Sobre abusos sexuais, isolamento social e rede de proteção
Para crianças, adolescentes e mulheres, o ambiente doméstico é o mais propenso a violar os seus direitos e suas integridades físicas, emocionais e sexuais
Em tempos de pandemia de Covid-19 e de isolamento social estamos mais próximos de compreendermos a maneira como crianças e adolescentes abusadas sexualmente são forçadas a lidar, em muitos casos, com a violência vivenciada, e, inversamente, estamos mais distantes de conseguir denunciar os casos justamente por causa da condição do distanciamento e de seus impactos sociais, econômicos e sexuais.
Mas não se engane, o isolamento social é uma medida necessária para enfrentar a disseminação do coronavírus e reduzir, quando possível, a sobrecarga nos serviços de saúde, além, também, dos óbitos. De toda forma, é justamente pela reorganização da rotina social, familiar, laboral e, por certo, afetiva e opressiva, desencadeada pelo isolamento social, que hoje diversos estudos1 estão alertando para o aumento considerável de casos de violência contra crianças, adolescentes e mulheres.
A razão é simples: para estes segmentos da população o ambiente doméstico é o mais propenso a violar os seus direitos e suas integridades físicas, emocionais e sexuais. Não à toa, os casos de violência doméstica-familiar e sexual ocorrerem preponderantemente no período noturno ou nos finais de semana, justamente quando há maior convivência entre os membros da família. E, paradoxalmente, são esses os turnos e dias em que os órgãos de proteção não estão funcionando, sobretudo as delegacias especializadas, os centros socioassistenciais e psicossociais.

O que estou a dizer é que, em muitas famílias, as relações de parentesco são estruturadas em relações de poder patriarcais e adultocêntricas, em que os homens adultos assumem o papel não apenas de pai, avô ou tio, mas também de agressor, situação esta que tende a emergir ou a se agravar em condições de estresse social e mudanças abruptas na vida, como a que passamos agora no contexto da Covid-19.
No caso da criança ou adolescente abusado sexualmente, lembra-nos Martine Lamour2, a relação estabelecida com o agressor, adulto ou não, tende a gerar formas de confinar as vítimas das possibilidades de denúncia ou de confrontação ao autor da violência. Dentre essas formas, a mais conhecida é o pacto do segredo, em que este é mantido ante ameaças graves caso seja revelado. Há também o sentimento de impotência da vítima, muitas vezes por causa da desqualificação que suas falas têm quando escutadas por outros adultos dentro da família, na escola e até mesmo por conselheiros tutelares e policiais. Uma última forma é o sentimento de culpa, quando a vítima se sente responsável pela violência sofrida, sobretudo porque o agressor ou outras pessoas julgam que a culpa pelo ocorrido é da própria vítima, daí enumerando mil razões para justificar o injustificável.
Em todos esses casos, a sensação básica vivida pela criança/adolescente vítima remete à metáfora do isolamento, pois por diferentes maneiras não lhe é possível sair do ciclo da violência e do contato com o agressor, além de buscar apoio e proteção. Evidentemente, o isolamento aqui não abarca os diversos sinais nas condutas, nos corpos e nas sexualidades das pessoas vítimas de abuso sexual, e que são apresentados e debatidos no Guia escolar: rede de proteção à infância3, do qual sugiro a leitura. O isolamento é a sensação de se sentir sozinha, desamparada e/ou impotente perante uma situação de violência sofrida e as condições de vida decorrentes disso.
Com o cenário vivido hoje por muitos de nós que estão em isolamento social, podemos imaginar melhor, a partir de nossa própria experiência, o que é sentir-se cerceado de nossos direitos em decorrência de um agente externo que nos ataca independente de nossos vontades ou condições de vida. Nesse ponto, o coronavírus e o autor de violência sexual conduzem a mesma objetificação do corpo de suas vítimas, mas por motivos distintos, pois o primeiro ataca a capacidade respiratória e o segundo a integridade sexual, mas buscando sempre atender suas próprias vontades ou desejos.
