Sobre diplomacia, saliva, pólvora e o direito brasileiro
Este artigo é concluído quase uma semana após a projeção de vitória de Biden, sem que Bolsonaro o tenha parabenizado pelo resultado, e as divergências na base que apoiavam o governo ficam cada vez mais evidente. Se os adversários do presidente cansarem de enviar notas de repúdio, este pode ser mais um campo numa longa lista para justificar seu afastamento.
No dia 11 de novembro, ao discursar em evento de lançamento de um programa de turismo no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que, diante da ameaça de sanções comerciais por país estrangeiro como reação às queimadas na Amazônia, “[a]penas a diplomacia não dá, né, Ernesto? E, quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão, não funciona. Precisa nem usar pólvora, mas tem de saber que tem. Esse é o mundo”. Conhecido por ignorar e passar por cima das instituições democráticas mais básicas do Estado brasileiro, ao afirmar isso, o presidente também provou ignorar o arranjo institucional que rege o uso da força e a declaração de guerra no sistema internacional pelo direito brasileiro, podendo incorrer em mais um crime de responsabilidade, para além da repercussão internacional de seus atos.

Se é verdade que a necessidade de mudança da política externa dos governos PT tem sido uma tônica comum nos discursos dos ocupantes do governo federal desde o impeachment da presidenta Dilma em 2016, também o é que a discricionariedade desses políticos em tomar decisões não é absoluta, mas regulada expressamente não apenas pelo direito internacional, mas principalmente pelo direito constitucional brasileiro, cujos disposições em alguns casos atravessarem regimes políticos historicamente diferentes e sobreviveram na Carta de 1988.
Este fenômeno não é uma exclusividade brasileira muito menos uma novidade do século XXI. Em manual de direito internacional publicado em 1932, Georges Scelle já explicava o que era o desdobramento funcional de governantes e agentes nacionais: ao mesmo tempo são agentes e governantes nacionais enquanto exercem as funções e competências dos sistemas internos; e são agentes e governantes internacionais ao exercerem as funções e competências internacionais. Tal desdobramento ou dualidade pode ser observado com relação ao uso da força: o governante brasileiro está ao mesmo tempo adstrito pelo direito brasileiro e pelo internacional.
Por isso que o discurso de Bolsonaro não pode ser ignorado como se fosse uma mera estratégia de mobilização de sua base política ou um arroubo similar a qualquer outro que costume ter nos momentos em que seus filhos são alvo da Justiça ou sofre algum revés em suas expectativas políticas (como poderíamos entender a perda de Trump para Biden, que nos importa aqui por sua repercussão na política interna). As declarações do presidente são atos relevantes também para o sistema internacional.
Neste, a legitimidade do uso da força como um instrumento das relações entre Estados diminui à medida que se promoveu os recursos aos meios pacíficos de solução de controvérsia ao longo do século XX. Foi colocado definitivamente fora da lei com a Carta da ONU após o fim da 2ª Guerra Mundial, entre as modificações para se tentar evitar uma terceira. Os Estados vencedores da guerra incluíram a obrigação da solução pacífica das controvérsias e a possibilidade de uso da força apenas em caso de legítima defesa diante de agressão (ou sua ameaça) ou no caso de ruptura da paz internacional com a chancela multilateral representada pela decisão do Conselho de Segurança ou das organizações regionais (capítulo VII da Carta). Mas quando o que está em jogo são sanções comerciais, o arranjo do sistema internacional pós-2ª Guerra traz um detalhe a mais: sanções comerciais impostas por um membro da OMC, como é o caso dos EUA, poderiam ser questionadas apenas na própria OMC.
Os atos do direito internacional, via de regra, contudo, não têm aplicabilidade imediata no âmbito interno, mas precisam de uma mediação; e vice-versa. Assim é que após a ratificação de um tratado internacional, ainda se espera a incorporação do seu texto por meio de um decreto presidencial, para que entre em vigor no ordenamento nacional. Neste contexto, quais são as instituições brasileiras relativas ao uso da força contra outro Estado?
Diferente de outros campos do direito brasileiro, as disposições constitucionais brasileiras relativas às relações internacionais do Brasil e a divisão de competência dos Poderes para sua gestão são marcadas por uma certa estabilidade histórica. Apesar de toda a mudança pela qual passou a organização do sistema internacional do século XIX para o século XXI, pouco se mudou na atribuição de competências entre Executivo, Legislativo e Judiciário de 1824 para cá, como já expliquei em diferentes dimensões em outras publicações.
No que se refere ao uso da força, com exceção da Constituição formal do Estado Novo de 1937, os diplomas constitucionais brasileiros priorizaram a solução pacífica de controvérsias desde 1891. As cartas de 1891, 1934, 1946 e até a de 1967 recusaram a guerra de conquista, priorizaram o recurso à arbitragem em caso de litígio e permitiram o uso da força apenas após o fracasso da tentativa de resolver pacificamente o diferindo. Já a de 1988 incluiu entre os princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil a defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos (artigo 4º). Isso significa que a ameaça do uso da força não é um instrumento reconhecido pelo direito brasileiro, pelo povo brasileiro para gestão de suas relações internacionais.
