Liberdade acima de tudo: a razão sem emoção?
Acima de tudo –über alles, conforme o próprio hino nazista- também está personificado na política brasileira “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, pregando, não por acaso, o ultraliberalismo econômico sobre qualquer demanda
Liberdade, igualdade e fraternidade são as palavras que pareciam ser as protagonistas para a criação da ideia de Estado dos tempos atuais. Como qualquer personagem protagonista de uma trama, sua desenvoltura vai depender das direções, cenários, enredos e apreciação do expectador. Será que seria possível manter três personagens como protagonistas? O que fazer quando uma delas fica acima das demais?
Essas três palavrinhas se tornaram o lema do movimento de criação do Estado que conhecemos hoje: leis, direitos, cidadania, justiça e liberdade. Num primeiro momento, elas embalaram uma grande revolução política iniciada na França em 1789. Inspiradas por textos que foram então chamados de iluministas, elas pareciam iluminar as mentes para criação de um novo mundo. O problema foi (ainda é) a ingênua crença de que as palavras possuíam significados óbvios e que tais significados puros e racionais lançavam luzes em nossas ideias.
Ainda é difícil aceitar que não são as palavras que iluminam nosso pensamento. Ao contrário, somos nós que iluminamos as palavras de acordo com nossos desejos, ideias e percepções comandadas por emoções, traumas e fantasias. Poucos anos depois da euforia revolucionária de 1789, o inevitável motor da história nos mostrou que não eram elas que nos iluminavam, mas o inverso.
A fraternidade logo perdeu seu holofote nos primeiros momentos da revolução francesa, quando os próprios revolucionários começaram a se matar, um caçando o outro em nome daquilo que cada um no poder entendia ser o melhor significado, ou papel, para nossas protagonistas. Em seguida foi a vez da igualdade perder seu destaque no palco. Desta forma, ficou claro que ricos e pobres, homens e mulheres, nacionalidades e profissões valorizadas, não podiam ser iguais porque os mais favorecidos não estavam dispostos e se sentirem com o mesmo foco de iluminação dado aos menos favorecidos.
Alguns enredos conseguiram criar meios de melhor organizar as contradições de sermos iguais, termos liberdade e, mesmo assim, conseguirmos conviver de forma fraterna, contradizendo a ideia hobbesiana de que somos lobos selvagens lutando contra nós mesmos. Outras versões, por sua vez, fizeram questão de iluminar a liberdade, relegando a igualdade e a fraternidade para meros papeis coadjuvantes, e quiçá figurativos, nessa peça fabulosa que foi a criação do Estado de Direito.
O que determinou que em alguns palcos a liberdade ganhasse protagonismo e tivesse holofotes exclusivos apontados para ela? Podem-se cogitar dois fatores. Um, de ordem conceitual, traz o problema de qualquer conceito generalista que procura dar conta objetiva do mundo real. Liberdade de que, de quem? O outro fator, mais filosófico, parte do preconceito reservado à ideia de racionalismo, em que a razão deveria dominar a emoção, colocando a liberdade no lugar de racionalidade perante as emoções de quem se deixa levar por sentimentos afetivos ou empáticos em defesa dos menos favorecidos economicamente ou de minorias étnicas ou sociais.
O primeiro fator, então, se refere ao próprio conceito de liberdade. Clamada por intelectuais e revolucionários durante o século XVIII, a liberdade ainda não se distinguia da emoção e da razão. Sem dúvida, porém, era pensada num pressuposto racional, pois aqueles que a defendiam se diziam iluminados pela razão contra as medievais práticas europeias de governos monárquicos absolutistas, coloniais e da servidão camponesa. A liberdade, no seu âmago iluminista, era o pressuposto para a criação de um estado baseado em princípios técnicos, racionais e, claro, pregando a imparcialidade jurídica. Ela pressupõe a transformação do súdito em um cidadão que faria parte das negociações do contrato entre governo e o governado.
De Locke a Montesquieu, o pressuposto racional básico era como conseguir controlar os poderes de um Estado em nome da liberdade e posses individuais. Esse tal Estado deveria não só garantir a liberdade e a propriedade, como também proteger seus cidadãos de ameaças externas e internas dos outros indivíduos que quebrassem o contrato entre o cidadão e o governo.
Qual seria, então, o limite da ação individual em nome da ação social, coletiva? É com a difícil tarefa de definir tal limite que nasceu esse Estado Liberal Racional. Nesse estado, polícia e exército se colocam como forças de controle, enquanto empresários e intelectuais procuram justificar e sustentar formas de produção para expansão das propriedades individuais. O paradoxo da ideia utópica da liberdade iluminista expõe sua fraqueza conceitual: a liberdade precisa de um controle para poder ser exercida.