E as comparações terminam por aí. Pois, para além destas, o que mais interessa é que hoje, na situação que vivenciamos de pandemia, as crianças e adolescentes abusados sexualmente estão condicionados a um duplo isolamento: o dos efeitos da violência sexual e o das consequências do isolamento social. Ou seja, não somente a violência está se acirrando, como também a subnotificação dela, e parte disso tem relação direta com o isolamento social. É sobre esta intensificação dos riscos e das vulnerabilidades aos direitos sexuais de crianças e adolescentes que precisamos nos deter, como membros da rede de proteção e agentes corresponsabilizados pela garantia de seus direitos, como determina o artigo 227 de nossa Constituição Federal.
Do isolamento à ação: medidas em busca da proteção integral
A pergunta que nos cabe é: como responder a este cenário? Ou, o que fazer para enfrentar o aumento do risco ou da violação aos direitos sexuais de crianças e adolescentes?
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) procura indicar alguns horizontes de ações no documento Recomendações do Conanda para Proteção Integral a Crianças e Adolescentes Durante a pandemia da Covid-19.
Na Recomendação n. 8, o Conanda expressamente aponta a relação entre a situação social e familiar advinda com o isolamento social e o indicativo deste cenário poder “ampliar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes a situações de violência no ambiente doméstico/familiar”4. Daí considerando a importância da adoção de cinco medidas urgentes pela rede de proteção. Dentre essas, destacarei duas, pois considero-as mais bem estruturadas em seus conteúdos para já serem exequíveis:
“a. Promover a divulgação dos canais de denúncia nos meios de comunicação, uma vez que vários pontos da rede de proteção não estarão com contato permanente com as crianças/adolescentes; […]
d. Facilitar o contato das crianças com a rede de proteção para pedido de ajuda e, no caso dos Profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF) que se mantiverem em atividade de visitação domiciliar e que cuidem de famílias com crianças, estes devem estar atentos a essa questão e sempre tentar manter contato direto com a criança em busca de sinais indicativos de situações de violência, os quais devem ser informados à gerência da unidade para devidas providências.”
Com isso, é reforçada a importância dos canais de denúncia hoje existentes, como o Disque 100, o site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e o aplicativo para celular Direitos Humanos Brasil, compatível com os sistemas Android e iOS. Outros mais também devem ser informados. O substancial é garantir a produção de informações nos meios de comunicação que sejam em linguagem acessível às crianças e aos adolescentes, respeitando não apenas o recorte geracional, mas também aspectos ligados à diversidade cultural, racial, sexual e de gênero. Estes devem ser canais de rápido acesso e encaminhamento de denúncias, evitando, ao máximo, a burocratização do processo de denúncia, pois isto se torna uma barreira para sua efetivação.
Ao mesmo tempo, a ênfase à atuação dos profissionais da ESF, ligadas às Unidades Básicas de Saúde, é crucial porque são eles que têm contato mais próximo com as famílias, os domicílios e, com isso, as crianças e adolescentes. Evidentemente, o principal profissional, aqui, é o Agente Comunitário de Saúde (ACS), que, pelo seu trabalho de visitas domiciliares periódicas, pode ter um olhar atento para identificar possíveis sinais de violência sexual, e realizar a notificação ao Conselho Tutelar. Mas isso não se restringe aos ACS, envolve uma equipe mais ampla de profissionais formada por médico/a, enfermeiro/a, técnico/a de enfermagem e dentista, e todos/as precisam estar preparados para identifica e lidar com tais situações, ainda mais nos tempos em que vivemos, e sabendo que a notificação é compulsória, ou seja, obrigatória.
Outro espaço estratégico de discussão de medidas para prevenir e enfrentar a violência sexual em tempos de pandemia da Covid-19 é a escola. Está certo que a maior parte das escolas públicas está sem atividades, porém muitas instituições privadas continuaram as aulas por meio do ensino à distância, e, por isso mesmo, podem reforçar a realização de atividades e a disseminação de conteúdos relacionados ao enfrentamento da violência sexual e à promoção dos direitos sexuais.