Paralelamente à legalidade do recurso à força nas relações internacionais do Brasil, as constituições brasileiras também regularam quem deveria participar do processo de tomar a decisão de usá-la contra outro estado – e aqui a coisa fica interessante, porque em geral se foca mais na declaração de guerra ato do direito internacional, do que nas disposições do direito brasileiro da declaração do estado de guerra. Este regula o procedimento em duas etapas, uma intraexecutivo e outra interpoderes.
No que se refere à primeira etapa, de organização interna do Executivo, ao contrário do que ocorre em outros temas para os quais a relação entre Presidente e seus subordinados não é regulada diretamente pela Constituição, a maior parte das cartas brasileiras, desde 1824, ou seja, desde a Constituição do Império, incluiu consulta à figura do Conselho de Defesa antes da declaração de guerra. Na atual, a previsão está no artigo 91 (declaração de guerra).
Em termos jurídicos, a declaração de estado de guerra estabelece um regime jurídico excepcional em que determinados direitos humanos serão restritos. O exemplo mais conhecido de restrição é que, apesar da proibição da pena de morte, no caso de estado de guerra, ela será permitida. No entanto, caso as medidas não sejam julgadas suficientes para responder ao momento, o Presidente pode ainda declarar o estado de sítio, com ampliação das restrições, com base no art. 137, que prevê a consulta não apenas ao Conselho de Defesa Nacional, mas também ao Conselho da República.
Uma vez passada esta etapa de consulta, a regra geral, desde 1891, é que o presidente brasileiro só pode declarar a guerra com a autorização do Congresso Nacional. Na 1ª constituição republicana, a única hipótese em que não seria necessária é a de invasão estrangeira, mas esta hipótese foi afastada expressamente pela de 1988, de acordo com a leitura conjunta dos artigos 4º, VI e VII, 84, XIX e 49, II. Esta autorização é necessária tanto para a declaração da guerra (um ato unilateral) quanto para a celebração da paz (por meio de tratado com a outra parte).
Vê-se, portanto, que, embora a competência para declarar a guerra seja do Presidente da República, foram estabelecidos mecanismos de freios e contrapesos no direito brasileiro, a fim de evitar o abuso e sujeitar suas decisões às instituições representativas do povo brasileiro. Obviamente, por si só, estas não são suficientes para garantir o respeito pelos ocupantes e é por isso que sua violação pode ensejar responsabilização com base em duas leis brasileiras: a Lei de Crimes contra a Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983) e a Lei do Impeachment (Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950).
A autorização do Congresso é tão fundamental para a legitimidade e a legalidade do ato, que o declarar a guerra sem a autorização do Congresso é um crime de responsabilidade contra a existência política da União (art. 5º, 8 da Lei do Impeachment). A redação original da alínea incluía a exceção dos casos de invasão que estavam na Constituição de 1946, mas não foram recepcionados pela de 1988. Além disso, o uso da força contra Estado estrangeiro, expondo o país ao perigo da guerra ou comprometendo-lhe a neutralidade é também um crime de responsabilidade contra a existência política da União (art. 5º, 3).
Por fim, a Lei de Crimes contra a Segurança Nacional adotada ao fim da ditadura militar, já no período de reforma e abertura, para substituir a anterior, tão criticada por seus abusos, estabeleceu em seu art. 22 que fazer propaganda de guerra em público é um crime contra a segurança nacional. Sua pena (detenção de 1 a 4 anos) pode ser aumentada de um terço se a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão.
Ninguém duvida que o momento atual seja de tensão para o presidente Bolsonaro, não apenas pelas questões relativas a seus filhos que podem eventualmente alcançá-lo, pela perda de prestígio político refletida na incapacidade de ter candidatos bem sucedidos nas eleições municipais, pelo agravamento da crise econômica que está para explodir, pelo possível sucesso de uma vacina para a covid-19 na qual não esteve envolvido, mas também pela pressão exercida pela mudança da conjuntura política internacional. A presença de Trump na presidência dos EUA era antes de mais nada um trunfo político interno para Bolsonaro, que vendia a promessa de benefícios derivados de uma suposta aproximação entre ambos para todas as bases de seu governo. Bolsonaro nunca fez propaganda ou promoveu uma relação institucional com o Estado, mas procurou explorar as vantagens de uma relação pessoal que nunca existiu de fato. Com a saída da pessoa do cargo, vai ralo abaixo seu trunfo, mas as reações que agradam uma parte de sua base desagradam a outra.
Este artigo é concluído quase uma semana após a projeção de vitória de Biden, sem que Bolsonaro o tenha parabenizado pelo resultado, e as divergências na base que apoiavam o governo ficam cada vez mais evidente. Se os adversários do presidente cansarem de enviar notas de repúdio, este pode ser mais um campo numa longa lista para justificar seu afastamento.
Elaini C. G. da Silva é doutora em Direito Internacional pela USP, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap, professora da PUC-SP e advogada em São Paulo. É autora de inúmeras publicações sobre a regulação da política externa como política pública desde 2006 e do livro “Direito Internacional em Expansão: a encruzilhada entre comércio internacional, direitos humanos e meio ambiente”.