Uma maneira de tentar explicar esse dilema é a necessidade de fazer valer as leis de trânsito. O automóvel, com sua produção e venda em larga escala, é fruto da nossa economia liberal capitalista. A necessidade de organizar o tráfego, porém, traz em si a chancela do Estado criar limites, regras e controle. As leis de trânsito, de forma geral, incluído a brasileira, são pensadas na melhor forma de proporcionar segurança para os cidadãos individuais livres. Obedecer a esse controle seria uma perda de liberdade? Avançar um sinal vermelho, usar o acostamento para fugir de engarrafamentos, ultrapassar limites de velocidade por uma necessidade determinada por uma pressa individual seriam a forma do indivíduo exercer também sua liberdade?
Como nunca foi possível definir bem o que seria a liberdade que tanto se almejava, ela foi facilmente usada como demanda para favorecer expansão das possibilidades do lucro econômico diminuindo as tentativas de proporcionar igualdade. Nesse caso, o principal definidor de liberdade é a diminuição do poder do estado para regular práticas mercantis e/ou desenvolver políticas públicas contra as desigualdades sociais e econômicas. Sendo assim, ser livre é não deixar que alguém ou algum governo impeça as atividades econômicas. Quando ocorrem tais impedimentos ou controles, haveria o direito “natural de ser livre” para avançar as amarras autoritárias dos sinais vermelhos. Mas, teria outra definição de liberdade?
Isaiah Berlin aponta exatamente para esse problema conceitual da liberdade trazendo duas indagações: seria ela a negação do poder de outra pessoa para controlar minhas ações? Ou ela seria a determinação positiva de aceitar a interdição em nome de uma lógica coletiva? A liberdade, neste caso, não seria ser livre de alguma opressão, mas ser livre para agir numa forma prescrita. Essa seria, segundo Berlin, “a concepção positiva de liberdade – não o estar livre de algo, mas o ser livre para algo, para levar uma determinada forma prescrita de vida.”[1].
Tal definição traz à tona o problema da razão, pois a liberdade de aceitar uma interdição pressupõe uma noção de esclarecimento, de lógica, de compreensão. Não se avança um sinal vermelho para não provocar acidentes ou não atropelar alguém. Para isso, o cidadão precisa usar sua razão para conter seu ímpeto que o impele a acelerar o carro e cumprir sua liberdade de poder chegar mais rápido em seu destino. Da mesma forma, para que a sociedade possa ter qualidade de vida mais ampla, não se deveria avançar o sinal vermelho para atropelar os direitos sociais e trabalhistas.
Entretanto, o problema conceitual sobre liberdade e a valorização do seu aspecto racional aumentaram a atenção dada à liberdade em detrimento da igualdade. Isso nos leva para o segundo fator, o filosófico, que pressupõe a valorização da razão em nome da emoção. É um falso dilema, baseado num preconceito e, ao mesmo tempo, prepotência que tem sua origem nas ideias platônicas de virtude. A virtude, em Platão, seria exatamente o controle da emoção, das paixões, dos instintos, para o ser humano poder ser pleno na sua característica racional contra a sua característica animalesca. Essa ideia entranha na moral cristã, legando para o século XXI não só uma demanda intelectual de privilegiar a razão, como também uma memória moral caracterizando infantil, pecaminoso e ruim quem se deixa levar por emoções.
A necessidade de parecer racional, não emocional, afetou as próprias correntes que tentaram privilegiar a igualdade. O resultado foi uma visão científica do socialismo e uma busca desenfreada de “iluminar” os trabalhadores sobre sua própria classe e suas necessidades. Criou-se uma concepção das relações de trabalho autoproclamada racional e conscientizadora, denominando de manipulados, populistas ou alienados quem defende a igualdade fora dessa concepção. Tudo em nome da virtude da razão contra nossos desejos selvagens ou esperanças utópicas.
Porém, assim como a liberdade traz o paradoxo de que precisa de controle e limites para poder ser exercida, a razão também pressupõe uma emoção, um desejo, nem que seja o próprio desejo de ser racional. Isso explica a falsa dicotomia entre razão e emoção. Não são posturas em disputas, em que uma pode prevalecer sobre a outra. Não é uma luta entre o bem e o mal. Não é binário. A emoção pode ser plenamente justificada numa lógica racional e vice versa. O desejo de obedecer a uma lei não é algo puramente racional, pois pressupõe medo, esperança ou empatia, assim com o desrespeito a uma lei pressupõe também desprezo, ódio ou revolta. Tudo explicado em cada lógica racional de quem defende a postura a ser tomada.