As escolas, aliás, precisam estar precavidas do possível aumento de casos denunciados dentro de seus espaços quando as aulas voltarem à normalidade. Isso exige, uma vez mais, preparação, com conhecimento e organização. Por isso, uma boa ideia seria a direção das escolas estimularem os/as docentes a fazer cursos online sobre os direitos sexuais de crianças e adolescentes, de modo a dar-lhes subsídios para não apenas trabalhar em suas disciplinas, mas também auxiliar com medidas de atendimento inicial de casos identificados ou suspeitos no âmbito escolar.
Lembrando, também, que o atendimento é inicial, e nele não se deve revitimizar as pessoas, o que só é garantido evitando o relato sobre a violência sofrida e encaminhando rapidamente a demanda aos órgãos competentes. Mas, com o compromisso da comunidade escolar de dar suporte pedagógico e emocional para que as vítimas possam lidar com a situação sem que tenham de perder o ano letivo ou, até mesmo, ter de se mudar para outra escola, como já vi acontecer várias vezes.
Um último grupo de atuação são os próprios familiares, a vizinhança e os/as amigos/as. Primeiro, para dizer que o debate sobre este tema precisa ser incentivado e permanente dentro da família e em sua rede social. Um debate que seja, antes de tudo, dos direitos sexuais, e não restrito à violência sexual, o que envolve também a produção de informações sobre sexualidade, relações de gênero, diversidade sexual, entre outros aspectos, sempre numa linguagem acessível e interativa.
Sobre isso, a ONU Mulheres Brasil indica a necessidade de se falar sobre a igualdade de gênero com sua família, como uma forma de reduzir ou prevenir a violência e a desigualdade de gênero. E acrescenta: “[d]istanciamento social significa que o lar se torna uma escola para muitas famílias em todo o mundo. Adicione feminismo ao currículo. Converse sobre igualdade de gênero com sua família, amigos e amigas – especialmente crianças, meninos e meninas5”.
E acrescento: adicione a discussão sobre as relações intergeracionais, sexualidade, direitos das crianças, violência sexual, e faça isso com uso de inúmeros meios que disponibilizam material em linguagem acessível, como os vídeos do Canal Futura e os livros da Carolina Arcari. O acesso a tais informações objetiva, sobretudo, fomentar o autoconhecimento e a autoproteção de crianças e adolescentes.
Ao mesmo tempo, e por ser o grupo de maior proximidade e confiança com a criança ou o adolescente, cabe a cada membro estar atento aos sinais de casos ou suspeitas de violência sexual, e agir com o devido cuidado de levar a sério a fala das crianças e/ou adolescentes. É necessários protegê-las de uma maneira que também seja positiva para o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
E, no final, o Plano Nacional e o planejamento intersetorial
Queria aqui, no final, fazer menção à nossa principal referência técnico-normativa no combate a esse problema, que é, justamente, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esse plano foi aplicado em 2013 e, agora, em 2020, está em seu último ano de validade, em sintonia com o período de vigência do Plano Decenal dos Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes, que também encerra, agora, seu período de dez anos (2011-2020).
A Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes realizou, entre 2018 e 2019, um amplo processo de monitoramento dos seis anos iniciais de operacionalização do Plano (2013-2018), e elaborou um documento consistente (de 164 páginas!) com dados quantitativos e qualitativos sobre as metas e ações cumpridas e as que ficaram pendentes, além de recomendações de como melhorar o conteúdo e as formas de concretização do Plano.
Entregue o documento às autoridades responsáveis, em especial à Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pergunta-se: o que resultou do aproveitamento de seu conteúdo para delineamento das ações promovidas pelo governo federal em relação à temática? O que resultou de aproveitamento para construção do novo Plano Nacional?
Lembro que entre as recomendações da Comissão no relatório, três delas são de suma importância de serem discutidos neste momento (se ainda não o foram até agora):
“Realizar a revisão do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes [NEVSCA] em 2019; […]
Incluir as ações e indicadores do PNEVSCA de 2021 no próximo Plano Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente; e
Envidar esforços para que as ações do Plano Nacional sejam incorporadas nos Planos Plurianuais das três esferas de governo6.”
