão a oportunidade de refinar 230 mil barris de petróleo por dia a partir de 2012 – investimento que, aliado ao investimento em oleodutos e gasodutos programado por Venezuela, Brasil e Bolívia, poderá significar a solução de grande parte dos problemas energéticos da região.
É importantíssimo ainda o avanço da Venezuela em direção à condição de membro pleno do Mercosul e a perspectiva de expansão do bloco para outros países, o que abriria os mercados internos das nações sul-americanas aos produtos da região. Apenas na Venezuela, são 28 milhões de pessoas que poderiam consumir mais manufaturados produzidos no continente, no lugar de importações mais distantes.
Em um momento em que os programas de transferência de renda criados pelos governos progressistas no continente fortalecem o poder de consumo da população e a economia no restante do mundo segue inconstante, fortalecer esses laços é indispensável para sustentar o desenvolvimento nas taxas dos últimos anos.
Não serão apenas os governos em ação articulada, no entanto, que poderão levar esse potencial ao máximo – estamos em débito há muito em relação a uma maior integração cultural regional, especialmente entre o Brasil e as demais nações sul-americanas.
Quando protestamos contra a imagem distorcida que o cartel da comunicação de massas dissemina da Venezuela e do presidente Hugo Chávez, é porque a mesma campanha gera preconceito entre as nações irmãs da América Latina, inclusive contra a ideia de se unirem em torno de objetivos comuns, e cria obstáculos aos processos de integração.
Não acreditamos que exista a possibilidade de se impedir permanentemente a união regional, destino manifesto do continente desde as guerras de libertação. Mas seria imprudente da parte dos governos, ainda que restritos a seus limites de atuação, deixar arrefecer um ideal tão nobre e necessário.
Os países da América Latina podem (e devem) seguir trabalhando por um modelo de desenvolvimento humanista, que traga à tona valores que sobressaiam da Cortina de Fumaça que confunde o observador desatento. Somente assim, pelas mãos do povo, pode ser alcançado o principal objetivo da Revolução Bolivariana, que não difere em sua essência dos demais movimentos progressistas da região: justiça, igualdade e autodeterminação.
Maximilién Arvelaiz é embaixador da República Bolivariana da Venezuela no Brasil.