Por isso, é importantíssimo diferenciar razão e racionalismo. Razão é uma capacidade cognitiva do ser humano, assim como a percepção de suas emoções. Racionalismo é o desejo de suprimir a emoção, seja como forma de afirmar uma superioridade, seja como uma maneira de reclamar uma autoridade.
Essa falsa dicotomia de razão e emoção impede a compreensão dos papéis históricos que procuram dar para nossas protagonistas. É muito comum, por exemplo, associar as boas condições de vida dos países do norte europeu ou os ganhos econômicos dos Estados Unidos com a valorização da razão prática, objetiva ou pragmática. Essa associação, além de ignorar que a grande conquista econômica dos impérios inglês e estadunidense não garantiu para seus cidadãos a mesma qualidade de vida obtida em outros estados “racionais” da Europa nórdica, também ignora que os bilionários brasileiros, com todos seus gingados, jeitinhos e ganâncias conseguem de forma muito racional um Estado em defesa dessas… emoções.
Jessé Souza exemplifica o jeitinho dos bilionários assim: “como os ricos que ficam cada vez mais ricos deixam de pagar imposto por métodos ‘legais’ e ilegais, o Estado tem agora que pedir emprestado o que lhe era devido por direito”[2]. Quantas vezes nossos mais ricos racionais, esforçados e iluminados empreendedores utilizam técnicas para sonegar impostos, burlar a justiça e até mesmo buscam argumentos lógicos para oficializar medidas anti-igualitárias em prol de seus desejos financeiros? Não por acaso, a lógica de tais argumentos está na liberdade significando aquilo que deve ser preservado contra leis reguladoras e impeditivas.
Impõem-se, então, uma lógica da liberdade acima de tudo, principalmente acima da igualdade e da fraternidade. Nesse sentido, só com plena liberdade econômica seríamos capazes de sermos felizes e realizados.
Depender de algo acima de tudo para vivermos bem nos remete à alegria do poema de Friedrich Schiller -An die Freude- imortalizado no quarto movimento da nona sinfonia de Beethoven. Numa visão idealista de irmandade, o canto pela alegria é euforicamente entoado nas partes capazes de empolgar praticamente qualquer um que o escute. Com toda certeza a grande maioria de nós, mesmo não conhecendo tal sinfonia, já ouviu ou se empolgou na sucessão harmoniosa do clamor pela alegria cuja mágica une aquilo que o cotidiano (ou cultura, ou moda) separa: “deine Zauber binden wieder was die Mode streng geteilt”.
Porém, a sinfonia muda de tom, fica austera, tensa do meio até seu término, quando toda essa irmandade precisa ter consciência de que sobre as estrelas deve morar um pai amado: “Brüder, über´m Sternenzelt muss ein lieber Vater wohnen”. Faço questão de frisar os termos über e müssen, uma preposição que indica acima e um verbo auxiliar modalizador de obrigação, dever, necessidade. A condição para tal alegria é a existência de um além, acima de tudo e de todos nós, cuja exigência de ser amado faz todo sentido tenso do fim da sinfonia.
Acima de tudo –über alles, conforme o próprio hino nazista- também está personificado na política brasileira “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, pregando, não por acaso, o ultraliberalismo econômico sobre qualquer demanda. Coincidência ou não, tal liberalismo também embala a onda online da precarização do trabalho, remetendo-nos aos serviços do tipo über numa liberdade que foge de regulamentação trabalhista ou urbana.
Como, então, fazer com quê a liberdade não fique acima de todos e vire uma forma de opressão? Tudo vai depender de qual tipo de iluminação está sendo dada aos termos liberdade, igualdade e fraternidade. Não se trata de uma liberdade comandada por técnicas racionais científicas de uma economia financeira, muito menos de uma igualdade ilusória e utópica de ideólogos emocionais fora da realidade. É preciso a emoção, a empatia, ou até mesmo o medo de revoltas, para que as sociedades possam se livrar da dicotomia entre liberdade e igualdade deixando nossa terceira protagonista, a fraternidade, compor a terceira dimensão desse nosso elenco.
Frederico S. Guimarães é graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente investiga a relação entre discurso ideológico e as significações dos termos “populismo” e “fake news”.
[1] BERLIM, Isaiah (1988). Cuatro ensayos sobre la libertad. Alianza Editorial: Madrid, p. 200.
[2] SOUZA, Jessé (2017). A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, p. 93.