Documentário de um exército invisível
Pandelivery: Quantas vidas vale o frete grátis? é muito mais do que um documentário sobre o ambiente urbano. Unindo em seu título as palavras pandemia e delivery, o que remete ao termo pandemônio, o filme expõe a situação de entregadores e entregadoras de empresas-unicórnio durante a quarentena. Além do material editado, disponível desde outubro, seus realizadores enviaram o bruto das gravações ao Ministério Público de São Paulo para as devidas providências, em plena interface do cinema & audiovisual com o socioambiental e os direitos humanos. Confira no terceiro artigo da série Cinema & Meio Ambiente
“Tem muita gente falando assim: isso é escravidão. Eu gosto de usar as palavras certas. Se eu amanhã desligar o aplicativo, ninguém vai sair com capataz e cachorro me procurar, no meio do mato, para me trazer de volta para a fazenda. Então, o bagulho não é escravidão. O barato é o encurralamento, mano: a gente está encurralado.”
Paulo “Galo” possuía um incrível poder de síntese. Havíamos começado a produção do Pandelivery pouco tempo antes de nossa primeira entrevista com ele. Iniciamos o projeto com o objetivo de humanizar, registrar e dar voz a uma classe que não era muito bem vista nas cidades. O que se passa na cabeça de um entregador em sua volta para casa? Quais são seus anseios e desejos? O que pensa ao fazer uma entrega em uma casa que talvez ele nunca tenha condições de morar? O que a lista de contrastes expostos nesse simples ato de pedir uma entrega revela de uma sociedade, com um enorme abismo social, como a brasileira? Com tantos questionamentos percebemos que, como clientes, somos parte desta cadeia, mas o que poderíamos fazer para dar relevância ao assunto?
A chegada da pandemia mudou radicalmente o rumo do projeto. Com a concretização da quarentena, a função de entregador tornou-se, do dia para a noite, um serviço essencial para o funcionamento das cidades. O ecossistema inteiro mudou: ruas desertas cortadas por entregadores com caixas quadradas e coloridas. Só havia eles. Duas rodas levando tudo para todos. Sempre houve tantos entregadores nas ruas? Ou a ausência de carros e pedestres os deixou em evidência?
Nossa primeira entrevista com Paulo foi nas escadarias da PUC, à noite. A realidade dele estava se transformando rapidamente. Após ser bloqueado em um aplicativo de entrega ele divulgou um vídeo em que reivindicava os direitos básicos dos entregadores. Sua popularidade só aumentava, seu vídeo viralizou, e os jornais o queriam. Alguns políticos começavam a sondá-lo.
Nosso sentimento era de estar gravando no olho do furacão. Enquanto fazíamos as entrevistas do dia para a noite, a realidade dos entregadores, com quem tínhamos conversado, mudava completamente. Existia uma urgência em capturar tudo.
Os motoboys são um grupo extremamente heterogêneo. Desde os antigos motoboys de placa vermelha, até os adolescentes com bicicletas emprestadas, ou mesmo montadas por eles, bolsonaristas, petistas, apolíticos, antipolíticos, velhos, jovens, todos estão hoje em dia apinhados em pontos de entrega, esperando o celular apitar. Antes da epidemia, na falsa promessa do auto-empreendedorismo, embarcavam em uma realidade na qual eram obrigados a responder por todos os riscos, sem assistência ou amparo legal de seus contratantes.
No início da quarentena trabalhavam sem qualquer proteção dada pelas empresas de aplicativo, em condições de trabalho predatórias, jornadas de 12 a 20 horas diárias e raras pausas para descanso e alimentação. Muitos desempregados tornaram-se entregadores, mais do que dobrando a frota desses aplicativos. Quem conseguia ganhar R$ 100, em oito horas de trabalho, agora não alcançava metade trabalhando 13 horas seguidas. Durante nossas coberturas dos protestos, conversamos com entregadores que, para tornar o trabalho economicamente viável, optam por fazer suas refeições com ajuda de ONGs que servem alimentos para moradores de rua. Almoçar ou lucrar é o dilema diário de muitos deles.
É importante pontuar: não somos contra os aplicativos, entendemos que fazem parte da dinâmica da sociedade contemporânea. Questionamos apenas o sistema, onde as novas relações trabalhistas não possuem a regulamentação mínima para garantir o bem-estar social, e apenas intensificam a já grave desigualdade entre os estratos sociais.
Na falta de políticas públicas, ensaiam células organizacionais de WhatsApp, numa caótica autogestão. Se ajudam através de fotos de motos roubadas e sua localização, permitindo que seus donos as recuperem, alertas de comandos da polícia, pedidos de doações para acidentados, vendas e trocas, rifas, reclamações contra os aplicativos e muitos memes.
A situação inflamada, pouco a pouco, se reflete em protestos, organizações sindicais e extra sindicais, demandas de direitos e novas lideranças. Ainda assim, mesmo com tantas causas em comum, os entregadores têm dificuldade para se organizar, e muitos nem sabem da existência de sindicatos e associações. Enquanto isso, os aplicativos seguem se vendendo como o serviço do futuro, com grandes campanhas publicitárias durante a pandemia, para aumentar sua base de consumidores e sedimentar sua imagem como alternativa segura e responsável para manutenção da quarentena.
Há a semente da mobilização. Os milhares de grupos espalhados pelo país não deixam dúvidas: quando conseguirem se unir e utilizar a política como ferramenta de transformação, os entregadores poderão se tornar uma força poderosa.
“Os problemas aumentaram, as soluções aumentaram também”, é uma das coisas que ouvimos com frequência do Paulo, que continua bloqueado em todos os aplicativos enquanto tenta mobilizar seus colegas.
A quarentena colocou um holofote em toda a classe. Impossível ignorar entregadores quando eles eram os únicos nas ruas. Agora, com a reabertura, pessoas voltando a habitar o espaço público, trânsito, bares abertos e a falsa impressão de normalidade, o grito deles vai ser abafado pela paisagem sonora da retomada?
Marina Waldvogel é produtora executiva (Soalma Production Co.), Guimel Salgado é diretor de cena (Soalma Production Co.) e Antonio Matos é diretor de cena, os três realizaram o documentário Pandelivery durante a pandemia de Covid-19 em São Paulo, capital.
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Como o cinema tem tratado as diversas faces da questão ambiental? Da crise civilizatória à perda de biodiversidade, do colapso climático à busca da sacralidade da Terra, a realidade ecológica está em ficções e documentários de diferentes formas, sejam distópicas ou apontando caminhos, como elemento central ou paisagem de fundo. Com esta série, o Le Monde Diplomatique Brasil, em parceria com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer e o Doc Ambiente, convida alguns dos melhores corações e mentes para pensar a interface da produção cinematográfica com o meio ambiente.