Por não ter ocorrido a revisão no Plano Nacional no ano passado, com base nos aportes oriundos do relatório de monitoramento dos primeiros seis anos de sua operacionalização, temos, neste momento, o desafio de pensar nesta revisão com foco no cenário da pandemia da Covid-19 e, mais adiante, na reunião de esforços intersetoriais para a criação de um novo Plano Nacional para 2021, alinhado com o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes a vigorar entre 2021 e 2030.
E, mais importante ainda, todas essas propostas precisam ter incidência direta na esfera orçamentária dos entes estatais, a começar pelo Orçamento de Guerra criado para custear medidas que abarquem diferentes dimensões do enfrentamento da Covid-19, e que também precisa perpassar os efeitos sociais que ela causa, entre os quais a violência sexual contra crianças e adolescentes. Além disso, os planos plurianuais, tal como mencionado no relatório, mas também avançando para as Leis de Diretrizes Orçamentárias e as Leis Orçamentárias Anuais, além de contar com possíveis aportes de entes da sociedade civil e das empresas, entre outros agentes. Isto é fundamental para que haja efetividade do cumprimento a curto, médio e longo prazo das medidas contidas no atual e no futuro Plano Nacional.
Em todo caso, o sucesso dessas medidas dependerá da capacidade de aproveitamento do monitoramento do Plano e, mais do que isso, de trabalharmos um processo de construção do novo Plano de referência nacional que seja participativo e amplamente discutido com a sociedade civil, em especial com as crianças e adolescentes, os principais interessados nesta pauta. E isto vale para o governo federal, e também se aplica para os governos estaduais e os municipais, além do Distrito Federal.
É tempo de levar a sério um planejamento integrado e intersetorial das medidas de enfrentamento da violência sexual e de promoção dos direitos sexuais de crianças e adolescentes. É tempo de reconhecermos que a adoção do isolamento social tem gerado um impacto severo na produção de violências, incluindo a sexual, contra crianças e adolescentes por conta do acirramento dos conflitos no ambiente doméstico-familiar, mas que não nos cabe somente tratar das consequências deste acirramento, ou seja, das violências e das formas de proteção e responsabilização, é necessário discutir e intervir sobre as causas, como a desigualdade socioeconômica, o machismo, o adultocentrismo e o racismo.
É tempo, sobretudo, de “fazermos bonito” mesmo em isolamento social, de fazermos a diferença com base no planejamento, no trabalho intersetorial e no compromisso com a prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes.
Assis da Costa Oliveira é doutor em Direito pela Universidade de Brasília, professor de Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará, coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais e advogado. E-mail: [email protected].
1 Não vou me ater detalhadamente à análise dos estudos. Deixo aqui uma pequena lista: (1) Aliança para a Proteção da Criança em Ações Humanitárias. Nota técnica: proteção da criança durante a pandemia do coronavírus, mar. 2020; (2) Nações Unidas. Policy Brief: The impact of Covid-19 on women, 9 abr. 2020; (3) Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Denúncias registradas pelo Ligue 180 aumentam nos quatro primeiros meses de 2020, maio 2020; (4) G1 Pará. Isolamento social na pandemia potencializa aumento de casos de abuso contra crianças e adolescentes, 15 mai. 2020.]
2 Cf. Lamour, Martine. Os abusos sexuais em crianças pequenas: sedução, culpa e segredo. Em: Gabel, Marceline (org.). Crianças vítimas de abuso sexual. 2 ed. São Paulo: Summus, 1997, p.54-59.
3 Cf. Santos, Benedito Rodrigues dos; Ippolito, Rita. Guia escolar: identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Seropédica, RJ: EDUR, 2011, p.88-93.
4 Cf. Conanda. Recomendações do Conanda para a proteção integral a crianças e adolescentes durante a Covid-19. Brasília, 2020, p.2.
5 Cf. ONU Mulheres. ONU Mulheres sugere nove ações que toda pessoa pode fazer na resposta à Covid-19 e eliminar a desigualdade de gênero dentro de casa, 3 abr. 2020.
6 Cf. Ministério dos Direitos Humanos. Relatório de monitoramento e avaliação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes: 2013-2018. Brasília: Ministério do Direitos Humanos, 2018, p.97.